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Autoexilada, Marcia Tiburi diz em aula que "estão naturalizando o horror"

Marcia Tiburi, durante aula sobre fascismo brasileiro na Universidade de Aarhus, no norte da Dinamarca - José Roberto Castro/UOL
Marcia Tiburi, durante aula sobre fascismo brasileiro na Universidade de Aarhus, no norte da Dinamarca Imagem: José Roberto Castro/UOL

José Roberto Castro

Colaboração para o TAB, de Aarhus (Dinamarca)

29/02/2020 04h00

Enquanto o brasileiro encerrava as atividades de Carnaval, descobria seu primeiro caso de coronavírus e era informado de que o presidente da República havia repassado a amigos uma convocação contra o Congresso Nacional, Marcia Tiburi era apresentada à plateia em um dos auditórios da Universidade de Aarhus, no norte da Dinamarca. Eram 6h13 da manhã (horário de Brasília) quando Tiburi iniciava sua palestra "A escalada fascista no Brasil".

O fuso horário não é mais um problema, mas a candidata do PT ao governo do Rio de Janeiro em 2018 disse, na quarta-feira de Cinzas (26), que sente falta do país. Principalmente do Brasil de "antes da catástrofe fascista". Tiburi deixou o país em dezembro de 2018, relatando ameaças após a campanha eleitoral. Continua em autoexílio. A escritora afirmou que não pode, não se sente segura para lecionar. "Sou uma pessoa comum, preciso trabalhar."

A decisão de sair se deu quando, em um evento em Maringá (PR), toda a plateia teve de ser revistada porque a polícia havia recebido alerta de ameaças. "Passei 20 anos sendo uma intelectual pública, indo do Oiapoque ao Chuí, ao sertão, em tudo quanto é lugar falar de filosofia, de literatura. E agora não podia mais."

Hoje Tiburi mora na França, onde dá aulas na Universidade Paris VIII. As palestras são um ato político e dever de acadêmico. "Falar sobre o fascismo, fazer uma análise crítica, filosófica, é um ato acadêmico porque envolve pesquisa, compreensão. Mas é também um ato político. (...) Falava no Brasil, continuo falando muito. Não temos outra saída senão escrever, falar, dar entrevista. Eu falo com você também nesse sentido", explicou.

A plateia

O auditório não estava lotado. Pouco mais de 40 pessoas ouviram atenta e silenciosamente a fala de cerca de uma hora. Eram brasileiros e estrangeiros, estudantes, professores e gente de fora da universidade, interessada em discussões sobre totalitarismo.

Foram raras as interações. Os espectadores riram quando ouviram que um trabalho numa rede de fast food tinha sido argumento para a indicação de Eduardo Bolsonaro à embaixada em Washington (EUA). Também tentaram ajudar quando Tiburi não encontrou a palavra correta em inglês para seu conceito de "ventriloquacidade", "a capacidade de falar por meio de outrem", de propagar ideias de outras pessoas.

O evento foi organizado pela seção de Brasil do Departamento de Estudos Globais da Universidade de Aarhus. No programa, há também estudos sobre China, Japão, Índia e Rússia, além de uma área de Assuntos Europeus. A proposta do campo de estudos é dar a história, antropologia e estudos culturais o mesmo peso que a academia dá a ciência política, sociologia e economia.

A palestra

Marcia Tiburi justificou o uso daquela "expressão tão terrível" já que, para alguns, falar em fascismo parece exagero. Lendo em inglês, passou a dissecar o papel da comunicação (ou da falta dela) na propagação de ódio, e constatou: as redes sociais são o "laboratório onde o ovo da serpente cresce rápido". Por causa da escala de propagação de desinformação e mentira, cunhou a expressão "turbofascismo".

Citou pensadores como Theodor Adorno — pensador a quem Olavo de Carvalho credita a autoria das músicas dos Beatles —, Hannah Arendt e Immanuel Kant. Falou também de Francis Ford Copolla e "Apocalipse Now" e, durante os primeiros 40 minutos de palestra, não mencionou nenhuma vez o nome do presidente Jair Bolsonaro. Nesse momento, fez uma pausa e anunciou que a partir dali começaria a relatar o "inacreditável exemplo brasileiro".

A deposição de Dilma Rousseff foi chamada de golpe, e deu a deixa para explicar aos presentes a escalada de ódio no Brasil contra qualquer pessoa que tenha ideias de esquerda.

"O ódio não vem naturalmente. No Brasil as pessoas estão sendo levadas a odiar. (...) O PT concentrou o ódio das pessoas como os judeus concentraram o ódio produzido pelo nazismo. Mas esse ódio foi muito longe e se transformou em ódio à democracia. Hoje, quem defende democracia no Brasil é chamado de comunista".

Candidata ao governo do RJ, Marcia Tiburi (PT) participa de debate promovido por SBT e Folha de S.Paulo - Ricardo Borges/Folhapress - Ricardo Borges/Folhapress
Candidata ao governo do RJ, Marcia Tiburi (PT) participa de debate promovido por SBT e Folha de S.Paulo
Imagem: Ricardo Borges/Folhapress

Quando passou a falar de Bolsonaro, usou a expressão "fascismo tropical", e citou nomes como o do publicitário norte-americano Steve Bannon e dos presidentes Donald Trump (EUA), Vladimir Putin (Rússia), Viktor Orbán (Hungria), Recep Tayyip Erdogan (Turquia) e Narendra Modi (Índia), além de Adolf Hitler.

