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Cancelar autores racistas ou editar livros polêmicos? Especialistas opinam

A escritora Agatha Christie (1890-1976) - Divulgação
A escritora Agatha Christie (1890-1976) Imagem: Divulgação

André Bernardo

Colaboração para o TAB

08/10/2020 04h00

Nenhum livro de Agatha Christie (1890-1976) fez tanto sucesso quanto "O caso dos dez negrinhos". Publicado em 6 de novembro de 1939, o maior êxito comercial da Rainha do Crime vendeu, segundo estimativas, 100 milhões de exemplares. A trama, ambientada na fictícia Ilha do Negro, na costa de Devon, na Inglaterra, é, volta e meia, lembrada por outro motivo. Por causa de seu título ("Ten little niggers", no original), inspirado numa cantiga de roda do século 19, o livro já foi tachado de racista e causou polêmica em países como a Alemanha. "Um insulto aos cidadãos de origem africana", protestaram os habitantes de Hanôver, distante 286 km de Berlim, em 2002.

Por essas e outras, "O caso dos dez negrinhos" acaba de ser relançado na França com título novo: "Eram dez" ("Ils étaient dix", no original). Antes de ser lançado em livro, pela editora britânica Collins Crime Club, "O caso dos dez negrinhos" foi publicado, em sete edições, pela The Saturday Evening Post, em 20 de maio de 1939. Na ocasião, os editores da revista, encorajados pelo movimento dos direitos civis, que começava a ganhar força nos EUA, optaram por rebatizá-lo de "E não sobrou nenhum" ("And then there were none"), como explica o escritor e biógrafo Tito Prates, autor de "Agatha Christie from my heart - Uma biografia de verdades" (2016).

No Brasil, "O caso dos dez negrinhos" foi lançado pela primeira vez em 1942, com seu título original. Só em 2008, ganhou o nome de "E não sobrou nenhum". Desde então, a Ilha do Negro virou A Ilha do Soldado e os dez negrinhos, as estatuetas de porcelana da sala de jantar, os dez soldadinhos. Em outros países de língua portuguesa, ganhou diferentes títulos como: "Convite para a morte", "As dez figuras negras" e "O vingador invisível".

"Houve quem considerasse o título 'E não sobrou nenhum' um spoiler. Mas, a essa altura, quem pega o livro para ler já sabe, ou fica sabendo logo nas primeiras páginas, que vai morrer todo mundo na história", revela Prates, em conversa com o TAB.

Huck e Jim: polêmicas no Mississipi

A escritora britânica Agatha Christie não foi a única a ter dor de cabeça com a palavra "nigger" ("crioulo", em livre tradução). Do outro lado do Atlântico, o romancista americano Mark Twain (1835-1910), pseudônimo de Samuel Langhorne Clemens, chegou a ter "As aventuras de Huckleberry Finn" (1884) proibido em escolas e bibliotecas públicas. Motivo? A palavra "nigger" aparece 219 vezes! Reza a lenda que, ao saber da proibição de seus livros, Twain teria dado de ombros: "Fizeram bem. Não são para crianças".

Em 2011, a editora New South Books, do Alabama, tomou uma medida, para dizer o mínimo, controversa: relançou tanto "As aventuras de Huckleberry Finn" quanto "As aventuras de Tom Sawyer" (1876) com um texto diferente do original. Politicamente corretas, as novas versões suprimiram termos racistas, como "nigger" e "injun", usadas para se referir, de modo depreciativo, a negros e índios. Em vez de "nigger", preferiram "slave" ("escravo").

Mas, seria mesmo Huckleberry Finn racista? Quem se propôs a responder essa pergunta foi a tradutora Vera Lúcia Ramos, em sua tese de doutorado pela USP (Universidade de São Paulo), em 2018. A que conclusão ela chegou? Não, não é. "A obra ataca o racismo. E como isso se dá? Na caracterização positiva do negro", explica. "O termo 'nigger' cumpre o papel de denúncia. Twain explicita a maneira desrespeitosa de como os negros eram tratados".

Ainda hoje, 110 anos depois de sua morte, há controvérsias se Twain seria, de fato, racista. Seus detratores gostam de lembrar que, quando tinha 20 e poucos anos, ele se alistou como voluntário no Exército Confederado, do Sul do país, favorável à escravidão. Três semanas depois, porém, desertou. Já seus defensores argumentam que, já com 50 anos, se ofereceu para pagar os estudos de Warner McGuinn (1859-1937), o primeiro estudante negro a cursar a Universidade de Yale, em Connecticut.

