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Infodemia: Brasil é terreno fértil para a disseminação de notícias falsas

Getty Images
Imagem: Getty Images

Raul Galhardi

Colaboração para o TAB

06/10/2020 04h01

No início do documentário "O Dilema das Redes", que trata dos danos que as redes sociais causam a indivíduos e sociedades, é dito que "saímos da era da informação para a era da desinformação". No contexto da pandemia, essa constatação torna-se ainda mais sensível.

"Não estamos apenas lutando contra uma epidemia; estamos lutando contra uma infodemia", disse o Diretor-Geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, na Conferência de Segurança de Munique, em 15 de fevereiro de 2020. O novo coronavírus trouxe consigo uma profusão de informações, verdadeiras e falsas. Mais celulares conectados à internet, além das redes sociais, resultaram em uma geração exponencial de conteúdos — e em um aumento dos meios de obtê-los, criando uma "epidemia de informações".

O termo foi utilizado pela primeira vez em 2003 por David J. Rothkopf em seu artigo "When the Buzz Bites Back", no jornal The Washington Post, durante a epidemia de SARS (Síndrome Respiratória Aguda Grave).

Em relatório produzido para a Unesco, as pesquisadoras Kalina Bontcheva e Julie Posetti defendem que a desinformação originada pela infodemia ameaça não apenas indivíduos, mas sociedades inteiras. Ela leva cidadãos a se colocarem em risco por ignorarem recomendações científicas; amplia a desconfiança nos governos e formuladores de políticas públicas; e desvia os esforços jornalísticos para a checagem de notícias potencialmente falsas — quando eles deveriam priorizar o relato proativo de novas informações. Tudo isso resulta em um estado de desconfiança permanente.

Um exemplo disso pode ser visto em pesquisa Ibope, feita a pedido da organização internacional Avaaz, que revela que um em cada quatro brasileiros pode não se vacinar contra a Covid-19. Deles, 20% dizem que talvez não se vacinem e 5% afirmam que "não vão tomar a vacina de jeito nenhum". Entre os indecisos e os que asseguram que não tomarão a vacina, cerca de 34% declara pelo menos um motivo relacionado à desinformação.

Brasil é terreno fértil

Algumas pesquisas mostram que os brasileiros são os que mais acreditam em boatos na internet, embora sejam aqueles que mais se preocupam com a veracidade das notícias.

De acordo com o estudo "Fake news, filter bubbles, post-truth and trust", realizado em 2018 pelo Instituto Ipsos em 27 países, 62% dos entrevistados no Brasil admitiram ter acreditado em notícias falsas até descobrirem que não eram verdade, valor muito acima da média mundial, de 48%.

Outro levantamento, conduzido recentemente pela Avaaz no Brasil, na Itália e nos Estados Unidos -- três países amplamente afetados pela pandemia -- mostrou que os brasileiros acreditam mais em notícias falsas relacionadas à pandemia do que os italianos e estadunidenses. Dos brasileiros entrevistados, 73% acredita que pelo menos um dos conteúdos com desinformação mostrados no estudo é verdadeiro ou provavelmente verdadeiro, seguido por 65% dos estadunidenses e 59% dos italianos.

Para a coordenadora de campanhas da Avaaz, Laura Moraes, há uma relação direta entre o uso de redes sociais e a desinformação. "O brasileiro gosta de usar redes sociais. Não importa o quanto a TV (ainda a principal fonte de informação sobre a Covid-19 no país, seguida pelas redes sociais), formada por jornalistas profissionais que transmitem informações mais transparentes e apuradas, tente alcançar a todos. Nenhum meio alcança a todos. Precisamos garantir que as redes sociais assumam um papel informativo que hoje elas não estão assumindo".

Outro estudo, conduzido entre 17 de março e 5 de junho pelas pesquisadoras da ENSP (Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca) Claudia Galhardi e Maria Cecília de Souza Minayo, mostrou que as mídias digitais mais utilizadas para a propagação das notícias falsas sobre o coronavírus no Brasil foram o WhatsApp (40,7%) e o Facebook (33,3%).

