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Scorsese com 'efeito Marvel': seria a fonte da juventude no cinema?

Robert De Niro em cena de "O Irlandês", antes e depois do uso da tecnologia de-aging - Reprodução
Robert De Niro em cena de "O Irlandês", antes e depois do uso da tecnologia de-aging Imagem: Reprodução

Tiago Dias

do TAB

07/12/2019 04h00

Quando os personagens de Robert De Niro e Joe Pesci se encontram pela primeira vez em "O Irlandês", Pesci chama De Niro de "kid" [criança], embora os dois atores em cena tenham 76 anos.

A chegada do épico gângster de 3 horas e meia na Netflix já seria notícia, mas colocou o tão falado filme de Martin Scorsese ainda mais em evidência pela mágica do rejuvenescimento que se vê na tela.

Não se trata de FaceApp, que fez quase toda a internet se ver mais velho com apenas um clique, nem o esquema conhecido de maquiagem que deu nos últimos anos o Oscar de melhor ator para Gary Oldman e Daniel Day-Lewis, que engordaram e envelheceram na tela em "O Destino de uma Nação" e "Lincoln", respectivamente. De alguma forma, ainda estamos falando de maquiagem, só que digital.

Em mais da metade do filme, De Niro interpreta, com suas próprias rugas e expressões, o veterano da Segunda Guerra Mundial Frank Sheeran em seus 30 e poucos anos. O mesmo acontece, em escala menor, com Joe Pesci e Al Pacino, 79, tudo graças a uma tecnologia chamada "de-aging", que permite astros aparentarem o frescor da juventude em seus rostos com a ajuda de um computador.

A tecnologia não é nova e já foi usada em algumas dezenas de filmes. Arnold Schwarzenegger fez isso duas vezes nos filmes mais recentes da franquia "O Exterminador do Futuro". Orlando Bloom apareceu como um Legolas menor de idade na trilogia de "O Hobbit". E é difícil imaginar Brad Pitt filmando "O Curioso Caso de Benjamin Button" sem essa tecnologia.

Mas, até então, era nos filmes da Marvel que a tecnologia foi mais usada para rejuvenescer personagens. Michael Douglas, Michelle Pfeiffer e Laurence Fishbourne ficaram mais novos em "Homem-Formiga e A Vespa". Samuel L. Jackson deu cara para um Nick Fury mais jovem no "Capitã Marvel", e até Robert Downey Jr. apareceu com vinte e poucos anos em "Capitão América: Guerra Civil".

Curiosamente, é pelas mãos de Scorsese que a tecnologia atinge outra escala, justamente no momento em que o diretor deu uma declaração polêmica sobre os filmes do universo estendido dos super-heróis. Para ele, os projetos da Marvel parecem mais "parques temáticos". "Não é cinema", disse.

Para o crítico e blogueiro do UOL Roberto Sadovski, não existe muita distinção entre os dois tipos de filme. "Do ponto de vista técnico, não tem muita diferença, não. Existe talvez uma mudança na execução da coisa, mas no fim, ela é a mesma tecnologia, e qualquer tecnologia faz parte da caixa de ferramentas de um cineasta. Ela não deixa o filme melhor, nem pior", afirma.

Robert De Niro aparece mais jovem no trailer de O Irlandês - Reprodução/YouTube - Reprodução/YouTube
Imagem: Reprodução/YouTube

Fonte da juventude

O "de-aging" foi desenvolvido pela Industrial Light and Magic's, mas difere da tecnologia de captura de movimentos, que deu vida a Thanos, o vilão-mor da saga da Marvel.

Os testes iniciais para convencer Scorsese e a própria Netflix foram feitos com De Niro repetindo cenas do clássico "Os Bons Companheiros". Al Pacino, quando assistiu às cenas, não tinha sentido a diferença. "Pensei: 'por que ele está fazendo isso de novo?' E depois eu percebi: 'espere, ele não está velho [na cena]'".

A tecnologia exige duas câmeras, cada uma com três lentes, para captar todas as nuances da atuação. Depois, deve-se substituir a imagem pelo rosto mais jovem, obtido com imagens geradas por computador (CGI). O processo é completamente diferente do motion capture, recurso que utiliza pequenas bolinhas no rosto do ator, para que as expressões e a atuação sejam inseridas num personagem CGI, o que deixou Scorsese animado. "Eles [os atores] não precisariam usar capacetes e bolas de tênis em seus rostos, porque eles não fariam isso", afirmou, na estreia do filme.

As "bolas de tênis" foram popularizadas pelo ator Andy Serkis, com resultados impressionantes em "Planeta dos Macacos", "O Senhor dos Anéis" e "Mogli: Entre Dois Mundos", mas o Oscar nunca olhou para Serkis como um ator que merecesse indicação — diferentemente de De Niro, que é aposta certa na categoria de ator da premiação em 2020.

A diferença, claro, pesou no bolso. "O Irlandês" teve um dos orçamentos mais caros já vistos em Hollywood (estima-se que a produção custou US$ 160 milhões), mas fez os expectadores ficarem de boca aberta — para o bem e para o mal.

