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Cultura que envelhece mal: faz sentido editar filmes e livros repudiados?

Vivian Leigh e Hattie McDaniel em cena de "...E o vento levou" - Reprodução
Vivian Leigh e Hattie McDaniel em cena de "...E o vento levou" Imagem: Reprodução

Brunella Nunes

Colaboração para o TAB

16/06/2020 04h00

Em meio a protestos antirracistas, o movimento negro norte-americano pediu que o filme "... E o vento levou" deveria ser removido do serviço de streaming HBO Max. O assunto trouxe à tona um debate não apenas racial, mas moral, em relação a produtos culturais considerados desagradáveis.

O repúdio e a censura são colocados nos extremos da discussão, mas são os bastidores da história os responsáveis por manter ou romper com o status quo. O pedido partiu de um artigo de John Ridley, roteirista de "12 anos de escravidão", no Los Angeles Times, acerca do filme de 1939, acusado de romantizar a escravidão. No dia seguinte, a HBO Max anunciou que removeria o clássico do catálogo por tempo indeterminado, para que retorne "com uma discussão de seu contexto histórico e uma denúncia dessas mesmas representações" (o que ainda não aconteceu). Porém, a rede alegou manter a forma original, pois "fazer o contrário seria o mesmo que reivindicar [que] esses preconceitos nunca existiram". O clássico teve recorde de vendas na Amazon quando o assunto polemizou nas redes sociais.

O psicólogo especialista em desenvolvimento moral, Yves de La Taille, acredita que a solução encontrada pela HBO Max foi adequada. "Trata-se de um romance muito bem feito. O racismo é uma parte dele, mas não o todo. O que a emissora fez agora é uma boa ideia. É didático e inteligente. Defendo que cada um julgue e tenha a liberdade de escolher o que consome."

A narrativa, baseada no livro homônimo de 1936, coloca personagens negros em papéis de escravos subservientes e inferiores, além de ter falas e cenas permissivas de misoginia e estupro. Mesmo em meio a protestos durante o lançamento, o longa-metragem foi premiado em oito categorias do Oscar e Hattie McDaniel se tornou a primeira mulher negra a receber a estatueta por melhor atriz coadjuvante. A vitória veio junto com a desconfortável frase: "prefiro interpretar uma criada por 700 dólares a ser uma por 7", disse.

Contexto de um clássico

Os EUA viviam a Era de Ouro da indústria cultural em Hollywood, na mesma época em que a segregação racial no país se intensificava. Entre 1930 e 1968, os estúdios cinematográficos deveriam seguir o código Hays, uma cartilha de normas morais. Dentre algumas controvérsias, determinava que não poderia haver miscigenação, cenas de parto, nudez e escravidão de brancos nas produções.

Após a morte do norte-americano George Floyd por um policial, outras produções foram alvo de protestos raciais. Um abaixo-assinado pede a remoção de qualquer produção sobre policiais do catálogo da Netflix, por destacarem tais profissionais como heróis. Por enquanto, o reality show "Cops" foi cancelado e "Little Britain" foi removido de alguns serviços de streaming por fazer blackface (maquiagem para escurecer a pele de pessoas brancas, usada de forma caricata).

O politicamente (in)correto na cultura

Desde o começo, a indústria do entretenimento audiovisual produziu longas-metragens polêmicos. "O Nascimento de Uma Nação" (1915), "Minha Luta" (1960), "Lolita" (1962), "O Poderoso Chefão" (1972), "La Bête" (1975) e "Green Book" (2018) estão entre alguns dos títulos que mais mobilizaram a audiência, por encenarem contextos de racismo, sexualização infantil, nazismo e misoginia.

"O Nascimento de Uma Nação" é considerado um grande marco do cinema por seu preciosismo técnico, mas é também uma das obras mais racistas já feitas. A narrativa glorifica a Ku Klux Klan (KKK), abrindo uma porta perigosa, que nunca mais se fechou. O longa foi contestado por grupos a favor de minorias e direitos civis desde a estreia, mas ainda hoje consta na Sling TV sem nenhum tipo de aviso sobre o conteúdo.

Depois de adicionar avisos nas animações "Dumbo" (1941) e "Mogli, o menino lobo" (1967), a Disney optou por excluir para sempre "A Canção do Sul" (1946) do catálogo por causa da abordagem racista, que adicionava tom nostálgico em relação ao período de escravidão. Ainda assim, uma petição pede a inclusão do filme no streaming Disney+.

O "Dumbo" clássico da Disney, de 1941 - Divulgação/IMDb - Divulgação/IMDb
O "Dumbo" clássico da Disney, de 1941
Imagem: Divulgação/IMDb

Pessoas brancas não demoraram a levantar queixas no Twitter sobre a comédia "As Branquelas" (2004), em que dois atores negros se fantasiam de mulheres loiras. Os discursos se ancoram no suposto "racismo reverso".

Os estereótipos lançados nos filmes de Hollywood geralmente têm alvo: etnias e minorias, passando por negros, orientais, indígenas, pessoas com deficiência, LGBTQs+ e pobres. No caso dos asiáticos, além de serem minoritários na indústria do entretenimento, não faltam produções caricatas e hostis.

A cineasta descendente de coreanos Paula Kim ama o filme "Bonequinha de Luxo" (1961), mas se recorda quando Mickey Rooney, um ator branco, interpretou um japonês que não sabia falar inglês corretamente e não enxergava direito. "Se o produto incomoda quem não está sendo representado, é porque essas pessoas continuam sem voz. Penso que o ideal é que as pessoas falem abertamente sobre o que aconteceu e sejam mais transparentes, no lugar de discutir o que vai ser veiculado ou não."