Há, entretanto, outras razões para esta conjuntura brasileira. Alana Rizzo, jornalista e cofundadora do Redes Cordiais, projeto de educação midiática, também elenca como fatores a desigualdade estrutural no acesso à educação e a extrema polarização política da sociedade, que inibe o diálogo e fecha as pessoas em "bolhas". Para Rizzo, um grande desafio é a falta de "educação midiática", entendida como "o conjunto de habilidades que o cidadão precisa ter para navegar nos ambientes informacionais". Objetivamente, a educação midiática consiste em ensinar aos indivíduos como diferenciar jornalismo e opinião; o que é sátira, meme e notícia e como funcionam as redes sociais com suas regras e algoritmos, entre outros tópicos.

A diretora executiva e cofundadora da agência de checagem Aos Fatos, Tai Nalon, acrescenta ainda que, "em democracias mais ou menos consolidadas como o Brasil, que vivem um período de polarização intensa e fragilização institucional, existe uma desconfiança muito grande em relação às instituições e autoridades".

Na visão de Nalon, há uma necessidade imperativa de que elas restabeleçam suas reputações. "Não conseguiremos ser uma sociedade bem informada enquanto aqueles que exercem algum grau de autoridade no processo de formação da opinião pública (cientistas, professores, imprensa, juízes) forem atacados por causa de agendas políticas".

Estudos do Reuters Institute reforçam essas compreensões do cenário nacional. Segundo o instituto, a preocupação com a veracidade das notícias na internet tende a ser maior em países do Sul Global onde há intenso uso de redes sociais e as instituições são mais fracas.

Por dois anos consecutivos (2019 e 2020), relatórios da entidade mostraram o Brasil como o país que mais afirma estar preocupado com notícias falsas na rede. Em 2020, 84% dos brasileiros entrevistados disseram ter essa preocupação.

O impacto da desinformação nas eleições 2020

A pandemia tem impactado também as campanhas eleitorais no Brasil. Devido às recomendações de saúde para evitar agrupamentos de pessoas, há uma tendência de que as campanhas de rua percam força diante do debate político na internet.

Para Rizzo, já que boa parte da campanha ocorrerá em mídias digitais, a expectativa é que nessa eleição o discurso de ódio proveniente da polarização política esteja bastante presente, o que exigiria maior cuidado com a difusão de "fake news". No entanto, ela afirma que "não adianta o poder público querer fazer campanhas contra desinformação em cima da eleição. Esse é um processo que deve ocorrer antes".

"Eu não vejo nada muito diferente do que a gente viu em 2018 em termos de inovação da desinformação, mas eu também não vejo medidas, tecnológicas inclusive, que possam ser adotadas para impedir que campanhas de desinformação de última hora sejam eficientes" afirma Nalon. Ela defende que as plataformas digitais devem agir, retirar materiais enganosos e incentivar o jornalismo profissional. "Incentivar não é apenas usar o conteúdo jornalístico para dar mais contexto, mas pagar para que veículos especializados façam esse trabalho de contexto e de fornecimento de informações profissionalmente verificadas".

O presidente da ABCOP (Associação Brasileira de Consultores Políticos), Carlos Manhanelli, também acredita que este será um pleito atípico e que o mundo digital terá ainda mais influência, o que ficaria evidente na preocupação manifestada pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral) em relação às "fake news". No entanto, ele lembra que cerca de 25% da população não possui internet em suas residências. "Um quarto do eleitorado influencia muito os resultados de uma eleição", destaca.

É consenso, porém, entre os especialistas entrevistados, que as soluções para o problema da desinformação passam por um maior debate entre os diversos atores da sociedade, como governo, plataformas, técnicos em Tecnologia da Informação (TI), jornalistas e a academia. "Todos temos responsabilidades: poder público, empresas e indivíduos", define Rizzo.