O escritor Mark Twain - Samuel Clemens/ Getty Images - Samuel Clemens/ Getty Images
O escritor Mark Twain
Imagem: Samuel Clemens/ Getty Images

"Mark Twain continua sendo um dos autores mais amados dos EUA e 'Huckleberry Finn' uma das obras mais polêmicas. Twain foi duro com uma sociedade que se mostrava religiosa na superfície e cruel nas atitudes", analisa Ramos. "Quanto à proibição, não concordo. Toda obra deve ser entendida à luz de seu contexto histórico", diz ao TAB.

Lovecraft, entre o terror e a segregação

O caso de Howard Phillips Lovercraft (1890-1937) é diferente do de Mark Twain. É consenso entre especialistas que o autor de "O chamado de Cthulhu" (1928) era racista, xenófobo e eugenista. Em sua vasta correspondência, H.P. Lovecraft manifestou simpatia por Hitler, pregou a superioridade da raça ariana e chegou a se referir a negros como "chimpanzés gordurentos". "A velha desculpa de que Lovecraft era 'um homem de seu tempo' não convence", afirma o historiador Luís Otávio Canevazzi de Freitas, da UFU (Universidade Federal de Uberlândia). "Ele sabia que era racista, defendia a eugenia e, até seu leito de morte, se manteve firme em suas convicções".

Autor de "Miscigenação, racismo e fim do mundo na literatura fantástica de H.P. Lovecraft" (2019), Canevazzi explica que o ódio racial do escritor, nascido em Rhode Island, na Nova Inglaterra, se acentuou em 1924, quando ele se casou com a escritora Sônia Greene (1883-1972) e foram morar em Nova Iorque. "Sempre que andávamos em meio à multidão e nos deparávamos com pessoas das mais diferentes etnias", relatou sua mulher, certa vez, "ele ficava lívido de raiva e quase perdia a cabeça".

No ano do 130° aniversário do autor, sua obra, tanto aqui quanto lá fora, continua a ser relançada. Na maioria das vezes, as novas edições trazem notas críticas sobre o conteúdo ofensivo de contos, como "O caso de Charles Dexter Ward" (1943), "A sombra de Innsmouth" (1936) e "O horror em Red Hook" (1927).

Para além do mercado editorial, o Mestre do Terror acaba de ser revisitado em "Lovecraft Country", da HBO, baseada no livro "Território Lovecraft" (2016), de Matt Ruff. "A série subverteu a obra lovecraftiana, ao colocar protagonistas negros em cena e problematizar a segregação racial dos EUA. Se estivesse vivo, duvido que Lovecraft permitiria que a HBO utilizasse seu nome em algo com conteúdo antirracista", especula o historiador.

A série "Lovecraft Country", da HBO, baseada no livro "Território Lovecraft" (2016), de Matt Ruff - Divulgação - Divulgação
A série "Lovecraft Country", da HBO, baseada no livro "Território Lovecraft" (2016), de Matt Ruff
Imagem: Divulgação

Tintim e Milu no banco dos réus

Nem o quadrinista belga Georges Remi (1907-1983), o Hergé, escapou de acusações de racismo. Em 2007, a CRE (Comissão para Igualdade Racial) do Reino Unido pediu às livrarias britânicas que, por causa de seu conteúdo racista, retirassem a HQ "Tintim na África" (1931) — o segundo dos 24 livros lançados entre 1930 e 1986 — das prateleiras. Três anos depois, um cidadão congolês moveu uma ação e pediu à Justiça belga que proibisse sua venda. Passados dois anos de processo, Hergé foi "absolvido".

Segundo o historiador Fábio Cornagliotti de Moraes, da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), os nativos africanos são retratados em "Tintim no Congo" como "subservientes", "supersticiosos" e "ignorantes". "Todas as opiniões são livres, incluindo aquelas em que sou chamado de racista. A única coisa que eu sabia sobre aquelas pessoas era o que me diziam na época: 'Os negros são crianças grandes...'", declarou Hergé, em 1976.