Para ela, uma diferença é que Hitler, com seus gostos intelectuais e artísticos, mantinha certa dose de "aparência" ao regime, alguma vergonha. "Bolsonaro é o personagem de um tempo em que o valor da vergonha foi perdido. Como Trump e outros, ele cresce e aparece somente por não ter vergonha do que diz. A falta de vergonha é estratégica, uma mistura de humilhação e adulação das massas".

O olhar de fora

Escalado para comentar a fala de Tiburi, o professor alemão Georg Wink, que lidera o Centro de Estudos Latinoamericanos da Universidade de Copenhague, vê o Brasil em processo de "fascistização".

"Fascismo não é sempre o pacote completo, esse é o problema no Brasil. Você (Tiburi) diz que o Brasil vive um turbofascismo, e alguém rebate: 'Não há a máquina do Estado, não há partido fascista'. Esse é o ponto, há ideias. Fascistas se adaptam a certos aspectos de uma democracia liberal e emergem nesses contextos". Para Wink, não só no Brasil, "o fascismo tem estado sentado com a gente à mesa há um bom tempo".

Mestranda em Assuntos Globais, a dinamarquesa Anne Lindblad Johansen morou no Brasil por um ano. Ela assistiu à palestra e diz que não mudou substancialmente sua percepção sobre o Brasil, que ela ama: um país "lindo, com um povo amigável", mas também com "problemas de racismo, machismo e pobreza".

"É um pouco assustadora a guinada à extrema-direita que vários países parecem estar tomando, inclusive a Dinamarca. Governos de extrema-direita geralmente desconsideram direitos de muitos grupos minoritários", diz Johansen.

Na Dinamarca, o Partido do Povo Dinamarquês teve 8,7% dos votos na eleição de 2019 — havia recebido 21% em 2015. Há demonstrações fortes de guinadas à direita em países como Áustria, Espanha e Suécia.

O alemão Wolfgang Bauer não é formalmente um pesquisador, mas se interessa pelo noticiário de política há décadas e vê o fascismo "definitivamente" mais perto nos últimos "dez, cinco anos". "Eu leio sobre Bolsonaro, suas ideias sobre minorias, meio ambiente, ideias estranhas. Você não espera alguém ser tão obviamente contra a realidade, negando o que está cientificamente provado. Estou surpreso com o grau de desenvolvimento [do fascismo] no Brasil, mas temos algo parecido na Alemanha", afirmou ao TAB.

Questionada sobre como o período fora do país mudou sua maneira de enxergar o caso brasileiro, Tiburi respondeu: "O interessante é que aqui [na Europa] a gente encontra muitas pessoas que têm uma perplexidade em relação ao Brasil. As pessoas não conseguem acreditar, não conseguem entender o que está se passando. Muita gente no Brasil vive como se não estivesse acontecendo nada, vão naturalizando o horror".

A candidatura e a autocrítica

O tempo da entrevista estava acabando quando TAB perguntou a Marcia Tiburi sobre ter aceitado entrar para a política tradicional. "Isso não dá pra responder rápido", disse, elencando razões como a falta de candidatos do PT e sua visão sobre o estágio de degradação da democracia já naquele momento. "Não tenho nenhuma vontade de ter cargos políticos, fui embora do Brasil."

Por outro lado, defende que cada vez mais as pessoas comuns se candidatem. "Eu como professora, as mulheres, os intelectuais, os líderes comunitários... Devem ocupar [o espaço], não sendo um político profissional, mas entendendo a política. Não falo da esquerda, mas de gente com mentalidade democrática. Porque do contrário, os pastores neopentecostais e a extrema-direita criam partidos. Ocupar a política é uma tarefa do nosso tempo histórico."

Sobre a tão cobrada autocrítica do PT e da esquerda, Tiburi acha que o processo pode ser saudável, mas não acredita que os erros de seu partido sejam maiores que os de outras legendas. "Claro que o PT tem que fazer autocrítica. Inclusive aqueles que reclamam de uma autocrítica do PT precisam de mais autocrítica. Não se pede uma autocrítica dos partidos de direita ou de extrema-direita porque ninguém espera isso de partidos autoritários."

Bolsonaro e seus métodos

Tiburi não vê o apoio velado do presidente às manifestações contra o Congresso como seu passo mais grave. "Já está tudo tão escancarado", comenta. No avanço contra o parlamento, ela vê, porém, sinais do "desespero bolsonarista", mas um desespero que pode "dar muito certo".

Diferentemente de boa parte dos opositores de Bolsonaro, ela vê traços de estratégia no comportamento do presidente e do movimento político que ele lidera. "O cinismo é um método no Brasil hoje em dia."

Bolsonaro foi descrito por Tiburi como uma espécie de "gênio no jogo que ele joga", "muito forte". Um "personagem" que só pode ser igualado, em dimensão, pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva — "um pelo ódio, outro pelo amor".

No campo da direita, Tiburi acha que o presidente é imbatível. "Bolsonaro é um especialista em capturar a consciência das pessoas e por isso é impossível vencê-lo, vai ser muito difícil para Sergio Moro. Ele é bizarro, um ator maravilhoso. E Moro não é."