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Vídeo acelerado é nova mania para maratonar em uma sociedade da eficiência

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Kaluan Bernardo

do TAB

19/11/2019 04h00

Desde que seu filho nasceu, Douglas Domingues assiste a vídeos com o dobro ou o triplo da velocidade no celular. Os filmes nunca acabam exatamente entre uma viagem de metrô ou uma caminhada e, por isso, o consumo é todo fragmentado. Domingues pode parecer alguém exagerado, mas na verdade ele segue uma tendência: mais pessoas estão assistindo a filmes e séries mais rapidamente, em diferentes momentos do dia.

Diversos players de podcasts e vídeos, incluindo o YouTube e o iTunes, já oferecem a opção de consumir conteúdo com até o triplo da velocidade. Há também extensões para Chrome e Firefox que permitem acelerar qualquer vídeo online. Na TV, alguns filmes já são acelerados para caber na grade da emissora, e a Fox promoveu maratonas da série "The Walking Dead" comprimidas para que 35 horas de conteúdo fosse transmitidas em 24 horas. Recentemente, a Netflix também testou a possibilidade de acelerar seu cardápio de programas — o que resultou em umprotesto de cineastas pelo Twitter.

Pesquisas realizadas desde a década de 1960, como as do psicólogo Emerson Foulke, mostram que é possível ouvir conteúdo acelerado em até 150% sem prejudicar a compreensão.

É por isso que o publicitário Lucas Couto só assiste a vídeos acelerados com teor educacional. "Filmes para entreter eu nunca vi de forma acelerada. É um momento de descanso, de apreciar a obra. Mas, quando estou aprendendo algo, só quero reter informação, aí eu acelero", diz. Couto, inclusive, diz que ouve podcasts acelerados enquanto trabalha. "Acabo retendo um pouco menos, mas consumo mais. É uma troca que vale a pena."

Domingues, que diz até atravessar a rua vendo filmes acelerados no celular, afirma não há separação entre conteúdo de entretenimento e educação. "É a única forma que eu tenho para dar conta do que está sendo lançado. E eu não quero ficar fora do assunto. Quero discutir o filme do Coringa, a série 'Sintonia'. É uma questão social. Perco um pouco da experiência, mas é o jeito", diz o professor de Rádio e TV na FIAM.

Símbolo de fast foward - Reprodução - Reprodução
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É tudo questão de linguagem

Ao saber dos testes da Netflix, o diretor Judd Apatow (que fez a série "Love" para a plataforma) tuitou: "Não me faça ter que chamar todos os diretores e criadores da Terra para lutar contra isso". Já Peter Ramsey, diretor de "Homem-aranha no aranhaverso", declarou: "Tudo tem que ser desenhado para os mais preguiçosos e os sem-graça?". E Peyton Reed, diretor de "Homem-Formiga", disse: "É uma péssima ideia. Eu e todos os diretores que conheço iremos lutar contra isso". A reação dos diretores se deve ao fato de o conteúdo não ser consumido da forma em que foi pensado para ser consumido. Talvez isso não se sustente sempre.

Para Lais Bodanzky, diretora da SPCine e de filmes como "Bicho de Sete Cabeças", a linguagem do cinema evolui e, por isso, pode ser que, no futuro, esse debate não cause estranheza. "A linguagem do audiovisual é muito dinâmica. Nos primórdios do cinema, havia uma forma de as pessoas assistirem a um filme e que, depois de todos esses anos acostumados [a ela], enxergamos de outra forma. Nosso olhar é muito mais apurado, diferente do olhar ingênuo dos primórdios do cinema", diz. Ela cita como exemplo a filmagem de "A chegada de um trem na estação de Ciotat", dos irmãos Lumière, de 1895. Quando as pessoas viram aquilo, assustaram-se, pensando que seriam atropeladas pelo trem em alta velocidade que parecia saltar da tela. "Hoje nem mesmo uma criança toma esse susto", diz.

Ainda assim, ela diz que, enquanto diretora, se preocupa com a aceleração do filme. "Se alguém vê um filme meu de forma acelerada, sei que não vai estar absorvendo tudo aquilo que eu gostaria que fosse absorvido das histórias que estou contando — os detalhes da fotografia, a arte, o ritmo da montagem e tudo que foi pensado para ser absorvido na velocidade padrão. Mas eu, enquanto pessoa, ficaria preocupada. porque não sou capaz de ver filmes acelerados. Não posso ser taxativa em dizer que novas gerações no futuro não conseguiriam absorver conteúdo acelerado", diz.

Em um artigo para o jornal Washington Post, o jornalista Jeff Guo afirma que, depois de começar a assistir a vídeos acelerados, ele sequer consegue ver TV na velocidade normal. Para ele, a comparação é com um livro: se lemos mais rápido do que falamos, por que não podemos consumir conteúdo audiovisual dessa forma também? Couto passa pelo mesmo dilema. Fora da TV, quando alguém começa a enrolar na vida real, ele fica ansioso. "Gostaria de poder acelerar vídeos de WhatsApp, por exemplo. Em reuniões por telefone ou Skype, me segurei para não começar a pedir para a pessoa acelerar a fala", brinca.

A mídia acelera o tempo?

A pesquisadora Anna Bentes, da UFRJ, estuda economia da atenção. Ela diz que a aceleração do tempo é uma questão que está posta desde o século 19, pós-Revolução Industrial. "Os meios de transporte, o telégrafo, a vida urbana etc? já levantavam a questão da aceleração do tempo. Mas isso vai se complexificando até o momento em que vivemos."

Em reunião com acionistas, Reed Hastings, CEO da Netflix, afirmou que o maior competidor da plataforma é o sono. "É a ideia de que você precisa ultrapassar seus limites físicos e psíquicos para atender a uma demanda social de estar sempre informado", diz Bentes. Nesse contexto, serviços digitais usam mecanismos para permitir maior engajamento com os usuários, como a reprodução automática após o fim de um episódio ou — por que não — assistir a vídeos em menor tempo para que se tenha impressão de produtividade. Quem não preferiria maratonar duas séries em vez de uma no final de semana?

"Há uma demanda social que exige um desempenho otimizado, quase de máquina. E isso está relacionado à economia da atenção. Há tanto para ser visualizado, mas falta foco para tudo isso. Então as empresas buscam otimizar sua atenção", diz. "As empresas precisam conhecer melhor seus hábitos de consumo, ao mesmo tempo em que você está sendo disputado por vários serviços e pelo seu próprio trabalho."

Um segundo efeito desse cenário, segundo Bentes, não se restringe ao consumo acelerado. Há a ansiedade de se ocupar cada trecho da vida com o consumo de mídia. Filas de banco, pausas para o café ou mesmo o almoço viram momentos para que se consuma uma série de 30 minutos com o dobro da velocidade, em 15 minutos.