'Corona de férias': foliões da quarentena ostentam selfies em festas
Os beijinhos e brigadeiros na mesa de centro dividem espaço com plaquinhas de alerta com os mantras dos novos tempos: "mantenha distância", "use álcool em gel" e "lave as mãos". A Covid-19, doença que já matou mais de 36 mil pessoas no Brasil, virou inspiração para algumas festas temáticas em todo o país. Até infantis.
Internautas batizaram as celebrações em tempos de pandemia como #covidparty ou #coronadeférias. A última expressão refere-se ao título de uma música de Neguinho da Beija-Flor lançada em abril, que diz "De quarentena sem nada a fazer, curtindo o lazer/ Daí o que tanto se pedia/ Feriado todo dia, agora estão reclamando do quê".
Anfitriã de uma "Covid Party", a representante de vendas Ariane Cavinato escolheu o distanciamento social como tema da festa seu aniversário de 37 anos, em 28 de abril. "Sempre comemoro em algum bar ou restaurante. Estava bem triste por ter desmarcado meus planos e também por causa do climão da pandemia. Até que tive essa ideia de, como dizem, fazer do limão uma limonada", conta, aos risos. O apartamento na zona norte de São Paulo, onde vive com a mãe, recebeu enfeites com simpáticos cartuns do novo coronavírus e faixas de isolamento — aquelas com listras amarelas e pretas.
Cavinato e sua mãe recepcionaram um petit comité com as duas irmãs, dois cunhados e dois sobrinhos. Havia mais de um mês que a família não se reunia. "Sou grande defensora da quarentena. Como minha mãe está no grupo de risco, pedi que cada um dos convidados levasse uma muda de roupa para usar aqui em casa. Assim que chegaram, deixaram os sapatos na porta e foram para o banho", garante, acreditando (equivocadamente) que, com essas medidas, obedeceu recomendações de saúde dos especialistas.
As fotos da decoração e do bolo sabor Prestígio com placas "Parabéns, quarentener" e "Fique em casa" foram compartilhadas por muitos usuários no Instagram. "Sei que várias pessoas foram abaladas de diversas formas pela Covid-19, mas não quis fazer piada, nem desrespeitar ninguém, só tornar meu dia mais leve", afirma.
Apesar da repercussão nas redes sociais, Ariane teve sorte de não ter ido parar no feed de uma das mais de 50 páginas no Instagram que exibem fotos dos festeiros da quarentena. Em tom de denúncia, a maioria delas se intitula "Vacilões.covid" e, em seguida, vem o nome da cidade vigiada. "É desesperador! As pessoas precisam entender de uma vez por todas que furar o distanciamento social só vai prolongar o período de reclusão", diz o administrador da "Vacilo.covidsp", que prefere não ser identificado. "Criei o perfil porque acredito que muita gente vá pensar duas vezes antes de vacilar, com medo da exposição."
Nenhum controlador desses perfis que denunciam os fura-quarentena quis revelar a identidade nesta reportagem por medo de retaliações. O "fiscal paulistano" conta que tem 22 anos, é universitário e precisa usar diariamente o transporte público para dar expediente em uma empresa como atendente de telemarketing. "Infelizmente, não posso ficar em casa, confinado. Moro com meus pais idosos e me preocupo com eles." Cansado de ver tantas festas na vizinhança, ele e uma amiga se inspiraram nas denúncias de outras cidades para lançar a versão paulistana. "Ninguém gosta de ficar recluso. Só aguentamos isso para não morrer nem matar. Fico com muita raiva ao ver o descaso de tanta gente."
Arte, trabalho e vacilo
Alguns desses "indiciados virtualmente" explicam que não se trata de displicência, mas problemas financeiros. Com um cachê em torno de R$ 23 mil reais por apresentação, o cantor goiano Dan Lellis, 26 anos e 1 milhão de seguidores no Instagram, diz que sofre com a agenda de shows esvaziada. Até março, fazia em média 15 por mês. Agora, zero. Para amenizar o desfalque na conta bancária, resolveu seguir com o expediente em seu estúdio em Goiânia, onde produz clipes e faixas, a partir de R$ 10 mil reais. "Mantenho todo o cuidado, com higiene, álcool em gel em todo canto... Mesmo assim, o movimento reduziu 60%", lamenta.
Em 12 de maio, Lellis foi denunciado na página "Vacilocovid.bsb" por gravar um clipe em um estúdio fechado em Brasília. O vídeo reproduz uma balada bem ao estilo do saudoso mundo antigo: bons drinques, pista lotada e muita pegação (veja abaixo). "O trabalho era de outro cantor, o Sheik, e eu fazia uma participação especial. Trabalhamos com uma equipe bem reduzida, só com doze pessoas", minimiza. Lellis se ressente por ter sido acusado na rede social. Preocupado com a pandemia, distribuiu 450 cestas básicas em sua cidade natal, Palmeiras de Goiás. "Isso ninguém mostra. Acho que é pura maldade, querem ganhar curtidas às minhas custas, porque sou artista."
O administrador da página nega perseguição. "Lellis pode até fazer um ótimo trabalho filantrópico, mas coloca vidas em risco com esse tipo de comportamento", conta. Ele ressalta que não quer expor ninguém, mas mostrar as festas, especialmente de pessoas influentes do Distrito Federal.
O perfil da capital federal é um dos mais populares com esse tipo de denúncia e, atualmente, acumula quase 14 mil seguidores. Como todos os "militantes da quarentena", de vez em quando a página sofre alguma tentativa de invasão hacker. Quatro empresários, todos do ramo de eventos, defendem o feed. "Estamos completamente parados, vivendo das nossas economias. O dinheiro e o trabalho vêm depois da vida, da saúde. A falta de compaixão nos revolta."
