Com 10 meses de pandemia, como está a temperatura no hospital Emílio Ribas
Em um dos quartos da enfermaria do Hospital Emílio Ribas, em São Paulo, há um homem de meia-idade deitado em uma cama de forma muito confortável, com um dos braços levantados atrás da cabeça encostada no travesseiro. Na mão direita, ele segura o celular e conversa com alguém do outro lado da tela.
Na cama ao lado, outro homem dorme sem se incomodar com o som da voz do vizinho. Quem passa pelo corredor não ouve o barulho da conversa, que parece animada, mas vê a cena por meio de uma janela de vidro que foi colocada na porta do quarto. Ao lado, uma placa indica o motivo da internação: covid-19. Se a cor da placa for amarela, significa que o auge da doença já passou, o paciente não está transmitindo o vírus. Se a placa for marrom, o cuidado deve ser redobrado — e era essa a placa na ala em que a dupla descansava.
O quinto andar do hospital ganhou as janelas nas portas e as placas quando a enfermaria foi transformada em uma UTI improvisada, no auge da crise em 2020. O vidro permite que os profissionais de saúde observem os pacientes sem precisar entrar e sair dos quartos — ação que exige uma paramentação completa. Um deslize é suficiente para causar contaminação.
"Um paciente precisa ser checado de meia em meia hora, teria que se trocar toda hora, não dá", diz Sérgio Cletto, 46, enfermeiro do hospital responsável pela área da hemodiálise. "Então, assim, a gente pode olhar e não tem necessidade de entrar, vemos pelo monitor se está tudo bem. Essa sacada do doutor Luiz foi muito boa para o profissional, para o paciente e para o hospital", elogia. A assessora que nos acompanha brinca que Luiz Carlos Pereira Júnior, 60, médico infectologista e diretor do Emílio Ribas, é um arquiteto frustrado. Foi ele quem redesenhou o espaço da enfermaria.
No corredor, em frente a cada porta, há uma cadeira como aquelas universitárias, com mesinha acoplada. Na entrada do leito 503, uma enfermeira faz anotações sobre o estado de saúde do paciente que conversa com a família pelo celular e seu colega de quarto. As mudanças no quinto andar são efeitos da pandemia. Na enfermaria, as visitas acontecem somente por meio de telas, por isso o celular está presente no 503 — diferentemente da UTI, onde familiares podem visitar os internados por cinco minutos, acompanhados dos profissionais de saúde, e vê-los através do vidro dos leitos, como já acontecia.
Quando o novo coronavírus eclodiu em São Paulo, a UTI do Emílio Ribas foi a primeira da cidade a ter 100% dos seus leitos ocupados por pacientes com covid-19 em estado grave. Antes da doença, eram 12 leitos. Em abril de 2020, 30. Agora, são 60. Na enfermaria, há 66. Tanto o segundo andar do hospital, onde fica a UTI, quanto a enfermaria operam com quase a mesma taxa de ocupação: entre 95% e 100%. Com exceção de um rapaz de 19 anos, internado por conta de uma tuberculose, na unidade de terapia intensiva todos os pacientes têm o mesmo diagnóstico: covid-19. O mesmo acontece na enfermaria.
A diferença, desta vez, é o perfil de paciente. Em meados de 2020, a maioria dos internados era bastante idosa; hoje, há muitos com menos de 60 anos. Em um dos leitos da UTI, há um paciente de 39 anos.
Mudança de ritmo
Alguns pacientes respiram com ajuda de aparelhos, como aconteceu durante a primeira onda da pandemia, mas nem todos. Desta vez, há alguns acordados. De dentro do leito 212, Joana*, 66, dá um tchauzinho para a reportagem e abre um sorriso. Do outro lado do corredor, um homem dorme de bruços. O passar do tempo trouxe novos aprendizados. De barriga para baixo, fica mais fácil de respirar. "Nada como a experiência", diz o diretor do hospital. Ao longo do tempo, os profissionais de saúde entenderam melhor como lidar com a doença, desde seu modo de transmissão até o manejo clínico.
