'Brasil vive contrário do que meu pai pensou', diz filho de Ariano Suassuna
O escritor Ariano Suassuna viajava com a família, em 1971, para Taperoá, na Paraíba, quando pediu que o motorista (ele não dirigia) parasse a Kombi, na divisa com Pernambuco. Colocou esposa e filhos (todos recifenses) do lado de fora do carro: eles de um lado, Ariano do outro e, como se recebesse visita em casa, disse: "Vocês vão entrar em solo sagrado". Era a primeira vez que passariam férias no sertão, terra onde Ariano havia crescido.
Quem narra a cena é Manuel Dantas Suassuna, 60, artista plástico e filho do autor de "Auto da Compadecida". Dantas se tornou responsável pela gerência dos projetos editoriais das obras do pai, desde a morte dele, em 2014, aos 87 anos.
Pintor, escultor, desenhista e cenógrafo, ele foi assistente de Francisco Brennand (1927-2019) e trabalha com artes visuais, cinema, televisão e teatro. Além da veia artística do pai e da mãe (a pintora Zélia de Andrade Lima), Dantas herdou deles o imenso fascínio pelo sertão.
Apesar de morar no Recife, é em Taperoá que Dantas mantém o ateliê Cabeça de Cabro e desenvolve seu maior trabalho, a Ilumiara Jaúna, "minha maior herança", diz. Num conjunto de pedras que o pai usou como cenário de uma das cenas do seu último livro, "Romance de Dom Pantero", ele grava figuras e símbolos inspirados nos desenhos rupestres do sítio arqueológico de Ingá, no interior paraibano.
Entre 18 de outubro de 1970, data de lançamento do Movimento Armorial, e hoje, inúmeras mudanças marcam o Brasil. A iniciativa, capitaneada por Ariano Suassuna, reunia artistas que buscavam unir elementos eruditos à arte popular nordestina. As rupturas mais doídas no Brasil de 2020 são justamente as que ameaçam a identidade do povo brasileiro, em "um novo choque entre o Brasil oficial e o Brasil real", como diz Dantas ao TAB.
Desde 2013, o artista percorre o interior de Bahia, Sergipe, Alagoas e Paraíba, numa pesquisa performática em cidades por onde passou Antônio Conselheiro, que no século 19 enfrentou o Exército questionando a atuação do Estado. Dantas viaja vestindo um hábito semelhante ao usado por Conselheiro, faz desenhos e pinturas e recolhe objetos que darão base a uma exposição.
Nesta entrevista ao TAB, Dantas fala sobre seu trabalho e a celebração de cinco décadas do movimento artístico criado no Recife por Suassuna, em busca de uma arte erudita com base nas expressões culturais populares.
TAB: Por que refazer os caminhos de Antônio Conselheiro?
Manuel Dantas Suassuna: Numa conversa com meu pai, uma vez, ele disse que para entender o Brasil é preciso compreender Canudos, e isso ficou na minha cabeça. Passei a reler "Os Sertões", e lá Euclides [da Cunha] contava que, antes de Conselheiro se estabelecer em Belo Monte, foi acusado de dois crimes, e foi preso no Ceará, em Quixeramobim. Depois foi absolvido, porque as acusações não eram verdadeiras -- ele tinha sido acusado de matar a mãe, que morreu quando ele era criança, e a mulher, que estava viva. Soltaram Conselheiro, e na volta para a Bahia, caminhando, ele fez uma promessa que, nessa trajetória ia construir 25 obras. Fui pesquisar mais sobre isso, e encontrei na biblioteca de papai o livro "Cartografia de Canudos", de José Calasans, com a catalogação de 23 das 25 obras, incluindo estradas, açudes, cemitérios, igrejas. Decidi pesquisar o lado construtor de Antônio Conselheiro.
TAB: E como refaz esses trajetos?
MDS: Bordo na roupa os nomes dos lugares por onde passei. Essa roupa depois vai ser exposta. Vou colhendo material, cruzes, objetos, que vão dar base a esculturas, obras em cerâmica, pinturas e desenhos. Refaço nos cadernos de anotação, como Euclides tinha quando visitou Canudos, aquilo que eu acho relevante nesse processo.
TAB: Você encontrou reflexos de Canudos no Brasil atual?
MDS: O Brasil profundo está da mesma forma que era Canudos: seu povo buscando a melhora das coisas destruídas pelo Brasil real. Os personagens são muito parecidos. A gente encontra personagens religiosos, míticos, principalmente nas manifestações religiosas e culturais. Vejo que há um protestantismo crescente no sertão. Mas sinto que no momento de seca, essa fé do catolicismo sertanejo aumenta, ela fica mais exacerbada. Ela vem mais à tona. E esse simbolismo do catolicismo é mais forte do que o protestantismo. Numa procissão em Dia de Finados, em Monte Santo [Bahia], por exemplo, vimos pessoas usando roupas que levam você àquela época de Canudos, com velas, candeeiros acesos, banda de música, um ambiente incensado daquela época de Conselheiro.
TAB: Neste caso, você fala de um Canudos também urbano?
