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E-book grátis? O impacto do vazamento de livros para editoras independentes

livros  - Getty Images/iStockphoto
livros Imagem: Getty Images/iStockphoto

Por Juliana Sayuri

Colaboração para o TAB, de Toyohashi (Japão)

08/09/2020 04h00

Mais de 5,3 milhões de livros do mundo todo disponíveis para "download grátis". Mais precisamente, 5.316.066 arquivos até 2 de setembro -- entre eles, uma série de e-books não-autorizados da editora brasileira Boitempo, famosa por publicar edições de clássicos de Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895), autores do "Manifesto Comunista" (1848). Em agosto, o link da babel digital viralizou e, junto dele, fake news dizendo que a Boitempo teria liberado todo o catálogo de livros digitais, gratuitamente. No Twitter, a editora definiu a ação como "tentativa de sabotagem que expõe leitores a arquivos inseguros e que subtraem páginas de créditos, notas de edição e outros arquivos das obras (ocultando o trabalho por trás dos livros)."

Tempos atrás, a editora liberou 5 mini-livros no formato PDF e 10 e-books gratuitos até 1o de maio, em uma ação de incentivo à leitura nos já longínquos primeiros dias da pandemia de Covid-19. Desta vez, não liberou. Editora independente e casa de diversos autores alinhados à esquerda no Brasil, a Boitempo pediu apoio aos leitores para divulgar o comunicado e frear as fake news, mas o tiro saiu pela culatra: em resposta ao post da editora no Twitter, vários usuários divulgaram o link para download, levantando o argumento de "socializar" os livros do selo "socialista" -- que além de Marx e Engels, publica autores como o revolucionário russo Vladimir Lênin (1870-1924) e o filósofo húngaro György Lukács (1885-1971).

"Pura ilusão", diz Ivana Jinkings, fundadora da Boitempo e editora da revista Margem Esquerda. "Não há socialização, mas uma conduta predatória que tende a quebrar a cadeia produtiva do livro, levando sérios prejuízos a editoras. Diante desse tipo de prática, podemos ter uma queda brusca em lançamentos e até mesmo na reimpressão (ou publicação virtual) de edições do catálogo. Assim como 'não existe almoço grátis', frase repetida há mais de 80 anos por economistas de variadas escolas, não existe livro grátis", define.

Não existe livro grátis. Alguém está financiando seu tempo para escrever, alguém está editando, traduzindo, revisando, padronizando, diagramando, pensando a capa e pagando custos industriais e de distribuição de uma obra. O livro grátis vem para implodir essa cadeia produtiva.
Ivana Jinkings, fundadora da editora Boitempo

Nota de rodapé: a discussão não está presente só no Brasil. Em julho, quatro editoras estrangeiras (Hachette, HarperCollins, John Wiley & Sons e Penguin Random House) iniciaram um processo contra a plataforma Internet Archive, que divulgou 1,4 milhão de livros digitais não-autorizados, gratuitamente, como alternativa ao fechamento de bibliotecas durante a pandemia do novo coronavírus.

Pré-pandemia, o mercado editorial digital cresceu 115% entre 2016 a 2019, segundo levantamento da empresa germânico-americana Nielsen, feito em parceria com a Câmara Brasileira do Livro e o Sindicato Nacional dos Editores de Livros, divulgado no fim de agosto. Mas o quinhão digital (de e-books e audiolivros) ainda é pequeno: corresponde a 4% do mercado editorial brasileiro.

A impressão de Jinkings é que as discussões na internet polarizaram posições pró-pirataria versus pró-editora, mas "na realidade poderíamos aproveitar o contexto para discutir o acesso à leitura, a falta de políticas de incentivo e fomento, a economia do mercado editorial, o trabalho por trás do livro, de que forma editoras poderiam tornar suas obras mais acessíveis, mantendo sua independência e bibliodiversidade". Para ela, livro é essencial, "tão essencial, que deveria integrar a cesta básica", nas suas palavras. Entretanto, diz ao TAB, diante da crise do mercado editorial, pequenas e médias editoras (como a Boitempo) seriam as mais impactadas com a pirataria e os possíveis novos impostos, como propõe o projeto de lei proposto pelo ministro Paulo Guedes de taxar livros em 12%, sob o argumento de que livro é "produto de elite".

Quanto vale ou é por página

Editoras independentes e acadêmicas, aliadas de primeira hora na defesa da ciência e da cultura acessível a todos, vêm sendo especialmente confrontadas com impasses diante dessa crise: se para não ser elitista e não ficar restrito apenas aos mais ricos, livro não pode ser caro, é possível ser grátis? E, se for tudo liberado sob a licença "creative commons", como se paga o autor, o designer, a produção como um todo?

"É uma conta que não fecha", diz ao TAB o consultor de comunicação Rodrigo Focaccio, do Cultebook. "Ainda não sabemos como equalizar esse impasse. Parte das pessoas ainda vê a internet como um baú onde tudo é gratuito. Pouca gente consegue ter a dimensão de que, no fundo, nada é de graça na internet." Focaccio lembra de um levantamento de 2017 da Nielsen, realizado em parceria com a empresa americana Digimarc, que indicava que 70% dos downloads ilegais de e-books foram feitos por universitários, principalmente na casa dos 30-44 anos, com renda anual de US$ 60 a US$ 90 mil dólares. Isto é, um dos principais impulsos para baixar livros piratas nem sempre seria o preço, mas a praticidade. "É muito fácil baixar um PDF de livro."