Outra diferença perceptível no Emílio Ribas de maio para cá é o clima entre os funcionários do hospital. Ao invés da correria e do terror visível nos olhares por cima das máscaras, agora, a sensação é de maior confiança. "No começo, o medo era do desconhecido, gerava insegurança", diz Cletto ao TAB. "A gente não sabia com o que a gente estava lidando, foi fora do comum, gerou um estresse muito grande", relata o profissional com 23 anos de experiência. O diretor do hospital concorda: "Vivi momentos difíceis aqui no início dos anos 1990 com a epidemia da aids, foi desafiador. Mas nada se compara à pandemia de covid-19."
A rotina sem hora para acabar também é menos frequente. Mais profissionais foram recrutados, e o número de pacientes também foi diminuindo "No começo, a gente sabia que ia chegar para trabalhar e não sabia a que horas ia embora", lembra o enfermeiro. "Se uma nova equipe não chega, eu não posso liberar quem está aqui. Não era frequente isso acontecer antes, mas em 2020 foi direto."
Em seu setor, no início da pandemia, o trabalho triplicou — de 100 diálises por mês, a equipe passou a realizar 300 procedimentos. O pior não passou, ainda está acontecendo, mas há maior controle sobre os protocolos de atendimento e sobre a doença em si. "O medo de vir trabalhar, de cuidar dos pacientes, passou", diz Cletto. Mas, em casa, o cuidado continua redobrado, já que sua mulher está grávida de cinco meses. "Foi um acidente", confessa o enfermeiro, dando risada. Também enfermeira do Emílio Ribas, ela está afastada do hospital.
A morte, ao contrário do que aconteceu no início da pandemia, é menos frequente dentro do Emílio Ribas. Na última semana, o Brasil ultrapassou a marca de 200 mil vítimas da covid-19. Os números assustam, mas fizeram com que o hospital criasse uma sala de acolhimento. Antes, a notícia de óbito era dada pelos médicos, de pé, entre quatro paredes que separam a UTI da recepção dos visitantes do segundo andar. Hoje, uma sala maior, com cadeiras e uma mesa com café e água foi designada na ala do pronto-socorro para acolher os familiares em luto. No dia da visita da reportagem, a sala estava vazia. A segunda onda da pandemia, segundo Pereira, é marcada pelo aumento do número de casos, mas menos intensa no número de óbitos, pois "interna-se os pacientes mais cedo e maneja-se melhor a doença".
Novo normal
Pergunto ao enfermeiro que nos guiou pelo hospital se o número de mortes impactou o trabalho de alguma forma. "Quando chegou a 10 mil mortes, foi assustador. O Jornal Nacional tirou a música de fundo no fim do jornal. Mas depois das 50 mil, parecia que não tinha uma anormalidade. Quando chegou a 100 mil, ninguém mais estava com medo", responde. "Em março, nós não estaríamos conversando com essa tranquilidade no corredor de uma UTI", diz. Com o decorrer da pandemia, o medo foi sendo substituído pela esperança, "falo por mim e pela minha equipe, vejo no semblante das pessoas", afirma Cletto.
O otimismo tem sua origem no andar térreo do hospital, onde fica o centro de vacinação. Foi ali que 1.430 funcionários do Emílio Ribas se apresentaram como voluntários da CoronaVac, a vacina desenvolvida pela empresa Sinovac, da China, e pelo Instituto Butantan.
Cletto foi um dos voluntários. "É quase como cumprir um papel de guerra. É preciso ter soldados para a guerra e, para a vacina, voluntários. A gente foi para uma guerra", afirma. "Acredito que exerci um papel de cidadania. Estou ajudando como profissional de saúde e como cidadão. Poder tomar vacina — ou placebo, não sei o que tomei —, é um privilégio e uma coisa que vai ajudar a termos uma solução mais rápida para a pandemia", diz. Para ele, já é possível ver a luz no fim do túnel. "Não é nem uma luz, é a claridade do dia", comemora. "Encontramos a solução do problema." No corredor do centro de vacinação, a palavra de ordem é 'vitória'".
O momento, no entanto, ainda é de cautela. Apesar da boa notícia, não será possível sair abraçando os amigos e idosos da família depois de levar as duas doses da picada. As máscaras fora do ambiente de trabalho, grande incômodo para Cletto, continuarão presentes em nossas rotinas.
