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Tempo de incertezas: por que é preciso ter cautela para analisar Covid-19

RAFAEL MARCHANTE/REUTERS
Imagem: RAFAEL MARCHANTE/REUTERS

Mateus Araújo

Colaboração para o TAB

08/05/2020 04h00

A pandemia do novo coronavírus fez nascer uma numerosa produção intelectual sobre abalos econômicos, sociais e políticos da doença. Filósofos, sociólogos, economistas e historiadores têm tentado traçar teorias e reflexões sobre o futuro das sociedades abaladas pela atual crise sanitária.

Teóricos como a norte-americana Judith Butler, o italiano Giorgio Agamben e o esloveno Slavoj Zizek já deram suas opiniões, analisando a conjuntura pela perspectiva política do campo da esquerda. As ideias logo desagradaram aos conservadores, como o ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo, que criticou o novo livro de Zizek, "Pandemia: Covid-19 e a Reinvenção do Comunismo", porque expõe, segundo ele, "o jogo comunista-globalista de apropriação da pandemia para subverter completamente a democracia liberal e a economia de mercado".

A quantidade de publicações evidencia a urgência das ciências sociais de raciocinar sobre a pandemia. Numa pesquisa em um dos principais sites de venda de livros no Brasil, encontramos pelo menos 20 títulos relacionados ao novo coronavírus — alguns, inclusive, a serem lançados somente em junho. Outro exemplo é a criação de dossiês temáticos, em sites e blogs, reunindo materiais escritos por estudiosos de vários países.

Essa celeridade em pensar e publicar sobre uma realidade tão adversa é desafiadora, como lembra a psicóloga Luciana Dadico, professora de pós-graduação da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP (Universidade de São Paulo). "Em um momento de crise, de medo, perdas e incertezas, a crítica constitui uma ferramenta importante para uma compreensão mais ampla dos problemas e elaboração de estratégias, comuns e individuais", diz ela. "Mas também, como resultado mesmo disso, para que as pessoas sintam-se menos sozinhas e culpadas, e sim parte de um coletivo responsável pelo cuidado mútuo."

Para Dadico, uma análise pertinente "não é uma tarefa nada fácil", porque exige formação e informação atualizada para fundamentar o raciocínio, além de certa reclusão para desenvolvê-lo. "Se estou colada à notícia o tempo todo, não tenho tempo de estudar, nem de pensar com tempo. Por outro lado, se me afasto da notícia, não consigo me comunicar com as pessoas", explica a psicóloga.

Intelectual de retaguarda

Mais recentemente, quem se juntou ao grupo de pensadores a publicar textos sobre o novo coronavírus foi o sociólogo português Boaventura Sousa Santos. Ele lançou no final de março o e-book "A Cruel Pedagogia do Vírus", sobre o legado da Covid-19 nas relações dos seres humanos entre si e com a natureza.

No próprio livro, o professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra é cauteloso sobre os risco de uma teorização precipitada. "A pandemia confere à realidade uma liberdade caótica, e qualquer tentativa de aprisioná-la analiticamente fracassa porque a realidade vai sempre adiante do que pensamos ou sentimos sobre ela", escreve. "Os intelectuais são os que mais deviam temer essa situação."

Santos criticou a precipitação de Agamben, que viu nas medidas de isolamento social o surgimento de um "Estado de exceção", e de Zizek, para quem o "comunismo global" seria a única solução em meio à pandemia. Ambos, no entanto, voltaram atrás recentemente.

Em entrevista ao TAB, Boaventura afirma que sua reflexão não parte de um lugar distante dos cidadãos comuns - como fazem outros intelectuais, segundo ele - mas da escuta dos movimentos sociais aos quais é ligado. "Não me considero um intelectual de vanguarda, como meus colegas europeus ou não europeus; sou um intelectual de retaguarda", diz.
"Meu primeiro impulso na crise veio de pedidos do Brasil, da Colômbia e da Argentina, normalmente das favelas, do movimento indígena e do movimento de presos. Muitas dessas populações já se sentem abandonadas pelo Estado, já sofriam com a fome e outras doenças, e com a falta de habitação, de remédios e de saneamento", conta ele, que já organiza um novo livro - ampliação do ensaio lançado - "O Futuro Começa Hoje".

"O Brasil é um caso único no mundo, onde há dois problemas ao mesmo tempo: a pandemia e a crise política. Portanto, eu compreendo a perplexidade dos brasileiros, porque vivem todos os dias a abstrair sua atenção daquilo que deveria ser, obviamente, o objetivo principal: salvar vidas. As pessoas procuram também o intelectual para lhes dar uma perspectiva, e isso obriga a um contexto de trabalho intelectual diferente do habitual", conta. "Recentemente, estive por três horas em uma teleaula com professores de Manaus e professores da universidade pública de Tabatinga, nos confins do Amazonas, e eles se sentem muito sozinhos, muito isolados, estão numa zona de grande incidência da pandemia, com o sistema de saúde colapsado."

Esse é um momento que, segundo Boaventura, os intelectuais precisam ter "muito cuidado ao lidar com as emoções e com o que se diz", para manter o equilíbrio entre o medo e a esperança. "O medo cria pânico, e as pessoas desistem de lutar. É preciso muita humildade, e por vezes até voltar atrás, como fizeram Agamben e Zizek."

Pensador não é profeta

Dizer "não sei" faz parte, e não torna nenhum intelectual menos intelectual nesse momento de incertezas. É o que acredita a filósofa Djamila Ribeiro, para quem essa não é uma hora de respostas apressadas.

Especial Consciência Negra - Djamila Ribeiro - Marcus Leoni/Folhapress - Marcus Leoni/Folhapress
A escritora e filósofa Djamila Ribeiro
Imagem: Marcus Leoni/Folhapress

Ela endossa a fala de Boaventura Sousa Santos sobre a estruturação da crítica em meio à pandemia do novo coronavírus: é melhor ouvir e ampliar as vozes da sociedade, em vez de traçar teorias e projeções efêmeras. Entre os poucos textos que escreveu até agora sobre Covid-19 está a história da senhora de 63 anos que morreu em decorrência da doença, no Rio, publicada em sua coluna na Folha de S.Paulo. A mulher era empregada doméstica, e teve contato com o vírus através de seus patrões, então recém-chegados de uma viagem à Itália.

"É importante a gente tentar entender, processar o que está acontecendo. Mas o que importa hoje é refletir o quanto o avanço neoliberal é prejudicial, o quanto a defesa do sistema público de saúde — que já era preconizada por muitos grupos da sociedade — realmente é essencial. No momento de pandemia, a gente deflagra ainda mais as desigualdades já existentes, posto que são estruturais", diz ela Djamila Ribeiro.

"As pessoas têm uma pretensão de querer explicar o que nem elas têm certeza. Eu gosto muito de romper com essa ideia de que a gente tem que saber falar sobre tudo, ou saber dar resposta sobre tudo, até porque somos seres humanos atravessados por emoções e incertezas, e muitas vezes o melhor é fazer é não se apressar."