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Tarô 2.0: novas gerações recuperam tradição do tarô, redesenhando as cartas

Deck Kaleidadope de tarô, de Krystal Banner - Divulgação
Deck Kaleidadope de tarô, de Krystal Banner Imagem: Divulgação

Bruna Corsato

Colaboração para o TAB, de Berlim

13/09/2020 04h01

Mesmo quem nunca fez uma leitura reconhece as imagens dos arcanos de um deck de tarô. As cartas, que existem há séculos, agora têm sido retomadas por jovens que, sem culpa nem vergonha, aderem a um misticismo sincrético. De acordo com uma das gigantes da distribuição dos baralhos de tarô, as vendas subiram 263% entre 2016 e 2017. Na editora Rider Books, as vendas do deck Smith-Waite triplicaram nos últimos cinco anos. Lançado originalmente em 1910, este permanece como o mais popular entre os decks até os dias de hoje.

Apesar da grande circulação e na transformação dos símbolos místicos em ícones pop, as origens do tarô são um tanto misteriosas.

A tradição de jogar cartas tem passado nômade. Começa com os chineses no século 9, ainda com caráter lúdico, para então ganhar o mundo. No caminho até o norte da África, já tinham assumido forma similar ao que hoje conhecemos como um sistema de naipes. As cartas Mamluk, como eram chamadas no Egito, tinham também inscrições caligráficas com previsões sobre o futuro. Foi só no século 15 que chegaram à Itália e passaram a se chamar Triunfo, a origem mais comumente atribuída ao tarô.

Símbolos e simbologia

Atravessando os séculos, a maior constante do tarô é sua essência mutável: os símbolos refletem a cultura em que estão inseridos, adaptando-se a quem está manipulando as cartas.

Foi justamente essa manipulação simbólica que chamou a atenção de grandes personalidades do passado, como o psicanalista suíço Carl Jung (1875-1961) e o pintor espanhol Salvador Dalí (1904-1989). O expoente do Surrealismo foi mais além: não só fez seu próprio deck como retratou-se como um dos arcanos maiores, O Mago. "As cartas existiram quase sem alteração por séculos, por isso acredito que o ressurgimento do interesse seja na verdade pela criação do tarô", compartilha a diretora do Witchstarter Meredith Graves, responsável por projetos ligados ao misticismo da plataforma de crowdfunding Kickstarter.

Angela Davis vira o arcano maior Justiça, do tarô, pelas mãos da designer Mieke Marple - Divulgação - Divulgação
Angela Davis vira o arcano maior Justiça, do tarô, pelas mãos da designer Mieke Marple
Imagem: Divulgação

Apesar de sua longevidade, o tarô sempre existiu às margens da sociedade. "Provavelmente, o que atrai tanto as pessoas fora do mainstream é o fato de ele ser tão aberto", explica Mieke Marple, 34. A artista visual norte-americana é responsável por transformar Angela Davis no arcano maior Justiça, para levantar fundos para movimentos ativistas nos Estados Unidos.

O deck mais difundido hoje em dia, o Smith-Waite, foi publicado há mais de 100 anos. A nova geração de leitores de tarô permite-se discordar dele. A artista multimídia e taróloga brasileira Edu Selva, 24, acredita que "os clássicos não contemplam a diversidade dos seres humanos, e acabam distanciando as pessoas das cartas". Stephanie Adams-Santos, 32, é uma poeta e "bruxa". Com ascendentes da Guatemala e dos Estados Unidos, ela vai mais além. "'Clássico' normalmente é código para se referir às tradições heteronormativas do oeste europeu. À medida que mais vozes se levantam e se fazem ouvidas, o que é considerado clássico inevitavelmente se transforma."

Por isso, a nova onda do tarô trouxe consigo também um número enorme de novos decks que reinterpretam os clássicos, tornando-os inclusivos. As representações incluem negros, queers, gordos e trans.

