Os fandoms têm que acabar? Especialistas analisam grupos de fãs na internet
"Tal coisa é legal, o que estraga é o fã-clube". Ao longo da história, fãs de absolutamente qualquer "tal coisa" — seja um produto, gênero ou personalidade da cultura pop — podem ter sido julgados sob essa pecha. De fato, a união de pessoas pela admiração coletiva a algo ou a alguém pode desencadear comportamentos curiosos, para dizer o mínimo. Basta pensar na Beatlemania, nas torcidas organizadas, nos acampamentos improvisados dias (ou semanas) antes do show de uma diva da gringa ou nas pessoas fantasiadas no cinema em dia de estreia de uma franquia milionária. Coisa de fã.
Na internet, sem precisar dormir na fila ou estar a caráter, entusiastas dos mais variados segmentos da indústria cultural deixam igualmente nítida sua devoção àquilo que os reúne nos notórios (e não raramente temidos) fandoms. "A palavra deriva de 'kingdom', de reinado, domínio. É uma articulação social de pessoas orientadas a partir do mesmo produto, da mesma propriedade intelectual, seja um game, um filme, uma banda ou o que for. Essa sociabilidade cria um 'lugar' em que as pessoas se sentem pertencentes e seguras para viver o consumo destes produtos", explica Thiago Falcão, coordenador do Laboratório de Pesquisa em Mídia, Entretenimento e Sociedade da UFPB (Universidade Federal da Paraíba).
Internet potencializa mobilização coletiva
Com a possibilidade de juntar gente do mundo inteiro sob um interesse (e não seria exagero dizer paixão) em comum, os fandoms têm o potencial de mobilização coletiva de um verdadeiro exército on-line -- e não é de hoje. Em 2010, quando Instagram foi lançado e o Twitter ainda "era mato" para boa parte do Brasil, a jornalista Lynn Hirschberg, do New York Times, passou dias com o celular tocando depois que a rapper M.I.A. tuitou o número de seu telefone. Na publicação, a cantora sugeria que seus fãs telefonassem questionando sobre a "verdade" de uma matéria que criticava o trabalho da artista.
Em junho deste ano, fãs de k-pop "assumiram a autoria" do esvaziamento de um comício de Donald Trump para o qual eram esperadas 19 mil pessoas -- e o público não chegou à metade. Nos últimos dias, um improvável fandom de Scooby-Doo encheu as caixas de mensagens de várias redes sociais de Chico Barney, colunista de entretenimento do UOL, depois que ele criticou o filme "Scooby-Doo 2". Indignados, os fãs xingaram, ameaçaram e fizeram acusações a Barney, que ficou nos trending topics do Twitter (ao lado de Scooby Doo) durante boa parte da última segunda-feira (05), tamanha a repercussão e o engajamento que o tweet motivou.
Para o creator Pablo Peixoto, que fala sobre cultura pop em seu canal Qu4tro Coisas, o imbróglio aponta para algumas características bem notáveis em certas comunidades de fãs. "A internet tem essa coisa de formação e identidades de grupos que, antes, eram espalhados. Agora, eles têm uma ferramenta para se juntar e trocar experiências e informações -- o que pode ser bom ou ruim dependendo do tema tratado, porque imediatamente esse grupo recém-formado passa a antagonizar grupos rivais."
Peixoto nota também, neste caso específico e em alguns parecidos, uma certa recusa ao desapego de memórias infantis. "Percebo nessa geração uma certa obsessão com a infância. Logo, vão defender qualquer coisa que a simbolize, com base apenas na memória afetiva. Daí a expressão 'destruir minha infância'. Recentemente, Mauricio de Sousa fez o Cascão lavar as mãos para conscientizar o público da necessidade do hábito na pandemia. Resultado? 'Estragou' a infância de muita gente."
'Falar do meu grupo é falar de mim'
Segundo Luciana Costa, mestra em psicologia social pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), comportamentos coletivamente agressivos de fandoms podem ser explicados pela Teoria da Identidade Social, de Henri Tajfel. Suas premissas explicam por que a crítica a uma obra de que gostam pode ser tomada, por algumas pessoas, como ofensa pessoal.
Quando sei que pertenço a um grupo, há sempre um afeto relacionado a este pertencimento. Assim, quando digo deste grupo, digo de mim. O mesmo acontece quando outros dizem dele: também estão falando de mim. Ocorre também o processo de comparação social, em que meu grupo, para mim, vai ser sempre positivo, assim como eu: o mais legal, o mais inteligente, mais bonito.
Luciana Costa, mestra em psicologia social
Completamente avessa a manifestações violentas, agressivas e massivas de fandoms, a professora de idiomas Moema Sarrapio, apesar de não se reconhecer no termo "fã", confessa que não gosta quando vê críticas a algumas de suas obras favoritas. "Acho que as pessoas pensam de formas diferentes, e isso é OK. Não gosto quando alguém se acha no direito de dizer se eu devo ou não gostar de alguma coisa, pelo motivo que for", destaca ela, doutoranda em estudos literários na Universidade de Aveiro, Portugal.
Em seu Twitter, Sarrapio já rebateu críticas à franquia "Harry Potter", revelando o dilema moral por ter afeto à obra e, ao mesmo tempo, discordar veementemente de posturas da autora J.K.Rowling. "Acho que é importante situar a obra ao seu contexto de produção e ao seu receptor. Minha relação com 'Harry Potter' especificamente vem da infância e da adolescência, eu nunca problematizei nada, era apenas uma menina com uma infância não muito mágica buscando refúgio. Não dá para anular tudo o que eu senti pela saga e que é evocado ainda hoje. Obviamente, vivo um dilema moral por ainda gostar muito e opto por não consumir nada que dê dinheiro a essa senhora atualmente, mas não dá para simplesmente ignorar o afeto, queimar meus livros...."
