'A Covid-19 não é uma sentença de morte para pessoas vivendo com HIV'
Ao receber o diagnóstico positivo para a Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus, Diego Callisto teve um flashback de quando esteve em uma situação parecida, 10 anos atrás, quando testou positivo para a HIV. "Foi uma ansiedade visceral que tomou conta de mim, porque não sabia o que poderia acontecer", conta o gestor de políticas públicas na área da saúde. Após 14 dias de isolamento, acompanhamento médico à distância e tratamento com antibiótico, Callisto se curou da doença.
Na segunda semana de março, ele precisou fazer uma cirurgia inadiável em Brasília, cidade onde vive com seu marido — e possivelmente foi lá que contraiu a Covid-19, após ter que retornar ao médico duas vezes, por causa de complicações no pós-operatório. "O hospital em que fui operado tem uma excelente infraestrutura, mas, quando aconteceu o surto, muito gente procurou o local para se tratar", contou Callisto ao TAB.
No dia 23 de março, após sua segunda ida ao hospital, Callisto começou a sentir dores no corpo, cansaço, tosse e febre. Consultando seu médico, também notou que perdeu o paladar e o olfato — sintomas atribuídos à Covid-19. "Não é tão simples de perceber esses sintomas. Se você está com febre e dor de cabeça, é muito difícil perceber, porque a febre em si causa um mal-estar geral em você".
Carregando todos os sintomas comuns atribuídos ao vírus, Callisto foi encaminhado para fazer os exames em um laboratório na capital federal. O procedimento foi marcado para o dia 25 de março, mas, pela alta demanda, Callisto só conseguiu fazer os testes dois dias depois — o que tomou um dia inteiro. O resultado saiu em 48 horas.
Por viver com HIV nos últimos 10 anos, Callisto também entrou em contato com sua infectologista para acompanhar seu caso e monitorar sua epidemiologia. "É muita insegurança, muita dúvida, porque é um cenário em que não sabemos de nada. Não só para as pessoas vivendo com o HIV, mas todo mundo", relata.
Além de tomar religiosamente seus medicamentos retrovirais — que o fazem ficar com a carga viral indetectável para o HIV — Callisto diz também se preocupar sua a sua saúde. Ainda assim, por conta do cenário de incerteza, teve uma crise de pânico antes de receber o seu resultado para a Covid-19. "Com a exceção do HIV, eu não fumo, me alimento bem e faço natação. No dia em que aguardei a coleta, comecei a passar muito mal de nervoso e pensei que estava tendo falta de ar. A pressão psicológica é enorme".
Após receber o diagnóstico, Callisto passou 14 dias sozinho em casa com seus cachorros, tratando os sintomas com antibiótico e dipirona. Na primeira semana, diz que mal conseguia fazer as coisas por conta da febre e da dor de cabeça. "Era como se um rolo compressor tivesse passado em cima de mim", conta.
Felizmente, os sintomas do vírus não evoluíram para um quadro mais grave da doença e, na segunda semana de isolamento, Callisto relata que já se sentia melhor, até finalmente se curar da Covid-19.
Nas redes sociais, após compartilhar sua história, Callisto conta que recebeu diversas mensagens de outras pessoas vivendo com HIV felizes por sua história positiva. "Recebi mensagens de pessoas apavoradas com o estigma e com o que pode acontecer caso elas peguem a Covid-19. Pessoas jovens falando que tinham certeza, que se pegassem a doença, estariam mortas. É importante dizer que a Covid-19 não é uma sentença de morte para pessoas vivendo com HIV. No entanto, as pessoas se sentem muito desamparadas. Estamos vivendo em um cenário de incerteza."
Não há ainda informações oficiais
Desde que a Organização Mundial de Saúde (OMS) decretou pandemia por causa do novo coronavírus, a comunidade científica corre contra o relógio fazendo pesquisas e análises para produzir dados e informações essenciais para combater a Covid-19. Com poucas informações disponíveis, a OMS expressou preocupação em relação à população vivendo com HIV no cenário atual. Por ora, pessoas vivendo com HIV devem tomar os mesmos cuidados básicos recomendados contra a Covid-19. Elas não são consideradas como grupo de risco.
O HIV (ou vírus da imunodeficiência humana) ataca principalmente o sistema imunológico ao infectar células vitais para a defesa do corpo, como o Linfócito T auxiliar (CD4), possibilitando que o portador do vírus desenvolva doenças oportunistas como tuberculose, pneumonia e infecções generalizadas. Por conta disso, a preocupação no momento é se as pessoas vivendo com HIV poderiam correr mais riscos de que a Covid-19 evolua para quadros mais graves.
"Apesar de pertencer a uma família de vírus já conhecida e pesquisada, pouco sabemos sobre o comportamento da SAR-CoV-2 entre as pessoas vivendo com HIV. Até o início de abril, havia apenas seis publicações tratando especificamente do assunto. Estamos ainda no processo de construção desse conhecimento no campo, correndo contra o relógio para entender esse cenário", explica Sandra Wagner Cardoso, médica e pesquisadora do Laboratório de Pesquisa Clínica em DST e Aids do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz).
Ao todo, são 37.9 milhões de pessoas vivendo com HIV ao redor do mundo, segundo o último relatório publicado em 2018 pela OMS. Até o momento, não há dados que comprovem que essa população deva ser considerada de risco, mas alguns casos devem ser levados em conta como, por exemplo, pessoas com baixa contagem da CD4 e as que não tomam os medicamentos da terapia antirretroviral. "O que podemos falar é que alguns fatores também pesam para quem está vivendo com HIV — como estar acima de 60 anos de idade e ter uma comorbidade, como a hipertensão arterial, a diabetes e, especialmente, se essa doença não estiver controlada", diz Cardoso.
Por ora, Cardoso tem observado que há poucas pessoas soropositivas com a Covid-19 internadas no hospital onde trabalha. "É muito difícil falar de algo sem dados epidemiológicos concretos. Aparentemente, o comportamento da doença não é diferente em pessoas vivendo com HIV — pelo menos não para pior. Onde trabalho, temos oito pessoas hospitalizadas sem HIV ,com a Covid-19, e duas pessoas hospitalizadas com HIV. Não sabemos como essa proporção vai ficar no Brasil porque ainda estamos subindo a curva e não atingimos nosso pico de casos", diz.
Medicamentos usados no tratamento da HIV são testados para a Covid-19
Assim com a cloroquina e a hidroxicloroquina, alguns medicamentos de terapias antirretroviral do HIV estão sendo testados no tratamento para a Covid-19. O Atazanavir, por exemplo, foi testado laboratório para avaliar se é eficiente na cura de pacientes acometidos pelo novo coronavírus. Em uma pesquisa feita pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em células in vitro, a droga teve uma comportamento positivo ao inibir a replicação viral e reduzir o quadro inflamatório das células infectadas. No entanto, Cardoso alerta que a pesquisa ainda é insuficiente para bater o martelo sobre um bom tratamento contra o vírus, e explica que está desenvolvendo um projeto de pesquisa que possa avaliar diretamente o comportamento da Covid-19 em pessoas vivendo com HIV.
"A gente ainda não sabe exatamente o que está acontecendo. Pode ser que as pessoas vivendo com HIV tenham ficado mais temerosas e tomado mais precauções, pode ser também que alguns desses remédios (e não todos) tenham uma ação contra a Covid-19, criando algum tipo de proteção para quem usa as substâncias. Essas são dúvidas que a gente ainda precisa responder", conclui.
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