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Leilão da massa falida do Banco Santos teve obras milionárias e polêmicas

Obra do artista Sol Lewitt na mansao do ex-banqueiro Edemar Cid Ferreira - Lalo de Almeida/Folhapress
Obra do artista Sol Lewitt na mansao do ex-banqueiro Edemar Cid Ferreira Imagem: Lalo de Almeida/Folhapress

Breno Damascena

Colaboração para o TAB

06/10/2020 04h00

"O preço simbólico deste quadro é 20 mil reais, mas já temos um lance online de 539 mil e 500 reais. Agora quinhentos e cinquenta mil reais", brada, com rapidez, o locutor entusiasmado. "550 mil no telefone, o trabalho de Cildo Meireles, importantíssimo, peça de museu, 550 mil reais, quinhentos e cinquenta mil reais eu tenho no telefone", repete o homem, reforçando a informação, antes de fazer uma micropausa para recuperar o fôlego. "560, 565 mil, 570 mil, 600 mil reais, 650 mil reais, setecentos mil reais", continua, com a respiração quase acabando.

Depois de uma disputa com lances exorbitantes, a obra "Muro", tela de 200 cm², pintada em 1986 em acrílico e crayon pelo conceituado artista Cildo Meireles, foi arrematada por 1,35 milhão — mais de 67 vezes o preço inicial. Era apenas uma das 1972 peças que compunham o acervo da massa falida do Banco Santos e foram a leilão entre 21 de setembro e 2 de outubro deste ano.

Só na primeira noite, quando a cerimônia foi transmitida ao vivo pelo Canal Arte 1, a arrecadação superou R$ 16 milhões. A venda mais cara foi a The Foundling #6 (2004), uma pintura de 16 metros de comprimento de autoria do artista plástico norte-americano Frank Stella, que alcançou R$ 4,2 milhões. Entre fotos, telas, esculturas e até objetos pessoais, o evento arrecadou 25,2 milhões de reais durante dez dias. Dos 1.910 itens leiloados, 1.493 foram arrematados.

Batendo o martelo

"Dou-lhe uma, duas, três. Vendido. Vamos para o próximo", anunciava, com imparcialidade e sem parcimônia, James Lisboa, o locutor e homem responsável por um dos leilões mais importantes do país nos últimos anos. "O sucesso do evento se deve ao fato de as pessoas estarem sem teatro, cinema, jantar e não poderem receber visitas em casa. Elas procuram um meio para se distrair e pensam 'eu tenho todas essas paredes e não tenho um quadro?'. E é isso que eu ofereço", justifica Lisboa, em conversa com o TAB.

Ele é um homem experiente, de voz grave e fala séria. Do seu escritório, uma sala espaçosa, com paredes revestidas de quadros e livros, na galeria que recebe seu nome a poucos metros da Rua Oscar Freire, Lisboa relembra do início da carreira como leiloeiro. Filho de uma pintora, o homem conta que chegou a pintar alguns quadros e expôs na Praça da República, no início da década de 1970.

James Lisboa posa com esboço de Tarsila do Amaral leiloado por 1,3 mi de reais - James Lisboa posa com esboço de Tarsila do Amaral leiloado por 1,3 mi de reais - James Lisboa posa com esboço de Tarsila do Amaral leiloado por 1,3 mi de reais
James Lisboa posa com esboço de Tarsila do Amaral leiloado por 1,3 mi de reais
Imagem: James Lisboa posa com esboço de Tarsila do Amaral leiloado por 1,3 mi de reais

"Naquela época, a praça era muito bem frequentada. Quase um ponto turístico da cidade", explica. Ainda na juventude, começou a frequentar galerias e, um dia conheceu o marchand — comerciante de objetos artísticos — que mudou sua vida. Lisboa diz que comprou do homem dois quadros pintados por Clóvis Graciano e, depois de uma pesquisa, descobriu que poderia lucrar se as vendesse.

Foi o início da carreira como comerciante, numa trajetória que passa por abrir uma loja de molduras e desemboca em se tornar leiloeiro oficial no estado de São Paulo, em 1986. Mais de três décadas depois, chegou a um dos momentos mais importantes da carreira. Acompanhado por uma música de fundo alegre, Lisboa, após meses de preparação, comandou o leilão da massa falida do Banco Santos.

Amortização de dívidas

A relevância deste evento vem dos motivos que fizeram com que ele acontecesse. É mais um capítulo de uma longa jornada judicial para compensar os prejuízos causados aos credores do Banco Santos, cuja falência foi decretada em 2005. Criada no início da década de 90, com o Plano Real, a instituição financeira tinha clientes respeitáveis, como grandes empresas, fundos de pensão e investidores da classe média.