MDS: Sim, e isso faz parte da pesquisa. Nas próximas etapas, quero conhecer a igreja do Morro da Providência [no Rio de Janeiro], onde dizem estar a cruz do Senhor do Bonfim que ficava na capela de Canudos. E também quero visitar o assentamento do MST que se chama Nova Canudos, às margens da [rodovia] Régis Bittencourt [em São Paulo].
TAB: Como esse material vai ser transformado em exposição?
MDS: "Pelo Caminho Sagrado", como se chama o trabalho, é interminável. É uma obra sempre em continuidade, uma busca pelo meu próprio caminho. Mas a ideia é transformar a pesquisa em desdobramentos, que se transforma em palestra, em filmes e em obras. Dois documentários já foram feitos, e em breve deve ser lançado mais um.
TAB: Com a morte do seu pai, você assumiu os projetos editoriais dele, incluindo a publicação do último livro e a coletânea das peças teatrais. Você pensava nessa responsabilidade?
MDS: Eu me sinto orgulhoso, na verdade, desde que voltei de Taperoá para o Recife. Com o "encantamento" dele, sinto que a obra dele me pertence também. Antes pertencia a ele. A capa da reedição de "A história do Amor de Fernando e Isaura", lançada em 2019: peguei o desenho dele e interferi. Transformei numa obra nossa. Obviamente, é um filho em busca do pai.
TAB: Ele falava sobre isso?
MDS: Em 2013, ele teve um infarto. [O pesquisador e professor] Carlos Newton Jr. ia lá em casa para conversar com ele sobre a edição de "Dom Pantero". Um dia, meu pai me chamou e disse: "Fique você aqui também, que a conversa vai ser com vocês dois. Como vocês sabem, eu tive um infarto. Fiz um pacto com Deus para terminar o livro, mas se eu não conseguir, vocês vão ficar responsáveis por terminar." Nesse dia a gente conversou sobre editora, sobre tudo. Era uma conversa definitiva entre o filho, o pai e o amigo.
TAB: Agora em outubro, completam-se 50 anos do Manifesto Armorial. O pensamento de Ariano permanece?
MDS: O Brasil está olhando para o Armorial. Não somente eu, [o músico] Antônio Madureira, [a bailarina e coreógrafa] Maria Paula Costa Rêgo, que estamos ligados ao movimento, mas vejo uma compreensão muito grande. Vejo artistas que não são armoriais se baseando nele também. Ai Weiwei, por exemplo, usou a tipografia armorial em uma obra. Isso porque são ideias do Brasil. A base do Armorial está no Brasil.
TAB: Sua obra tem um estilo muito abstrato, paisagístico, apesar dos símbolos. Como você construiu sua própria identidade armorial?
MDS: Quando papai lançou o movimento, em 1970, ele elegeu pintores que ele achava armorial, que já tinha trabalho feito: Gilvan Samico e Francisco Brennand. A minha geração já é a seguinte. Mas, diferentemente dos artistas e pintores da minha geração, me afastei do meu pai. Não sentimentalmente, mas fisicamente. Fui para o sertão buscar minha própria identidade, com base na pintura rupestre, nas gravuras de cordel, na referência ibérica, nos altares de ex-votos e nos símbolos das entidades afro-brasileiras. Quando fui ficando um pouco mais velho, criei um apreço pelas pinturas de paisagem do Brasil, e hoje faço uma coisa muito influenciada pela obra de Aluísio Magalhães. É uma mistura de paisagem com símbolos, que chamo de herança heráldica brasileira, com a paisagem sertaneja e símbolos ligados ao movimento armorial.
TAB: Na véspera do segundo turno das eleições de 2018, você publicou uma carta a qual chamou de "Diálogo com meu Pai". Dizia que estava em curso um "novo e grande choque entre o Brasil oficial e o Brasil real". Era uma crítica à candidatura de Jair Bolsonaro. O que você acha que Ariano Suassuna estaria pensando do país de hoje?
MDS: Ele estaria reagindo ferozmente. Tudo que está acontecendo é absolutamente contra o pensamento dele. O Brasil entrou num caminho terrível. Papai estaria indignado, mas estaria lutando ao lado da gente. Cada um, a seu modo, deve resistir ao que está acontecendo no Brasil.
TAB: A que você se refere quando diz que "esse Brasil oficial de hoje é completamente o contrário" daquele que Ariano Suassuna pensou?
MDS: Por exemplo, essa ala dos militares no poder é entreguista. Não são nacionalistas. E acho que nacionalista nem existe mais dentro desse governo. Então é tudo contra o que Ariano pensou. Esses dias, derrubaram a estátua de papai, no Centro do Recife, e a minha filha fez um comentário, brincando, dizendo: "Eu acho que vovô se jogou, com o Brasil que ele tá vendo".
TAB: Como o Movimento Armorial te ajuda a pensar o Brasil?
MDS: Valorizando o que o Brasil tem de melhor: seus artistas que pensam no Brasil. Não o artista que só pensa para a Europa. Obviamente que eu posso fazer uma exposição lá, mas meu interesse é o Brasil e o Nordeste do Brasil. Meus interesses são os artistas populares, a arte rupestre, o Brasil real e profundo, como aquele de Canudos. Meu interesse é mostrar o Brasil para o brasileiro.
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