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Ecofascismo: em defesa do planeta, movimento prega xenofobia e 'limpeza'

Para alguns militantes ecofascistas, "o vírus do planeta é o ser humano" - Anton Petrus/Getty Images
Para alguns militantes ecofascistas, "o vírus do planeta é o ser humano" Imagem: Anton Petrus/Getty Images

Breno Damascena

Colaboração para o TAB

24/09/2020 04h00

O otimismo do discurso dos coaches motivacionais conquistou o mundo assim que a pandemia estourou. O tom alarmista de uma doença potencialmente mortal veio acompanhado de mensagens positivas sobre o bem danado que a pandemia está fazendo ao nosso planeta.

Nas redes sociais, uma enxurrada de compartilhamentos sobre o impacto ambiental da redução de veículos nas ruas e as baixas nos níveis de poluição notadas em rios e na atmosfera, além de notícias sobre como a quarentena deixou cristalinas as águas dos canais de Veneza e o azul no horizonte da cidade de São Paulo, ajudaram a reforçar uma hipótese repetida por vozes diversas nos últimos meses: "o vírus do planeta é o ser humano".

Esse discurso reverbera em uma ideologia que acredita que os fins justificam os meios para alcançar um mundo ecologicamente mais saudável. A necessidade de evitar um colapso climático fortalece ideias xenófobas, racistas e eugênicas, expressões do que tem se chamado de ecofascismo.

O ódio verde

Em 3 de agosto de 2019, 22 pessoas foram mortas após serem alvejadas em um Walmart em El Paso, no Texas (EUA). O atirador começou a descarregar as balas de um rifle e um fuzil AK-47 semi-automático, pouco antes das 10h40 de um sábado ensolarado. Ao finalizar a empreitada, Patrick Wood Crusius, um homem branco de 21 anos, dirigiu até um cruzamento e se entregou à polícia admitindo a autoria do ataque mais mortal contra latinos na história norte-americana moderna.

Pouco antes de cometer o crime, ele publicou um manifesto no site 8chan afirmando, entre outras coisas, que estava tentando impedir uma invasão hispânica no Texas e que a imigração é "prejudicial ao futuro da América". Crusius nomeou o manifesto como "Uma Verdade Inconveniente", mesmo nome do documentário sobre os riscos do aquecimento global roteirizado por Al Gore, ex vice-presidente dos Estados Unidos e ativista ambiental.

No texto, o terrorista defende o fim de relacionamentos interraciais e aponta que corporações estão liderando a destruição do ecossistema por meio da exploração irrefreada de recursos. A solução que ele sugere? "Se conseguirmos nos livrar de pessoas suficientes, nosso modo de vida poderá ser mais sustentável", dizia, na carta.

As motivações de Patrick Wood encontram eco nas manifestações de Madison Grant. Advogado e escritor norte-americano, ele foi um reconhecido ativista do meio ambiente. Criou organizações ambientais, participou de movimentos para salvar animais silvestres da extinção e da aprovação de leis contra caça, além de atuar na curadoria de museus e sociedades filantrópicas dos EUA.

A caridade dele, entretanto, era voltada à aristocracia. Grant defendia o racismo científico, crença que afirma existir evidências científicas que justificam a superioridade racial dos brancos. Grant também defendia uma restrição de movimentos migratórios e os esforços dos EUA para purificar a população por meio de eugenia. Ele é autor do livro "The Passing of the Great Race", publicado em 1916, obra pseudocientífica que defende a supremacia branca e alerta para o declínio dos povos nórdicos. Suas teses influenciaram a Lei de Imigração estadunidense de 1924, que restringia a admissão de residentes estrangeiros no país. Adolf Hitler chegou a lhe enviou uma carta, parabenizando o autor pela obra que havia escrito.

Grant morreu em 1937. A ideologia que ele ajudou a propagar, porém, continua viva. A ideia de unir supremacia branca a conservação ambiental inspirou o extremista de direita Anders Breivik, que assassinou 77 pessoas em um acampamento de jovens noruegueses em 2011. Em seu manifesto, ele alerta para a humanidade perdendo sua pureza por causa da contaminação de raças inferiores.