Foi o que notou o autor americano Richard Conniff, ao observar seus alunos universitários portando cópias pirateadas da antologia "American Earth", organizada pelo ativista ambientalista americano Bill McKibben para a Library of America, uma editora sem fins lucrativos. "Era uma faculdade muito conhecida por sua política progressista. Por isso, talvez meus alunos devem ter pensado que estavam aplicando um golpe na nefasta hegemonia das gananciosas editoras de textos. Ou, talvez, como o curso e o custo dos livros tinham atingido níveis estratosféricos, eles quisessem apenas economizar US$ 27, o preço com desconto online", escreveu Conniff no New York Times, em fins de 2019, citando "bibliotecas de pirataria" presentes nas buscas do Google, PDFs ilegais no eBay e exemplares escaneados página a página e compartilhados no Facebook, além dos antigos pen drives contendo arquivos não-originais - lembrando que antigamente, no Brasil, a cópia era por páginas, disponibilizadas pelos próprios docentes, nas máquinas de "xerox" nos campi.

"Meus alunos pareceram perplexos, mas não convencidos, pela racionalização de que nós, autores, vivemos de nossa inspiração e do mais puro amor pelo tema. Tentei explicar: nós, autores, precisamos comer, também, e sobrevivemos (ou quase, nos dias de hoje) [...] dia após dia, e ficamos ali até esgotar a nossa cota de palavras, que depois de um tempo serão enviadas a uma editora, na esperança de que, anos mais tarde, uns minguados centavos voltem para nós sob a ridiculamente pomposa palavra de 'royalties'", acrescentou.

Parece que ontem houve aqui uma certa polêmica em relação à editora Boitempo. Vi muita coisa - de defesas do modelo da...

Publicado por Pedro Marin em Quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Na lei brasileira, compartilhar e-books ou livros no formato PDF não-autorizados por autores e editores pode configurar crime de pirataria, sujeito a sanções judiciais, lembra Helen Frota Rozados, professora da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), onde integra o Neiti (Núcleo de Estudos em Imagem, Tecnologia e Informação). "No entanto, controlar essa disseminação não é fácil, não só no Brasil. A internet tem os mais diversos caminhos para contornar esse controle. Isso não acontece apenas com livros, mas com todo o tipo de informação. Basta pensar que um bom hacker pode fazer o que quiser com sua conta de banco. Imagina com um simples livro digital", diz Rozados, coautora do estudo "O livro digital e o direito à luz do Copyleft, Creative Commons e Digital Right Management", publicado na revista acadêmica Biblos.

Grátis e best-seller

Se a indústria da música e do cinema já enfrentaram primeiras ondas de pirataria, o mercado de e-books é o alvo da vez. A questão é especialmente cara a acadêmicos e ativistas de esquerda ligados às editoras independentes - que, de um lado, querem garantir acesso a todos; de outro, muitas vezes, não têm condições de arcar com prejuízos financeiros tal qual titãs do mercado editorial.

Para Cauê Seignemartin Ameni, fundador da editora Autonomia Literária e um dos organizadores da Flipei (Festa Literária Pirata das Editoras Independentes), uma agenda paralela da Flip, divulgar links de livros é "socializar pirateando". "As pessoas só pirateiam porque não têm acesso. E por que não têm acesso? Porque o mercado do livro é gerido e distribuído pelos monopólios [as mega-livrarias]", diz. Na leitura de Ameni, quem precariza os trabalhadores das letras não é a pirataria, mas gigantes como Amazon, que abocanham altos percentuais do preço de um livro -- e governos, que deixam de distribuir livros e dar incentivos fiscais à área.

Certos livros da Autonomia Literária estão com o PDF liberado pelo próprio autor ou organização que apoiou o projeto. "Isso potencializa a divulgação da obra e aumenta a possibilidade de venda, porque ninguém aguenta ficar lendo PDF tosco na internet. Quem for usar o livro de verdade prefere ter impresso ou e-book. E quem ainda tiver consciência crítica vai querer remunerar a editora e os autores pelo trabalho."

O editor cita como exemplos o caso de "A era do capital improdutivo", de Ladislau Dowbor, que está com o PDF liberado no blog do autor e, ao mesmo tempo, é um best-seller da Autonomia Literária; e "Calibã e a bruxa", de Silvia Federici, cujo PDF foi disponibilizado pelo coletivo sycorax, que fez a tradução, e também é um dos sucessos da editora Elefante, parceira da Autonomia Literária em diversos projetos. "Como essas editoras independentes também têm um perfil político, de esquerda, porque querem transformar não só o mercado editorial, mas o mundo, elas engajam mais seus leitores -- que vão apoiá-las quando puderem, pois eles também têm um compromisso político", aposta.

Nos últimos tempos, também se alastrou um PDF não-liberado de "Revolução africana: uma antologia do pensamento marxista", organizada por Jones Manoel e Gabriel Landi Fazzio, e publicada pela Autonomia Literária. Para Manoel, a questão é "simples": "Quem não puder comprar o livro, ótimo que tenha acesso ao material. O mais importante é difundir a teoria revolucionária e o conhecimento crítico. Se você tem condições financeiras, porém, [...] ajude comprando o livro", postou.

"O que me preocupa é um discurso abstrato pseudo-radical de se vangloriar de divulgar PDFs e não perceber que, para o PDF circular, alguém precisa produzir. Alguém precisa escrever, traduzir, revisar, editar, editorar. É importante não perder de vista a cadeia produtiva do livro", acrescenta, em entrevista ao TAB. Na condição de autor, o historiador e militante marxista propõe que os leitores lembrem da produção e ponderem o impacto de circular livros livremente para os trabalhadores (autores, designers, editores etc.) e as editoras, principalmente pequenas e médias. "Vale um debate sobre consumo consciente."