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Enfermeiros brasileiros esbarram em burocracia para trabalhar em Portugal

Evelin Gisele Guedes, que conseguiu emprego como enfermeira em Lisboa - Yasmin Araújo/UOL
Evelin Gisele Guedes, que conseguiu emprego como enfermeira em Lisboa Imagem: Yasmin Araújo/UOL

Luciana Alvarez

Colaboração para o TAB, de Lisboa (Portugal)

11/02/2021 04h00

Lívia Moreira, 32, trabalhava em um hospital público do Rio de Janeiro e se mudou para Portugal em 2019, já matriculada no mestrado da Escola de Enfermagem de Coimbra. Sabia que teria de passar por um processo de validação do diploma, mas jamais imaginou que, dois anos depois, ainda estaria sem conseguir atuar. "Assim que cheguei, pedi a equivalência. Todos os dias vejo nos jornais que Portugal precisa de enfermeiros, enquanto eu não posso trabalhar", diz.

Para ela, o pior foram as mudanças no meio do caminho. Primeiro, para validar o diploma, precisaria passar por estágios básicos -- o que lhe pareceu sem sentido. Além de sua experiência profissional comprovada, ela já tinha feito mestrado. "Eu já havia estagiado em cuidados intensivos e em contexto de urgência, sempre com boas notas. Não me recusei a fazer nada, mas por causa da pandemia, os estágios mais básicos que estavam me pedindo foram suspensos", lembra.

A enfermeira ainda esperava pela oportunidade de cumprir as etapas básicas novamente quando seu processo foi anulado. Teve, então, que se inscrever como aluna do curso de graduação em enfermagem e validar cada um das disciplinas. Agora, para conquistar a equivalência do diploma, precisa cursar matérias teóricas. "Eu queria estar na linha de frente. Fico agoniada ao me ver de mãos atadas", afirma.

Lívia Moreira, enfermeira brasileira em Coimbra - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Lívia Moreira, enfermeira brasileira em Coimbra
Imagem: Arquivo pessoal

A esperança de conseguir finalmente trabalhar na própria área de atuação aumentou depois que, no final de janeiro, em uma das medidas para tentar lidar com o caos no país, o ministério da Saúde português autorizou a contratação de profissionais de saúde com diplomas do exterior. Teoricamente, eles poderiam atuar na linha de frente dos hospitais contanto que tivessem cinco anos de experiência e estivessem fazendo a validação dos diplomas. As contratações seriam emergenciais, pelo período máximo de um ano.

Por discordar dessa autorização, entretanto, a Ordem dos Enfermeiros portuguesa fez um apelo público aos gestores para que não usassem essa resolução, apesar de reconhecer a falta de pessoal.

Ninguém sabe exatamente quantos profissionais tentam validar o diploma em Portugal neste momento. Em abril do ano passado, durante a primeira onda do covid-19, um grupo de 200 enfermeiros brasileiros enviou uma carta oferecendo ajuda em hospitais, mas a oferta foi recusada pela Ordem dos Enfermeiros. A Embaixada do Brasil em Lisboa acompanha o assunto desde então. Uma carta foi enviada à ministra da Saúde e a resposta oficial foi de que "o governo português está aberto ao diálogo, mas a Ordem é um órgão que tem autonomia para credenciar ou não estrangeiros."

Pablo Duarte Cardoso, ministro-conselheiro na embaixada, explica que "assuntos de exercício profissional são muito melindrosos, porque há a intervenção de órgãos não estatais, as ordens. É mais do que uma discussão entre dois governos".
Mais recentemente, a embaixada reforçou o posicionamento em defesa do exercício profissional dos enfermeiros brasileiros, elencando o nome de 98 profissionais que já entraram com o processo de validação do diploma e ainda não conseguiram a acreditação. Também deu início aos trabalhos de uma subcomissão bilateral para tratar do tema, mas o resultado pode demorar. "Queremos uma solução definitiva, mas também estamos chamando atenção do governo português para construir uma solução imediata, no meio da pandemia", diz Cardoso.

Dentro do hospital, mas como auxiliar

Em Portugal, os enfermeiros brasileiros acabam aceitando empregos menos especializados para permanecer na área da saúde. Luana Brito, 36, está na linha de frente do combate à covid, já foi infectada e precisou ficar afastada do trabalho por 20 dias. Ainda assim, faz menos do que poderia: ela é enfermeira formada no Brasil, mas há três anos trabalha como auxiliar hospitalar em Lisboa — função com menos responsabilidades que um técnico de enfermagem em hospitais brasileiros.