O resultado dividiu os cinéfilos e as opiniões nas redes sociais. Uma parte ficou siderada pela construção tão fidedigna de um rosto. Mas teve quem não conseguisse fingir normalidade. O jornalista e crítico britânico Richard Trenholm, do site Cnet, foi categórico: "Um desperdício de dinheiro". Para ele, o truque fica nítido, principalmente porque já sabemos como é o rosto de De Niro aos 30 e 40 anos, imortalizado em filmes como "Taxi Driver" e "O Franco-Atirador". Em "Os Bons Companheiros", feito quando De Niro tinha 43 anos, uma cena convincente apresentava o ator aos 28 anos.

Em menor ou maior grau, ainda que por um momento, o estranhamento acontece. A jornalista e escritora Ana Maria Bahiana, que há anos cobre as produções em Hollywood, estranhou o efeito quando assistiu ao filme na première. "Mas revi duas vezes e já não me perturba mais." Para Roberto Sadosvki, o estranhamento durou apenas cinco minutos. "É seu cérebro falando: 'esse cara não é assim'."

Vale da estranheza

Esse "bug" na nossa cabeça é chamado por quem estuda efeitos especiais de "vale da estranheza". O termo se refere à sensação desconfortável que os espectadores podem experimentar ao ver rostos gerados por computador. O cérebro parece mandar uma mensagem de que algo não está certo.

Dono do BIG eMotion Technologies, Moshe Mahler foi durante anos pesquisador de tecnologias humanas digitais na Disney e afirmou que o público é mais sensível quando há um efeito em um corpo humano do que quando o personagem é inteiramente digital. Ou seja, uma coisa é ver Thanos na tela grande, com corpo roxo e rosto desproporcional; outra é assistir a "O Expresso Polar", uma alardeada grande produção que naufragou e causou estranheza ao recriar o rosto de Tom Hanks no computador.

Scorsese dirige Robert De Niro e Joe Pesci em "O Irlandês" - Niko Tavernis/Netlfix - Niko Tavernis/Netlfix
Scorsese dirige Robert De Niro e Joe Pesci em "O Irlandês"
Imagem: Niko Tavernis/Netlfix

"Em outras palavras, há mais espaço para erro ao criar corpos gerados por computador e uma margem muito menor para erro ao criar rostos gerados por computador", diz. "Como 'O Irlandês' é baseado em uma história real, com personagens realistas e rostos realistas, o público é muito mais sensível ao uso de tecnologias de envelhecimento."

"Meu palpite é que alguns espectadores não notarão a tecnologia, alguns irão se maravilhar com ela e outros acharão tudo isso uma distração. Costumo cair nas duas últimas categorias. É incrivelmente perturbador para mim, apesar da impressionante qualidade do envelhecimento."

O estranhamento aconteceu também com Scorsese, a ponto de ele compartilhar sua preocupação ao assistir as primeiras cenas pós-tratamento. "As rugas e outras coisas mudaram. Isso muda os olhos? Nesse caso, o que eu gostei nos olhos? Foi intensidade? Foi uma ameaça?"

A preocupação fazia sentido. Nas redes sociais, teve quem enxergou as rugas de De Niro de hoje no personagem, além da mandíbula maior, os ombros curvados e a boca tensa.

Por que então não contratar atores para interpretar os personagens mais novos? Sadovski responde: "Essa é fácil: qual ator mais jovem vai ser tão bom quanto o De Niro, Al Pacino e Joe Pesci? Não era achar um ator mais jovem para uma cena. É quase o filme inteiro", explica. Para ele, faz todo o sentido o filme ser feito com a tecnologia. "Talvez seja por isso que o filme não tenha sido feito antes."

"Uma tecnologia está sempre se aprimorando. A gente vê, por exemplo, o Jeff Bridges rejuvenescido em 'Tron: O Legado', de 2010, e a gente identifica tudo que está errado na tecnologia ali, mas tinha de se começar de algum lugar, de algum ponto. Vale o mesmo para agora", opina o crítico.

Para Bahiana, isso pode mudar completamente a indústria a partir de agora, e não só a norte-americana. "É mais uma ferramenta disponível. O maior impacto pode ser na escolha de elencos — a necessidade de vários atores para um mesmo personagem em diversas fases de sua vida."

Assim, será possível até reviver pessoas mortas. Uma versão da tecnologia já permitiu que Peter Cushing, morto em 1994, reprisasse seu papel como oficial imperial Grand Moff Tarkin em "Rogue One: Uma História Star Wars", em 2016. Na época, o efeito foi chamado de "uma das mais complexas e caras recriações de CGI de todos os tempos".

Como a alta tecnologia de hoje é o brinquedo de amanhã, pode ser que no futuro ainda vejamos Tom Cruise correndo em algum "Missão: Impossível", mesmo que fora da tela o ator venha a usar um andador.

De Niro brincou com a possibilidade, em conversa com público nas primeiras sessões de "O Irlandês": "Eu posso estender minha carreira por mais 30 anos." E quem pode duvidar?