O meio literário também requer mais cuidado nos novos tempos, especialmente com o público a quem se direcionam. Um exemplo é o livro "As aventuras de Huckleberry Finn" (1885), de Mark Twain, tido como um clássico da literatura infantojuvenil norte-americana. Foi reeditado em 2011 por causa da linguagem pejorativa da palavra "nigger", correspondente a "crioulo" no Brasil, escrita 219 vezes.

Atores vestidos como membros da Ku Klux Klan em volta de um ator branco com pele pintada de negro em imagem de "O Nascimento de uma Nação" - Getty Images - Getty Images
Atores vestidos como membros da Ku Klux Klan em volta de um ator branco com pele pintada de negro em imagem de "O Nascimento de uma Nação"
Imagem: Getty Images

Racismo à brasileira

No Brasil, há anos são feitos pedidos para que "Caçadas de Pedrinho", de Monteiro Lobato, tenha ratificações por se referir, em certo trecho, à Tia Nastácia como "uma macaca de carvão". A obra destinada a crianças compõe a lista de leituras recomendadas do Ministério da Educação. Em 2012, o órgão publicou uma nota, afirmando que "defende a plena liberdade de ideias".

O premiado cineasta brasileiro Joel Zito Araújo pontua que nesse caso há difusão de uma visão claramente racista. "Acho que submeter uma criança negra ou branca a esse tipo de obra, que inferioriza, infantiliza e animaliza o outro é um absurdo. É um atentado, uma violência, que acaba distorcendo dois seres humanos em formação. O Estado não tem o direito de fazer isso com qualquer raça ou etnia. É um tipo de necropolítica."

Arte entre boicote e censura

O escritor Eça de Queiroz escreveu, em 1875, uma provocação passível de análise: "eu não sou um moralista, sou um artista; o artista é um ser nefasto, que não é responsável pelas suas fantasias, nem pela sua vingança". Embora a arte seja instrumento de catarse, hoje os autores das obras também são problematizados por seu comportamento e conduta, como aconteceu durante uma exposição do pintor Paul Gauguin em Londres, em 2020. Foram deixadas às claras as acusações de pedofilia e racismo que compõem o passado do francês.

São as convenções sociais morais e a ética individual que impõem limites entre o aceitável e o inaceitável. É um eterno conflito, que regula campos de tensões. A filósofa e crítica de arte Rachel Cecília de Oliveira destaca que, no campo das artes, vale o que desagrada, mas não vale tudo. "Em um mundo plural e diverso, nenhuma obra de arte pode atentar contra a liberdade do outro, senão ela está atentando contra um princípio democrático."

Ela explica que, justamente pela arte ser provocativa e reflexiva, não deve contribuir para a manutenção de dinâmicas arraigadas de opressão social. "Existe uma diferença quando o assunto é orientar o público em relação à época. Uma obra de arte desnuda um contexto sócio-histórico. Então, é preciso contextualizar as obras, sem esquecer que isso não significa admitir a ofensa e a opressão, mas sim trazê-las para a discussão. Fazendo com que mais pessoas enxerguem comportamentos naturalizados por uma conjuntura social que não deveria existir."

A atriz Whoopi Goldberg, que foi a segunda mulher negra a ganhar um Oscar na história, demonstrou reprovação à tentativas de censura, mas concordou com a contextualização dos produtos culturais. A opinião é compartilhada por Zito. "Obras do tipo não devem jamais ser proibidas, nem serem vistas com naturalidade, como se não violentassem um segmento da sociedade e colaborassem com estereótipos e preconceitos. Devem ser contextualizados, sim, porque há consequências danosas para quem vai vê-los", argumenta ao TAB.

A alteração ou censura de obras culturais controversas pode ser vista como uma atitude puritana, que apenas colabora com o conservadorismo. Contudo, La Taille explica que a liberdade de expressão não pode ser desculpa para incitar o pior do ser humano. "Uma coisa é você ter o direito de dizer o que pensa. Outra coisa é a responsabilidade social das consequências do que é dito. Qualquer produção que seja um convite ao ódio e à matança pode ser cabível de censura quando se colocam os possíveis efeitos de um caso nocivo. A obra é desencadeadora de comportamentos."

Em outra chave, a Netflix sofreu tentativas de censura e pressões de grupos religiosos por causa do filme "A Primeira Tentação de Cristo", especial natalino do Porta dos Fundos, repleto de sátiras bíblicas, lançado no final de 2019. Depois de ataques com coquetéis molotov à sede do grupo e de ter exibição suspensa pela Justiça do Rio de Janeiro, o caso teve parecer favorável do Supremo Tribunal Federal (STF), devolvendo a obra para o catálogo da plataforma.

Ódio contra indígenas

Recentemente, o diretor do filme "Matem... os outros" (2014) foi condenado a indenizar uma comunidade indígena brasileira por conter discurso de ódio.

O boicote, que integra a chamada cultura do cancelamento, é apontado como opção para se posicionar politicamente e pressionar mudanças. É uma forma de romper com o que antes era visto com naturalidade. "O próprio fato de questionar se um filme deve ou não integrar um catálogo já é um avanço civilizatório. O recado que fica é: 'olha, se você não tiver consciência disso, vai seguir com conceitos racistas'", argumenta Zito, diretor de uma longa lista de filmes e documentários negros que não constam em serviços de streaming.

Errata: este conteúdo foi atualizado
O texto afirmava que Tia Nastácia era a única personagem negra da obra "Sítio do Picapau Amarelo", mas não é. A informação foi corrigida.