"Como auxiliar, eu dou banho, dou comida, tenho que limpar as camas, organizar a reposição de materiais. No começo, eu só chorava", recorda. Muitas vezes, a profissional sofre com a sensação de impotência. "Ainda é difícil quando vejo chegarem enfermeiros novos, que não sabem fazer direito certos procedimentos que eu sei bem. Como auxiliar, tenho que saber o meu lugar, respeitar minha função, porque existe uma questão ética", diz ao TAB.

Embora ganhe menos do que um enfermeiro, nunca faltou emprego para a brasileira. Atualmente, Luana trabalha em dois hospitais e está sempre recusando propostas. Ela reconhece que existem pequenas diferenças na prática da enfermagem nos dois países, mas garante que não há nada que um enfermeiro brasileiro não saiba fazer. "Aqui não existe o técnico de enfermagem, como o no Brasil. É o enfermeiro que faz tudo. Por isso, existe certo preconceito, dizem que o enfermeiro brasileiro só sabe trabalhar numa mesa".

A brasileira Luana Brito, auxiliar hospitalar em Lisboa - Yasmin Araújo/UOL - Yasmin Araújo/UOL
A brasileira Luana Brito, auxiliar hospitalar em Lisboa
Imagem: Yasmin Araújo/UOL

Água mole em pedra dura

Apesar das burocracias e obstáculos práticos, conseguir validar o diploma não é apenas uma miragem: há enfermeiros brasileiros que conseguiram e, hoje, trabalham na área. É o caso de Evelin Gisele Guedes, concursada em um grande hospital de Lisboa como enfermeira. Ela reconhece que o processo é complexo, mas não impossível. "Quando me mudei, fazia um ano que pesquisava sobre a validação, estudava os critérios da Ordem. Montei um fichário com todas as informações, quais as universidades aceitavam, os requisitos de cada uma, as leis", recorda.

Para ter o reconhecimento do seu diploma, precisou fazer uma série de disciplinas durante um semestre. "Me mudei para Coimbra, aluguei um quarto, fiquei longe da família. Mas valeu a pena -- e foi realmente importante voltar a estudar, porque embora os procedimentos sejam universais, o sistema de trabalho é outro", diz ao TAB.

No momento de crise sanitária que o país atravessa, ela diz que a rotina está ainda mais puxada, inclusive para ela, que trabalha em um serviço cirúrgico. "Cheguei a me oferecer para trabalhar no atendimento a pacientes com covid, mas não me chamaram. Meu serviço não é de urgência, mas mesmo assim está mais pesado."

Outros caminhos

As dificuldades para exercer legalmente a enfermagem levam alguns a abandonar a carreira. Com 10 anos de experiência, Lorena Pestana, 32, mudou-se para Portugal em 2019, confiante que continuaria na área. "Sou especialista em geriatria, e aqui existe muita demanda. Ainda no Brasil, fiz o primeiro contato com a Ordem de Portugal, então trouxe todos os documentos solicitados -- e logo que cheguei dei entrada no processo", lembra.

Acreditando que a validação seria simples, Lorena aproveitou para mandar currículos. Foi chamada para entrevistas e recebeu várias ofertas. Só que a certificação não veio. "Levaram quatro meses para me responder negando o credenciamento por questões de horas de estágio, porque no Brasil o curso é bacharelado e aqui se chama licenciatura. Foi um balde de água fria."

Lorena Pestana acabou desistindo da área de enfermagem em Portugal - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Lorena Pestana acabou desistindo da área de enfermagem em Portugal
Imagem: Arquivo pessoal

Para cumprir os novos requisitos, Lorena teria de ir para uma faculdade particular por mais um ano e precisaria se mudar de cidade, porque nenhuma instituição próxima a Oeiras está fazendo a equivalência. "Minha filha já estava na escola, meu marido trabalhando na área dele, não fazia sentido para minha família essa nova mudança", lamenta.

A brasileira acabou conseguindo emprego como vendedora em uma loja de shopping, onde trabalhou por um ano. Enquanto isso, fez um curso online para auxiliar dentária e seguiu para essa nova carreira. "Foi um susto me ver como enfermeira sem poder trabalhar na área. Mas encarei o desafio: gostei de trabalhar como vendedora e estou feliz na clínica dentária. O cuidado com o paciente, algo importante na enfermagem, eu também encontro nessa posição."