A expedição que vai mapear as populações de antas na Amazônia
Quando a anta come frutos, ela os ingere inteiros. As sementes acabam sendo devolvidas ao meio ambiente pelas fezes. Mas o bicho é daqueles que se movimentam muito pelas matas — cientificamente, considera-se sua "área de uso" (área de circulação) um território de cerca de 500 hectares. Isso provoca um fenômeno interessante: a dispersão de sementes. Por isso a anta é conhecida como "jardineira da floresta".
Desde 1996 a engenheira florestal, ecóloga e conservacionista Patricia Medici, do Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ), se dedica a estudar esse representante da fauna brasileira, o maior mamífero terrestre da América do Sul. E agora ela se prepara para uma aventura inédita: fazer um detalhado e sistemático estudo sobre a espécie no maior bioma do Brasil, a Amazônia.
"A anta está na lista vermelha [ou seja, ameaçada de extinção] tanto de acordo com a União Internacional para Conservação da Natureza como segundo o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade). Mas é importante notar que, no Brasil, as condições desse animal em diferentes biomas são diferentes — as ameaças são diferentes", diz ela, ao TAB.
O Pantanal, por exemplo, é considerado o paraíso das antas. "Há uma área contínua, enorme, bem conservada, onde a população está saudável, se reproduz bem", pontua a pesquisadora. No Cerrado, por outro lado, o mar não está para peixe — ou melhor, o mato não está para anta. "É o grande epicentro do desenvolvimento econômico do País, com uma colcha de retalhos monstruosa com todas as ameaças: atropelamentos em rodovias, agricultura em larga escala e todos os agrotóxicos que vêm com essas culturas, caça, perda e fragmentação do habitat."
Na Mata Atlântica, primeiro bioma estudado pela Iniciativa Nacional para a Conservação da Anta Brasileira — programa de pesquisa criado por Medici —, a situação também não é boa. O bioma já está historicamente bastante fragmentado, por causa do desenvolvimento histórico, e a malha viária é abundante. Na caatinga, o bicho nem mais existe. A Amazônia é um local que ainda carece de estudos abrangentes. "Sabemos que há caça realizada nem sempre de forma sustentável, mineração, agricultura em larga escala", lembra ela.
Medici e sua equipe de cinco pesquisadores já traçaram quatro regiões da floresta onde o trabalho deve ser iniciado no ano que vem — houve um atraso devido à pandemia de Covid-19. A ideia é capturar animais e instalar neles colares que permitem monitoramento. "Em algumas áreas vamos estabelecer grids com armadilhas fotográficas, que nos permitem analisar comportamento, organização social, reprodução, enfim, coletar informações importantes."
Uma expedição preliminar aos locais foi realizada em junho de 2019. As quatro áreas delimitadas têm contextos diferentes. Uma é utilizada para mineração, outra para exploração de óleo de palmeira, uma terceira foi desmatada para agricultura em larga escala e a última tem manejo seletivo da floresta.
Se a pandemia atrapalhou um pouco os planos do grupo, um reconhecimento obtido por Medici em 2020 acabou ajudando a viabilizar o projeto. Em abril, ela recebeu o prêmio principal do Whitley Fund for Nature, chamado de "Oscar verde", por ter criado o maior banco de dados sobre a anta no mundo. Acabou ganhando 60 mil libras (R$ 420 mil). O dinheiro, garante ela, vai todo para o projeto da Amazônia.
"Existe uma grande dificuldade em estudar a anta. É um animal difícil, caro de ser estudado, porque é noturna, solitária, de grande porte. Requer que utilizemos métodos indiretos, como telemetria, colares de monitoramento à distância, armadilhas fotográficas? Todos esses instrumentos são caros", comenta Medici. "Para a instalação dos colares, por exemplo, precisamos de veterinários na equipe, e o processo é feito mediante aplicação de anestesia."
Reconstrutora de florestas
A anta brasileira, cujo nome científico é Tapirus terrestris, é uma gigante da nossa fauna. Pode chegar a 300 quilos, 1,10 metro de altura, 2 metros de comprimento. Trata-se de um parente dos cavalos e dos rinocerontes, completamente herbívoro. "A importância desse bicho é grande porque se trata de um animal dispersor de sementes. A anta come frutos e, quando defeca, espalha as sementes por diversos locais. Suas fezes também servem como fertilizante", comenta ao TAB o biólogo e divulgador científico Guilherme Domenichelli, autor do livro "Criaturas Noturnas: Os Animais Que Vivem na Escuridão dos Biomas Brasileiros" e criador do canal Animal TV, no Youtube.
Um estudo publicado em fevereiro de 2019 na Biotropica, sobre ecossistemas tropicais, mostrou a importância da anta para a recuperação de florestas degradadas. Mas há bastante desconhecimento. "Há quem acredite que são parentes de porcos, de capivaras, de tamanduás? Muitos me perguntam se a anta come formiga, por exemplo", ilustra a pesquisadora.
Patricia Medici conta que ainda vê muito preconceito quanto à anta por causa da conotação pejorativa que seu nome acabou adquirindo. "Muita gente associa o animal à falta de inteligência e isso afeta enormemente a questão de as pessoas sentirem orgulho da presença da anta no país, reconhecerem a importância dela", afirma. Não à toa, sua organização tem insistido em divulgar a importância do bicho e até uma hashtag vem sendo disseminada nas redes sociais: #antaéelogio. "Ainda não conseguimos fazer uma campanha, envolvendo personalidades brasileiras, por exemplo, mas já mensuramos que a hashtag tem sido utilizada por gente de fora da nossa organização. Pegou, ainda não do jeito que gostaríamos, mas pegou", comenta.
O biólogo Filipe França, pesquisador da Universidade de Lancaster, no Reino Unido, e da Rede Amazônica Sustentável, acredita que a solução é reverter a zoeira em carisma. Ele estuda os besouros rola-bosta, também importantíssimos para espalhar nutrientes e sementes pela floresta. "No começo há uma certa repulsa das pessoas, mas na maioria das situações, isso vai se transformando em empatia. O nome tão diferente termina abrindo portas", comenta ele, ao TAB. "Sempre vendo a importância do bicho: digo que, apesar do nome com conotação pejorativa, ele tem um papel fundamental na natureza. A natureza, aliás, é composta por uma rede de organismos e todos eles são importantes. Precisamos dar valor a cada um."
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