Outros furões adotam discursos bem mais dramáticos do que o apresentado pelo astro pop goiano. "Amaria ficar quietinha no meu lar, mas alguém vai pagar minhas contas? Vou viver de quê?", pergunta Fernanda Carrara, 43, proprietária de um salão de cabeleireiros que apareceu na página de Piraju, município a 330 quilômetros de São Paulo.
Donos de uma loja de artigos religiosos, o casal Thiago Belkiman, 33, e Aline Negrão, 30, também esteve no mesmo perfil, mas por promover churrascos com amigos em casa. "Se nossas famílias estão saudáveis, por que a gente não pode se juntar?", diz Belkiman.
Alinhado com o discurso do presidente Jair Bolsonaro, os dois desconfiam da gravidade da Covid-19. "Uma vez, tive dengue, também uma doença que mata. Fiquei mal por 14 dias e sobrevivi. Aqui em Piraju, nem 20% obedece essa regra, que é coisa do Doria", protesta, citando o governador João Doria, de São Paulo.
Belkiman acredita em uma trama política. "Distanciamento social é para quem está com a vida ganha." Com a loja fechada, ele e a mulher passaram a fazer e vender pães caseiros para sobreviver. "Temos a casa e prestações de dois carros para pagar. A quarentena é uma hipocrisia! E esses fiscais da internet compactuam com isso, por razões políticas."
Uma das administradoras da "VacilosdocovidPiraju" rebate o conterrâneo. "O discurso 'isolamento é só para gente rica', elaborado pelo governo e repetido por seus seguidores, morre quando se trata de uma doença capaz de afetar qualquer um", contesta. Ela acrescenta que a página é administrada por um time de advogados criminais, médicos, empregadas domésticas e lojistas. "Percebemos que muita gente se conscientizou graças aos nossos posts e hoje colabora conosco. Mas tem outras que se sentem imunes. Não há outra explicação para isso senão a ignorância", acredita.
Negacionismo e bolhas
A quarentena é um sacrifício e ninguém gosta de privações. "Nessa atual fase da pandemia, cheia de incertezas, é como se estivéssemos há dias perdidos em um deserto e surge aquele desespero: 'em que momento o suplício vai acabar?'. Cada um reage de um jeito a essa aflição", analisa Christian Dunker, psicanalista e professor da USP (Universidade de São Paulo).
Sobre o comportamento dos "fiscais da quarentena", ele compara ao de ex-fumantes. "Precisar largar um prazer para não arriscar a vida é um tremendo martírio. Ao mesmo tempo, observar outras pessoas desprezando evidências científicas para seguir com seus deleites ameaçadores dá uma baita raiva. Eu consigo entender essa cólera."
Sobre a turma em "corona de férias", há grupos com diferentes gatilhos. Primeiro, Dunker cita os "familiaristas", que acreditam estar imunes porque conhecidos e parentes não se contaminaram. "É autoengano, um negacionismo: esse pessoal se esquece de que não adoeceu porque boa parte da população se submete a uma quarentena", alerta o professor.
Outra parcela da população burla a regra simplesmente por não conseguir suportar a ansiedade diante das inúmeras renúncias. E, finalmente, existem os fanáticos, que avalizam teorias conspiratórias, sem embasamento científico. Parte deles opta pela crença cega para defender seus interesses econômicos. "Esses são os vírus dentro do vírus", sentencia Dunker.
Ricos e pobres
Doutoranda em antropologia social, Lis Furlani Bianco afirma que parte da elite se vê em uma realidade segregada, pairando sobre os problemas envolta numa bolha. "A frase infeliz de Guilherme Benchimol, CEO do Grupo XP, ao proclamar: 'o pico da Covid-19 nas classes altas já passou', demonstra bem esse tipo de pensamento, como se o poder econômico lhes provesse uma imunidade, uma separação privilegiada", diz.
Na periferia, muitos seguem com a rotina normal de trabalho diário e partem para os bailes à noite como forma de aliviar pressões. Vivem em residências precárias e ainda foram escalados como "serviço essencial" na construção civil e no trabalho doméstico. Esse cenário reflete especialmente o histórico do país, segundo afirma Flavio Mendes, mestre em psicanálise pela UFES (Universidade Federal do Espírito Santo). "Passamos por mais de 350 anos de escravidão. O povo brasileiro tornou-se em geral tolerante. Reagimos pouco ou com ineficiência à opressão", lembra.
Para Daniel Martins de Barros, psiquiatra do Hospital das Clínicas, a discussão sobre a quarentena extrapolou questões técnicas e partiu para a seara moral. "Hipoteticamente, se duas pessoas seguem a quarentena, por que não poderiam se ver? Sem entender contextos, defender radicalmente uma ideia torna-se uma militância rasa, que se restringe aos pólos ideológicos de esquerda ou direita", explica o psiquiatra.
Barros lembra que ainda na década de 1970, o escritor futurista norte-americano Alvin Toffler previu que as pessoas tenderiam aos extremos, conforme a realidade se tornasse mais complexa. "Por causa da dificuldade de lidar com as informações intrincadas, muita gente se refugia na visão simplista da polarização, com argumentações quase religiosas." Ele acredita que esse conflito mundial permanecerá insolúvel durante os próximos anos. "A realidade é muito mais enredada do que a primeira análise superficial. A partir dessa premissa, poderemos entender o outro, achar um meio-termo e ressuscitar o diálogo", observa Barros. "A interlocução deveria ser o fundamento da civilização, essa arte humana que nos diferencia dos animais."
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