Carta do deck Nosotras, feito por Paula Maria Riemer, oraculista, escritora e co-criadora do @nosotrastarot, junto com a Elisa Riemer - Divulgação - Divulgação
Carta de tarô do deck Nosotras, criação da dupla Paula Maria Riemer e Elisa Riemer
Imagem: Divulgação

À imagem e semelhança

"O mundo não é mais como era naquela época. Nós temos cores, curvas e não estamos interessados em estereótipos. As pessoas na verdade sempre foram assim, mas não eram celebradas por isso. Agora, nós queremos ver isso refletido de volta", diz Amanda Bell, 44, taróloga norte-americana responsável pelo Indie Deck Review (IDR), plataforma focada em novos decks de tarô.Tarólogos se uniram a artistas e reinventaram as 78 cartas de forma a contemplar suas experiências. Krystal Banner, norte-americana de 27 anos, é a mente criativa por trás do Kaleidadope, um deck feito a partir de referências da cultura negra contemporânea nos Estados Unidos. "O objetivo dos meus decks é compartilhar uma perspectiva que raramente recebe atenção. Ninguém se parecia comigo na maioria dos decks que eu tinha", divide a artista. Ela está se preparando para lançar 2020 Visions, um deck que reinterpreta os Arcanos Maiores usando imagens dos grandes eventos de 2020, como a pandemia e os protestos antirracistas. "Reconhecer os temas do tarô em eventos acontecendo aqui e agora os tornam mais reais. Também empodera as pessoas a defender o que é certo."

Há quem veja essa nova apropriação do tarô com certa desconfiança. Oliver Findlay é um britânico que lê e ensina tarô há 23 de seus 39 anos. "Recentemente, notei que alguns decks parecem não levar em consideração o significado tradicional das cartas. Me preocupa que alguns decks estejam só tentando fazer dinheiro em cima da explosão de popularidade do tarô, sem fazer nenhuma pesquisa sobre os métodos e simbolismos tradicionais." Ele propõe uma reflexão para os novatos no universo das cartas: "Quem está querendo descobrir o tarô deve primeiro se perguntar: 'por que me sinto atraído por isso?'.

Leitura 2.0

O veículo que possibilitou esse movimento em torno do tarô sem dúvida foi a internet. "Antes a exposição ao tarô se dava em círculos muito menores, limitada ao que estava presente em comunidades locais" analisa Stephanie. Meredith Graves complementa. "A disponibilidade maior de ver tarô online, aliada a formas emergentes de mídia e arte, inspiraram muitas pessoas a desenvolver um interesse pela arte das cartas e de como lê-las."

Se as tiragens dessas novas cartas ainda segue a tradição, o efeito que provocam é completamente novo. "A ideia de que eu estava condenada ao fracasso pelo meu peso era sólida dentro de mim. A primeira vez que eu vi uma mulher gorda em uma carta me fez parar a leitura, eu estava me vendo refletida em uma carta. É muito importante ter essa conexão com o deck", compartilha Amanda. Havana James, outra editora do IDR, foi impactada de forma semelhante."Sou uma mulher plus-size negra. A primeira vez que eu vi uma carta que parecia comigo foi em um deck feito por outra mulher negra, o Dust II Onyx Tarot criado por Courtney Alexander. Apenas alguém como eu poderia enxergar minhas características com graça e beleza, elas normalmente são vistas de forma negativa."

Tarô de guerrilha

Novas representações imagéticas num jogo de cartas têm força suficiente para mudar a percepção das pessoas? "Acredito que o efeito dessa mudança transforma a vida de pessoas pertencentes a grupos pouco representados. Tarô é político, concorde ou não", enfatiza Havana James. Para Edu, é ainda mais importante usar desses meios num contexto político. "É nosso dever comunicar quem nós somos e usar a oportunidade de nos expressarmos para amplificar vozes diversas."

Ao se personalizar arquétipos que são universais, a nova geração quer não só se ver nas cartas, mas também catalisar ação concreta no mundo. "Ver como os temas do tarô se relacionam aos eventos acontecendo aqui e agora torna esses arquétipos mais reais. Deixa claro como eles se desenvolvem e empodera as pessoas a defender o que é certo", acredita Krystal Banner. "O tarô é a tradução da experiência humana em uma linguagem que as pessoas podem usar para crescimento pessoal e traçar um novo futuro possível", diz Amanda.