"Ter vacina nesse momento, em que nós temos uma taxa de transmissão ainda alta, não significa baixar a guarda", alerta Pereira. "Quando cair a taxa de transmissão e a gente tiver certeza de que o vírus está circulando menos, aí sim a gente vai poder relaxar um pouco", completa.
Há o que comemorar?
A CoronaVac é a grande aposta do governador João Doria (PSDB) para frear o avanço da pandemia. No último dia 7 de janeiro, foram anunciados os dados de que a vacina foi 100% eficaz na prevenção de casos graves de covid-19 e 78% nos casos leves da doença. Os resultados, no entanto, são secundários. Muitos pesquisadores criticaram o anúncio dos números, afirmando que há falta de transparência na divulgação dos dados. Na última terça-feira (12), o Instituto Butantan divulgou que a CoronaVac tem 50,4% de eficácia geral.
Para o diretor do Emílio Ribas, os dados são muito animadores e fazem com que a tensão ceda lugar ao alívio. "Temos uma vacina produzida no Brasil e eficaz, capaz de reduzir drasticamente as complicações, a necessidade de intervenção médica e de hospitalização", afirma Pereira. "Na prática, significa, aos poucos, não trabalharmos mais sob a pressão extrema com a qual temos convivido esses meses todos e, especialmente, não testemunharmos mais a dor diária e inconsolável dos familiares dos nossos pacientes mais graves e dos que vão a óbito."
A confusão sobre a divulgação dos dados, no entanto, levantou desconfiança sobre a vacina nas redes sociais. Mais uma vez, houve politização do debate em torno de assuntos pandêmicos.
Uma pesquisa do DataFolha, no entanto, mostra que 73% dos brasileiros estão dispostos a se vacinar. "Tenho a impressão de que a politização das vacinas está seguindo o mesmo caminho da cloroquina", diz Pereira.
No auge das fake news sobre a cloroquina, o medicamento deixou de fazer parte do protocolo de atendimento à covid-19 no Emílio Ribas por não ter eficácia comprovada contra a doença. Mesmo assim, está disponível na farmácia do hospital para o profissional que optar por receitar -- por conta e risco de seu próprio CRM. Ainda hoje, há pacientes que pedem o medicamento.
Mas a cloroquina de 2021 é a ivermectina, outro medicamento que não tem eficácia comprovada no combate à doença, conta Pereira. "Tem sido mais fácil falar sobre vacina, está muito presente na mídia e ficando cada vez mais claro que as vacinas são seguras", afirma Pereira. "Ninguém vai virar jacaré se vacinando", assegura o médico, que se diverte com os memes sobre a pandemia.
Entre os consultórios onde aconteceram os testes da CoronaVac, o diretor do hospital marcou presença. Desde o início do processo, atende os voluntários aos sábados, ao lado de uma equipe de 51 profissionais envolvidos na pesquisa. Até agora, não contraiu a doença. "Sou muito rigoroso até no meu escritório, se pego no meu telefone, que só eu uso, passo álcool em gel", diz.
Fora os sábados, é dentro do escritório em uma casa rosada no complexo hospitalar que Pereira trabalha. Sua maior ação se dá nos bastidores do atendimento. Segundo colegas, durante a pandemia, era o primeiro a chegar no hospital e um dos últimos a ir embora.
Apesar da idade considerada de risco para a doença, o médico não considerou parar de trabalhar em nenhum momento. "Receio a gente sempre tem, mas faz isso parte para que a gente não baixe a guarda", diz. "Não consigo tirar férias, se eu não tiver informações sobre o andamento do hospital, me estresso", conta.
A agenda do diretor é lotada de reuniões. No dia da visita da reportagem, a pauta da reunião das 11h era o início do planejamento pós-covid. Em breve, concursos serão abertos para aumentar o corpo de funcionários. A reforma do hospital, iniciada antes da pandemia, deverá voltar ao ritmo de antes — durante a crise, ela foi desacelerada. No prédio administrativo, o futuro também é promissor.
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