Questão de identidade
Para Rafael Saldanha, professor universitário e doutorando em comunicação pela Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), quem se identifica como fã extrapola a relação com o produto de admiração em si. "O gosto não é só gostar das coisas. Se você ama uma banda, você ama toda uma cena: um jeito de se vestir, de falar. Os gostos são articuladores das nossas sociabilidades. Andamos com pessoas que gostam das mesmas coisas que nós e, gostamos de coisas que as pessoas que andam com a gente gostam", diz ele, mencionando a "pragmática do gosto", proposição do sociólogo francês Antoine Hennion.
Relacionando gosto, consumo e mídia, Saldanha observa que a indústria do entretenimento está atenta a esta dinâmica comunitária, e busca sempre explorar o desejo constante de pertencimento, lançando novos produtos vendáveis. "Tem sempre algo a mais que as pessoas podem consumir para se identificarem como parte destas comunidades de gosto. E a mídia acaba reforçando estas estratégias: quando o personagem de uma série usa uma determinada camisa de banda, quero usar a mesma roupa, para minha identidade de fã ser legitimada."
Também com olhar crítico à capitalização dos afetos, o pesquisador Thiago Falcão aponta que a indústria chega ao ponto de, conforme ele próprio diz, "vender uma identidade". "Foi o que a indústria cultural fez com a figura do nerd. Uma imagem fabricada para gerar lucro. Até os anos 1980, o nerd era um homem que não atendia à masculinidade padrão, um pária, um fraco", diz ao TAB. "No fim dos anos 1990 e início dos 2000, isso foi rearticulado como imagem positiva, com um boom de produtos de ficção científica e fantasia, como 'Harry Potter', 'Senhor dos Anéis', franquias de super-heróis e vários outros produtos. É uma compra ativa e constante de identidade, e as pessoas que se relacionam com esse universo por afeto parecem não ter a menor consciência de que é isso que fazem. É uma ostentação identitária, que acaba culminando até em disputas de 'quem é mais fã'."
Fama versus saúde mental
Segundo a psicóloga social Luciana Costa, em casos extremos, a identificação com um grupo pode levar a uma negação daquilo que não faz parte dele ou não concorda com ele. "No limite, o outro chega a ser desumanizado, a ponto de se aceitar ou naturalizar a sua morte. Foi o que aconteceu, para se ter uma ideia, com a perseguição dos judeus durante o holocausto; é o que ocorre com as pessoas negras no Brasil com a herança do processo de escravização. Desumanização."
Participante de três temporadas do fenômeno "RuPaul's Drag Race" -- reality show competitivo entre drag queens, com centenas de milhares de entusiastas pelo mundo --, a artista porto-riquenha Alexis Mateo, presente em três temporadas, relata a relação complicada com o fandom do programa de uns anos para cá.
"Foram os fãs que tornaram o programa o sucesso que é, adoramos o amor que recebemos deles nas redes sociais. Mas, ultimamente, há uma geração que vem tornando muito difícil e doloroso algo que devia ser só divertido. Vejo algumas das minhas irmãs de Drag Race querendo parar de fazer drag e, nas gravações, perdemos muito da espontaneidade. Nós mesmas nos censuramos, por medo de falarmos algo que possa despertar o ódio nas redes, que vêm sendo usadas para atacar e cancelar as drags. É muito triste, porque nossa arte é mais que isso", contou ela, em entrevista por e-mail ao TAB.
A própria Mateo se assustou com as reações à sua última passagem pelo reality, veiculada há poucos meses atrás, já na pandemia. "A pior experiência foi ter recebido e-mails desejando a minha morte. O fandom é muito racista e não separa a competição da vida real. Quando você lê algo assim, você se pergunta: foi uma boa decisão participar do programa?"
O que essas vozes têm a dizer
Na internet e fora dela, nem só de ataques, ameaças e ódio se faz a cultura de fã. A admiração também é motor criativo, como ressalta a própria Mateo. "Sempre que consigo conhecer um fã, é a melhor coisa do mundo! Quando uma pessoa me agradece por tê-la inspirado, e me admira como ser humano, é tudo de que preciso para continuar compartilhando meu amor com o mundo."
Como não poderia deixar de ser, a indústria do entretenimento também está ligadinha nisso, para continuar atendendo aos fandoms, que tanto consomem seus produtos. "Um exemplo: Quando saiu o primeiro trailer do filme 'Sonic', o público odiou o design do personagem e exigiu que a Paramount redesenhasse o personagem. Gastaram mais 5 milhões de dólares para redesenhar e praticamente refazer o filme, já que se tratava do protagonista. No fim, o filme foi um sucesso, ultrapassou 308 milhões de dólares em bilheteria mundial. Aos poucos, os executivos estão entendendo que ouvir essas vozes, difusas ou organizadas nas redes sociais, pode ser uma boa ideia", avalia o creator Pablo Peixoto, fazendo uma ressalva: "Mas também pode fazer os criativos do cinema reféns dos desejos destes mesmos fãs radicais, acelerados por uma indústria de desinformação e ódio".
O pesquisador Thiago Falcão não acredita que os fandoms possam protagonizar qualquer transformação positiva, já que são tão necessariamente ancorados no consumismo. "O que vejo é uma revolução domesticada pelas corporações, que vendem e estetizam o sentido da revolta. É mais importante alguém parecer revoltado do que efetivamente ser. Assim, não há transformações relevantes." Já Pablo Peixoto é mais otimista, porém cauteloso ao responder o questionamento que intitula a reportagem: "Não acho que tem que acabar, a menos que se decida que é impossível que o fã desenvolva senso crítico. Nesse caso, como toda outra forma de adoração sem reflexão, tem que acabar, sim."
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