"O ecofascismo é definido de formas diferentes para pessoas da esquerda e da direita. Para aqueles da direita, o termo remete a ambientalistas politicamente corretos que forçam uma agenda de justiça racial para todos os outros. Para os de esquerda, significa corporações gananciosas que estão destruindo o meio ambiente e populações vulneráveis e pobres", aponta Alexandra Minna Stern, professora do Departamento de Cultura Americana da Universidade de Michigan.

O conceito mais difundido, no entanto, é o de atores da extrema-direita que promovem versões racistas de ambientalismo, como observa a professora. "São aqueles que se identificam como nacionalistas brancos, etnonacionalistas e identitários, que acreditam que proteger o meio ambiente significa protegê-lo tanto da poluição quanto da impureza de imigrantes e refugiados", explica ao TAB.

Neste cenário, o ecofascismo se apresenta como a crença de que a única maneira de lidar com as mudanças climáticas e proteger o meio ambiente é por meio da eugenia, repressão e violência contra as populações que provocam a devastação do mundo. Os ecofascistas acreditam em uma versão desvirtuada e radicalmente anti-humanista do conceito de "ecologia profunda", e acreditam que a única forma de preservar a vida humana é reduzir drasticamente a população.

É o caso de Brenton Tarrant, australiano branco e militante de extrema-direita que atirou contra os muçulmanos que frequentavam as mesquitas Al Noor e o Centro Islâmico Linwood, na cidade de Christchurch, na Nova Zelândia, em março de 2019. O autor do atentado que chocou o mundo também publicou um manifesto onde se descreveu como ecofascista.

"Tem uma longa história de enredamento da superioridade branca e movimentos conservadores. Para eles, a realização da superioridade branca, com todo o seu vigor, masculinidade e sublimidade está conectada ao relacionamento primordial da terra e a necessidade de protegê-la de forasteiros e aliens", comenta Minna Stern. Para Jozimar Paes de Almeida, professor aposentado de História da Ciência, com ênfase em história ambiental, da Universidade Estadual de Londrina, a concepção da supremacia branca garantiria o direito, também, à terra. "A casa, nesse sentido, é garantida por comportamento autoritário e ações impositivas. Sejam eles imigrantes ou indivíduos com biótipos parecidos, mas com visões diferentes de mundo", explica.

O discurso alegre da Covid-19

O ecofascismo tem a intenção de consolidar a discriminação social que já costuma acontecer quando uma nova doença surge. "As populações carentes são as que mais sofrem e vão sofrer com a pandemia. Nas comunidades indígenas, os danos já foram devastadores", enumera Natascha Otoya, doutoranda em História Ambiental na Universidade de Georgetown e integrante do LabHeN (Laboratório de História e Natureza) da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), em conversa com o TAB.

Minna Stern corrobora com a afirmação. "O discurso anti-imigração no Brasil, especialmente no sul do país, está ligado a certos entendimentos de quem pertence e quem merece viver no país. Mesmo em áreas urbanas, não são incomuns ideias negativas de favelas e áreas 'apinhadas' de gente. A própria formação da elite branca no início do século 20 mesclava ideias racistas e eugênicas", pontua.

Para Otoya, a ideia de que o meio ambiente apresentou melhoras quando a quarentena começou é falsa. "São existências interligadas. Não é porque saímos de cena que as coisas melhoraram, e sim porque diminuímos a nossa exploração", explica. No entanto, ela acredita que o modelo ecofascista não se aplica ao Brasil atual. "Nossa política é totalmente antiecológica. Não vejo nacionalismo nesse governo."

Otoya também não acredita que as mensagens positivas sobre a Covid-19 sejam ecofascistas. "O mais perigoso é o discurso em si, essa ideia equivocada de que o mundo é horrível — e algo chegou aqui para nos ajudar. Uma narrativa que pode ser absorvida, manipulada e apropriada", explica. "Foi acolhendo discursos assim que chegamos onde estamos", finaliza.