Autor de "As aventuras de Tintim na África: representando o outro nas HQs As Aventuras de Tintim: Tintim no Congo" (2015), Cornagliotti pondera que a obra não foi um caso isolado. "Perdidos no mar" (1958) apresenta teor racista já no subtítulo: Coke on stock ("carvão no porão", em livre tradução) — carvão, no caso, seria uma alusão à cor de pele dos escravos. "Em um mundo onde, felizmente, o racismo é cada vez menos aceito, se torna fundamental olhar para trás, até mesmo para nos ridicularizarmos por termos pensado de maneira tão violenta e absurda e não esquecermos que, um dia, essa irracionalidade desumana foi aceita", afirma em sua dissertação de mestrado.

A HQ "Tintim no Congo" - Reprodução - Reprodução
"Tintim no Congo"
Imagem: Reprodução

Monteiro Lobato, a "bola da vez"

No Brasil, quem já esteve na berlinda, acusado de racismo, foi Monteiro Lobato (1882-1948). Há exatos dez anos, o Conselho Nacional de Educação (CNE) recomendou que a obra "Caçadas de Pedrinho" (1933) fosse recolhida das escolas públicas. Para justificar a medida, o órgão do Ministério da Educação (MEC) destacou trechos do livro: num deles, o autor diz que, para fugir de uma onça, Tia Nastácia, a cozinheira do sítio, escalou um mastro "que nem macaca de carvão". Noutro, Emília avisa que, diante de outro ataque do bicho, não vai escapar ninguém. "Nem Tia Nastácia, que tem carne preta", completou a boneca de pano. O caso foi parar no STF. "Sou contrária a 'cancelar' autores, proibir sua circulação, desestimular sua leitura, por piores moral, ética ou literariamente que sejam", observa a pesquisadora Marisa Lajolo, doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP.

Autora de "Monteiro Lobato, livro a livro: obra infantil" (2009), em parceria com João Luís Ceccantini, e de "Reinações de Monteiro Lobato" (2019), com Lilia Moritz Schwarcz, Lajolo afirma que, quando o assunto é preconceito racial, Lobato não é exceção, mas regra na literatura brasileira. "Acho que praticamente todos — sim, todos — os escritores brasileiros, até meados do século passado, de uma forma ou de outra, refletem o caráter preconceituoso e racista de nossa cultura. Lobato não é exceção. Mas, é a bola da vez".

Desde que a obra de Lobato entrou em domínio público, em janeiro de 2019, grandes nomes da nossa literatura infanto-juvenil, como Pedro Bandeira, Maurício de Sousa e Walcyr Carrasco, adaptaram alguns de seus clássicos. No caso de Carrasco, os títulos revisitados foram "Reinações de Narizinho" (1931) e "A reforma da natureza" (1941). Expressões racistas, como "negra de estimação", cederam lugar a outras, como "descendente de africanos". "O que sentiria uma menina preta, sentada na classe, ouvindo a professora ler um texto onde se fala 'negra beiçuda'? E, depois, sofrendo bullying dos colegas? Tirei, sim. Hoje em dia, o negro ocupa um lugar na sociedade muito diferente daquela época. É preciso respeitar suas conquistas", afirma Carrasco.

Tal e qual Lovecraft, Lobato também era um entusiasta da eugenia. Não bastasse, era ainda um defensor da Ku Klux Klan. "País de mestiços, onde o branco não tem força para organizar uma Ku Klux Klan, é país perdido para os altos destinos", revelou em carta escrita ao amigo, o cientista Arthur Neiva (1880-1943), de 10 de abril de 1928. "Um dia se fará justiça a Ku Klux Klan".

Não é de hoje que Lobato é alvo de críticas. Em 1997, quando foi lançada a biografia "Monteiro Lobato: Furacão na Botocúndia", escrito a seis mãos por Carmen Lúcia de Azevedo, Márcia Camargos e Vladimir Sacchetta, o criador do Sítio do pica-pau amarelo começou a sofrer as primeiras represálias. Doutora em História pela USP, Márcia Camargos afirma que, mais do que reforçar estereótipos, a obra lobatiana pode instigar crianças, jovens e adultos a refletir sobre o tema do racismo e da negritude. "Se estivesse vivo hoje, em pleno século 21, com toda certeza Lobato não teria usado aqueles termos, nem defendido tais ideias. A história muda, os valores e a percepção da realidade também. Ele nunca se recusou a admitir seus erros e mudar de rota", opina a historiadora.