Opinião: Combater desinformação é mais difícil que lutar contra ignorância
O que explica que quantidade tão grande de pessoas tenham opiniões firmes e extremadas sobre temas a respeito dos quais seu grau de informação é muito baixo? A pergunta não se refere à má-fé com que dirigentes políticos difundem informações que eles sabem falsas, e sim à recepção e à difusão destas mensagens pelo público.
Jornalistas reconhecidas e premiadas como Patrícia Campos Mello, Vera Magalhães, Miriam Leitão e tantas outras são insultadas em redes sociais por práticas que, se fossem reais, jamais teriam permitido que elas ganhassem o prestígio que marca suas trajetórias profissionais. Ativistas contra a destruição da floresta amazônica são vistos como criminosos que buscavam incendiá-la, mesmo que o próprio Governador do Pará tenha colocado em questão a base factual dos processos que hoje pesam contra eles. Governos municipais são acusados de distribuir objetos eróticos para que o Estado molde a orientação sexual das pessoas.
Nos Estados Unidos, outdoors denunciam campanhas de vacinação como um perigo à saúde pública. Tanta gente deixou de vacinar seus filhos que algumas doenças praticamente erradicadas voltaram ao convívio público.
Segundo informação do jornal The Washington Post, um relatório do Departamento de Estado encontrou cerca de dois milhões de tuítes, ao redor do mundo (fora dos Estados Unidos), contendo teorias conspiratórias sobre o coronavírus — de que teria sido criado pela Fundação Bill e Melinda Gates, ou que seria o resultado de algum tipo de arma biológica.
Ainda no campo das epidemias, zika e febre amarela no Brasil, foram também objeto de explicações conspiratórias, segundo estudo recente publicado em importante revista científica internacional. Nada menos que 63% dos entrevistados nesse estudo acreditavam que a zika era espalhada por organismos geneticamente modificados e mais da metade atribuíam a microcefalia a larvicidas e a certos tipos de vacinas.
Como explicar a aparente robustez de convicções sobre temas altamente complexos a respeito dos quais a informação de que as pessoas dispõem é precária? Pesquisadores norte-americanos levaram adiante um experimento, publicado na prestigiosa Psychological Science, que dá importantes pistas sobre esse imenso paradoxo das sociedades contemporâneas.
Eles escolheram temas de políticas públicas e pediram, com base em uma amostra representativa, que as pessoas dissessem que grau de compreensão sobre tais temas elas julgavam ter. Em seguida, pediram que as pessoas explicassem o mecanismo a partir do qual a política que elas imaginavam conhecer bem, funcionava.
A incapacidade de explicar o mecanismo fazia com que, num segundo momento, a opinião das pessoas sobre o tema se tornasse mais moderada do que era inicialmente, quando afirmavam compreender a política pública em questão. Os autores do estudo batizaram o fenômeno como a "ilusão da profundidade explanatória". Diante do convite a explicar como a política funcionava, a pessoa dava-se conta de que sabia algo sobre o tema, mas que não o compreendia, o que tinha como consequência uma alteração de sua crença.
Tendo em vista a rigidez crescente das posturas políticas no mundo atual, é um resultado importante para a ciência e para a democracia.
Mas o experimento não parou aí. Num segundo momento, em vez de pedir às pessoas que descrevessem como a política pública em questão funcionava (ou seja, por exemplo, o mecanismo que fazia com que a vacina contra varíola provocasse autismo nas crianças, uma crença absurda, mas amplamente divulgada nos EUA), agora os pesquisadores perguntavam aos entrevistados as razões pelas quais eles apoiavam ou repudiavam tal ou qual política (vacinar ou não vacinar, por exemplo). Estas razões referiam-se a uma regra, a um valor, uma opinião.
O resultado é que as pessoas, ao enumerar essas razões, mantinham suas posições originais e continuavam achando que entendiam muito da política pública em questão. A conclusão é que, na maior parte das vezes, e sobretudo quando o que está em jogo são opções e posições políticas, nosso conhecimento e os fatos que espontaneamente mobilizamos para justificá-lo é altamente seletivo. E essa seleção responde, como se pode supor, à inclinação política e aos valores das pessoas.
Combater a desinformação é mais difícil que lutar contra a ignorância. No último caso, argumentos, fatos e dados têm razoável grau de eficiência. Mas a desinformação e as teorias conspiratórias que lhe são tantas vezes subjacentes formam uma visão de mundo, constituem um fenômeno político-cultural contra o qual são necessários métodos e técnicas ainda em elaboração por parte da psicologia e das ciências da comunicação. A simples apresentação de evidências é pouco persuasiva, embora, claro, imprescindível.
* Professor Sênior do Instituto e Energia da USP e autor de "Amazônia: por uma economia do conhecimento da natureza" (Ed. Elefante/Outras Palavras). Twitter: @abramovay
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