Topo

Touradas ainda resistem em Portugal. Tradição ou atraso?

Luís Rouxinol, um dos toureiros mais populares de Portugal - Divulgação
Luís Rouxinol, um dos toureiros mais populares de Portugal Imagem: Divulgação

Luciana Alvarez

Colaboração para o TAB, de Lisboa

14/07/2020 04h00

As touradas são tortura pública de animais ou expressão cultural? Um símbolo do atraso ou a manutenção de uma tradição ancestral? As possíveis definições para esse espetáculo violento voltaram recentemente a acirrar os ânimos na sociedade portuguesa. Cinco projetos de lei — um deles de iniciativa popular com 25 mil assinaturas — pediram o fim do financiamento público às touradas. O tema foi discutido no Congresso e, no dia 10 de julho, todos os projetos foram rejeitados. Portanto, tudo continua como estava: as diversas esferas dos governos, assim como empresas estatais, se mantêm autorizadas a patrocinar touradas.

Ironicamente, o tema que divide a opinião pública levou para o mesmo lado tanto partidos de direita (CDS-PP, Chega e PSD), quanto de esquerda, como o PCP e a maioria dos deputados socialistas do PS. Contra o financiamento público das touradas ficaram apenas partidos menores — o Partido Ecologista os Verdes, o PAN-Pessoas, Animais Natureza e o Bloco de Esquerda. Em nota, Inês de Sousa Real, líder do PAN, lamentou o lobby econômico da indústria das touradas e o uso de dinheiro público nestes eventos. "Em pleno século 21 não faz qualquer sentido que o sofrimento animal tenha o alto patrocínio do Estado."

A tourada "à portuguesa" é um pouco diferente da prática espanhola, mais conhecida internacionalmente. Em geral, em Portugal, o touro é enfrentado por um toureiro montado a cavalo. Há ainda a modalidade chamada pega ou forcado, em que oito homens lutam contra o touro sem qualquer aparato de defesa, com o objetivo de imobilizá-lo. Outra diferença importante é que, em território lusitano, o touro não pode ser morto na arena; ele é abatido posteriormente num matadouro.

'Violência socialmente aceitável'

No país são realizados, anualmente, entre 170 e 200 espetáculos de tauromaquia. O público desse espetáculo, que na década de 1990 chegou a mais de 700 mil pessoas, tem caído de maneira consistente, com registro de menos de 400 mil no ano passado. Apesar de ser uma tradição rural e, portanto, com mais adesão no interior do país, mesmo no centro de Lisboa há uma "praça de touros" em atividade.

Além de Espanha e Portugal, as touradas são autorizadas e praticadas no sul da França e em países da América Latina como México, Colômbia, Venezuela e Peru.

O sociólogo Fernando Ampudia de Haro, autor do livro "O Processo Civilizacional da Touradas: Guerreiros, Cortesãos, Profissionais... e Bárbaros?", reconhece, em conversa com o TAB, que há algo de anacrônico nas touradas — mas explica que o espectador vê mais do que violência contra um animal. "Está a observar violência estetizada, integrada em normas e procedimentos de lide, com regras sobre o que é ou não correto fazer; está a ver uma narrativa de oposição entre força e destreza. Não é o fascínio pela violência em abstrato, é o fascínio por uma atividade que reconfigura a forma de apresentar a violência de um modo socialmente aceitável", afirma.

Haro lembra que na sociedade existem manifestações análogas de apresentação tolerável da violência, como esportes de combate, simulações de guerra, videogames e filmes.

Luís Rouxinol, um dos principais toureiros de Portugal, com mais de 30 anos de carreira, acredita que o discurso anti-touradas voltou a crescer por razões populistas. "Sempre houve quem gostasse e quem não gostasse de espetáculos tauromáquicos. O problema é que hoje em dia quem não gosta quer impor a sua vontade aos outros. Existem pequenos partidos políticos que chegam ao governo e conseguem ganhar visibilidade quando falam de touradas, existindo apenas para proibir e condicionar a liberdade de outros", criticou.

