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'Bishop jamais fez apologia pública ao golpe', diz curadora da Flip

Elizabeth Bishop viajou para a Amazônia durante os anos em que morou no Brasil - Arquivo Nacional
Elizabeth Bishop viajou para a Amazônia durante os anos em que morou no Brasil Imagem: Arquivo Nacional

Letícia Naísa

Do TAB, em São Paulo

01/12/2019 04h00

Durante a cerimônia de encerramento da 17° Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), Liz Calder, uma das criadoras do evento, leu um poema da escritora Elizabeth Bishop. Segundo Mauro Munhoz, diretor artístico do festival, não foi uma coincidência a leitura com o fato de que a norte-americana foi escolhida como homenageada da edição 2020. Bishop, que morou no Brasil entre as décadas 1950 e 1960, é a primeira estrangeira e apenas a quarta mulher a ser homenageada pela Flip.

O anúncio foi feito na última segunda-feira (25) e recebido com revolta nas redes sociais. Um abaixo-assinado foi criado para que a organização volte atrás na decisão. "Não podemos deixar que uma gringa golpista seja homenageada em nossa principal festa literária", diz o manifesto.

Em tempos de polarização, Bishop está na iminência do cancelamento por conta de um comentário que escreveu em uma carta para seu melhor amigo, Robert Lowell, após o Golpe de 1964. "Foi uma revolução rápida e bonita", afirmou a escritora. As cartas foram reveladas em 2009, em uma resenha escrita por Otavio Frias Filho. Em 2019, foram rapidamente resgatadas pelo tribunal da internet.

Segundo Fernanda Diamant, curadora da Flip 2020, as escolhas dos homenageados da festa não estão descoladas do contexto político e social do país. Em entrevista ao TAB, Diamant afirma que a escritora jamais fez apologia ao Golpe que iniciou o regime militar no país, e não tinha uma relação apaixonada com a política. Para ela, a informação tem uma importância menor frente ao resto da obra da escritora.

Confira os destaques da conversa com a curadora.

TAB: Por que Elizabeth Bishop em 2020? Qual a importância dela para a literatura no Brasil?

Fernanda Diamant: Elizabeth Bishop divulgou a nossa literatura para os países de língua inglesa, organizou uma antologia e traduziu vários escritores brasileiros. Por muito tempo, foi a única antologia de poesia brasileira [traduzida para o inglês] e até hoje é a mais importante. Além disso, ela viveu no Brasil por quase 20 anos e uma parte expressiva de sua obra tem como matéria-prima o Brasil.

O nome da poeta foi recebido com muitas críticas nas redes sociais por conta do posicionamento dela frente ao golpe de 1964. Esse pensamento da autora era conhecido? Foi levado em conta na hora da escolha?

Até 2010, essas cartas eram desconhecidas do público e desde então nunca foram publicadas em forma de livro no Brasil. Um livro publicado nos Estados Unidos reuniu a correspondência dela com o poeta Robert Lowell e revelou essas opiniões que ela expressou de forma privada, em conversa com seu melhor amigo. Uma resenha de Otavio Frias Filho publicada na revista Piauí é a fonte de todo esse debate. Eu li na época, então sabia da existência, e também sabia que ela fazia parte do círculo de Carlos Lacerda, que era oposição ao governo deposto pelo Golpe de 64. Conhecendo muito bem a obra de Bishop, no entanto, sei que essa informação tem uma importância lateral em relação à obra dela e mesmo ao resto de sua correspondência, que é muito vasta. A relação dela com a política não era apaixonada. Ela jamais fez apologia pública ao Golpe e aqui no Brasil sofreu influência de um grupo muito específico de pessoas, já que demorou a dominar a língua portuguesa.

Bishop (dir.) escrevia frequentemente para seu poeta e amigo Robert Lowell (esq.) - Vassar College Library Archives - Vassar College Library Archives
Bishop (dir.) escrevia frequentemente para seu poeta e amigo Robert Lowell (esq.)
Imagem: Vassar College Library Archives

A escolha do homenageado sofre alguma influência do contexto político ou social? Considerando o atual contexto do Brasil, o que a escolha de Bishop representa?

É claro que o contexto político e social tem influência sobre a escolha, mesmo que indireta. Todos na equipe e na direção da Flip trabalham com literatura, cultura, diversidades, estamos sentindo o impacto da realidade cotidianamente. Nesse sentido, a escolha da poeta representa diversas coisas: o olhar crítico e estrangeiro do artista/intelectual que nos ajudou ao longo dos séculos a olhar pra nós mesmos (e eu poderia citar uma dezena de nomes), a importância da cultura brasileira para o resto do mundo, a condição de mulher e homossexual, e, por que não, o debate político e histórico que estamos precisando ter continuamente para entender como chegamos nesse lugar onde nos encontramos hoje.

Qual mensagem a Flip quer passar, homenageando a poeta norte-americana?

Acho que essa resposta está contemplada na parte acima. Falta dizer o mais importante: Elizabeth Bishop está entre os grandes poetas do século 20 e uma parte de sua obra foi produzida e sofreu grande influência do Brasil.