Porém, apesar de a corporação divulgar patrimônio positivo em balanços, o BC (Banco Central) descobriu um rombo bilionário e indícios de crime contra o sistema financeiro. A dívida com os credores passa dos R$ 3 bilhões de reais e, para tentar quitar este débito, a justiça determinou a realização do leilão dos bens do ex-banqueiro Edemar Cid Ferreira, ex-dono do Banco Santos.

Ferreira era, notoriamente, um admirador de artes. Foi presidente da Fundação Bienal de São Paulo, promoveu peças de teatro, musicais e espetáculos grandiosos, como a Mostra de 500 Anos de Descobrimento, além de ter financiado exposições e orquestras. Não é de se estranhar, portanto, que a massa falida — conjunto de bens e direitos do falido — contasse com tantas obras significativas.

Obra de Victor Brecheret no jardim da mansão do ex-banqueiro Edemar Cid Ferreira - Lalo de Almeida/Folhapress - Lalo de Almeida/Folhapress
Obra de Victor Brecheret no jardim da mansão do ex-banqueiro Edemar Cid Ferreira
Imagem: Lalo de Almeida/Folhapress

"Por se tratar do leilão de um colecionador, é um excelente acervo. Não se acha, no mercado atual, uma quantidade tão grande de peças desta qualidade juntas", diz ao TAB Denise Mattar, curadora de Arte e ex-diretora técnica do Museu da Casa Brasileira e dos Museus de Arte Moderna de São Paulo e do Rio de Janeiro. A expectativa em torno deste leilão, aliás, se arrasta há meses. A solenidade deveria ter acontecido em março, mas, por conta do novo coronavírus, foi adiada.

"Do ponto de vista do mercado de arte, o leilão foi um verdadeiro sucesso. Da perspectiva do circuito de arte, é diferente", afirma Mattar, de forma contundente. "O acervo contava com obras importantes, que são de interesse público. Além disso, as instituições que cuidaram dessas obras por 15 anos ficaram a ver navios", observa.

Boa parte do acervo esteve, desde 2005, sob guarda do MAC-USP (Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo). Em entrevista à Folha de S.Paulo, Ana Magalhães, diretora da instituição, disse que o custo com armazenamento e catalogação das peças para os cofres públicos foi de R$ 20 milhões. E que, há anos, a instituição tenta receber a compensação deste valor em obras, mas uma decisão judicial devolveu apenas R$ 37 mil em dinheiro.

"Dou-lhe uma, dou-lhe duas…"

Fato é que o leilão aconteceu e atendeu às expectativas do leiloeiro James Lisboa. O preço inicial das obras, fixado em 2005 por peritos e, por isso, muito abaixo dos preços atuais, se tornaram apenas simbólicos. Um esboço de Tarsila do Amaral para a tela Operários (1933), por exemplo, tinha o lance inicial de R$ 32 mil e foi vendido por R$ 1,3 milhão.

Os interessados poderiam dar lances pela internet desde o dia 05 de outubro de 2020, mas o martelo só era batido no dia em que as obras iam realmente a leilão. Lisboa conta que algumas pessoas saíram de outros estados para visitar a galeria e analisar as peças pessoalmente antes de fazer um lance oficial. Além do preço da obra, o comprador precisa pagar uma comissão de 5% do valor para a casa de arte.

Enquanto aguardam a confirmação do pagamento, embalagens reforçadas eram colocadas nas centenas de quadros espalhados pela galeria, que naquele momento parecia um grande galpão, tamanha a profusão de objetos espalhados. James Lisboa, entretanto, fala que as vendas que lhe deram mais orgulho foram os quadros de um amigo que foi atropelado e ficou paraplégico. "Nada exorbitante, algo em torno de R$ 400, mas ouvi dele que aquilo o estimulava a viver. E saber que participei disso não tem preço", relembra.

As obras leiloadas embaladas para a entrega - Acervo pessoal - Acervo pessoal
As obras leiloadas embaladas para a entrega
Imagem: Acervo pessoal

O cenário se mostra realmente propício para a arte, de acordo com Mattar. "Quando começou a pandemia, foi um pânico. Mas quando as pessoas passaram a se acostumar, o mercado voltou com tudo", justifica.

Lisboa corrobora e afirma que o brasileiro adora arte. O problema é a falta de acesso, principalmente em regiões mais afastadas — problema solucionado por leilões online. "Um sujeito que tenha condições de comprar uma bolsa de uma grande marca para a esposa, de sete, oito ou 10 mil reais — olha nas vitrines do shopping, é esse o preço — pode comprar um quadro que ele gosta".