O toureiro argumenta, em entrevista ao TAB, que a maioria das pessoas que se manifestam contra as touradas não conhecem a realidade dos animais, que supostamente são mais bem tratados do que seus "primos" destinados a alimentar a população. "Os animais de raça brava, sejam machos ou fêmeas, têm durante a sua vida a mínima intervenção do homem, criados no campo com todas as condições — contrariamente à maioria dos outros bovinos, que vivem fechados na engorda antes de irem para matadouros", explicou.

Da mesma forma que existem várias raças de cães, também existem várias raças de bovinos. A raça chamada touro bravo ou de lide, dizem os criadores, tem uma característica específica que a diferencia dos outros bovinos e da maioria dos herbívoros: são animais "agressivos" que, quando pressentem perigo, atacam em vez de fugir.

Rouxinol alega também que, na prática, a votação no Congresso não traria nenhum impacto, pois as touradas já não recebem patrocínio público. Contudo, os defensores dos projetos de lei rejeitados dizem que o dinheiro do Estado chega indiretamente, com apoios para a criação dos touros, reforma das praças onde se realizam as touradas, assim como pela compra e distribuição de ingressos por governos municipais.

Cultura sim, mas ultrapassada

Mesmo entre os defensores da abolição das touradas, o valor cultural, artístico e desportivo é reconhecido. Em conversa com o TAB, o biólogo Manuel Eduardo dos Santos, professor universitário e membro do movimento Basta, conta que há comunidades que usam eventos tauromáquicos sazonais para promover a socialização e colaboração entre as pessoas. Portanto, seria importante encontrar alternativas. "Sempre envolvidas em controvérsias, as touradas perderam muita importância nas últimas décadas, estando praticamente confinadas a algumas regiões da Estremadura, Ribatejo e Alentejo e na Ilha Terceira (Açores), onde há pouca oferta cultural alternativa."

Ainda que seja uma tradição, Santos defende que tradições cruéis precisam acabar. Segundo ele, a legislação portuguesa que impede a morte do touro na arena representa uma crueldade ainda maior. "Os animais são encerrados nos curros ainda vivos, mas em grande sofrimento. Nesse momento são arrancadas todas as bandarilhas cravadas no corpo do touro, longe dos olhares do público, provocando grandes lesões. Depois desse processo eles são mantidos em compartimentos muito pequenos dentro de um caminhão, sem água nem alimento e sem a possibilidade de se deitar, debaixo de temperaturas muito elevadas. É nessas condições que são transportados para o matadouro", conta o biólogo. "É um sofrimento atroz e prolongado que a maioria das pessoas desconhece."

Apesar da derrota no Congresso, Santos diz que o Basta vai seguir lutando legalmente para cumprir seu propósito de abolir as touradas do país. Uma das bandeiras do movimento anti-touradas no caminho para o fim total é estabelecer a idade mínima de 18 anos para os espectadores. "Em Portugal, a lei estabelece que são espetáculos para maiores de 12 anos. No entanto, a lei permite que as crianças maiores de 3 anos possam entrar na praça de touros se forem acompanhadas por um adulto. Mas a fiscalização das touradas é negligenciada pelas autoridades em todos os aspectos, e muitas vezes vemos bebês nas praças", afirma.

Para o porta-voz do Basta, o fim das touradas em Portugal é certo; o trabalho que fazem é acelerar o processo. Já o sociólogo Haro não tem tanta certeza desse fim, pois vê a possibilidade de a prática se transformar, adaptando-se ao século 21. "A tourada sempre foi dinâmica; foi mudando com os tempos. As manifestações poderiam ser mais ajustadas à sensibilidade das gerações vindouras: touradas com velcro nos touros para evitarem ser feridos, concursos de recortadores (pessoas que fazem fintas e acrobacias à frente dos touros sem contato com o animal) com uma lógica mais desportiva", exemplifica.

A questão que ameaça as touradas, explica Haro, é que atualmente esse tipo de espetáculo tem a concorrência de outras atividades que despertam emoções de perigo e risco nas pessoas, como os esportes radicais e a realidade virtual, sem a necessidade de incluir qualquer animal. "Impossível fazer prognósticos (sobre a abolição das touradas). Não sei; não podemos cair na tentação de sermos astrólogos", diz.