Topo

Mel Reis, a bailarina de São Paulo que precisa de um novo pé esquerdo

A bailarina Mel Reis, em sua casa no Mandaqui, zona norte de São Paulo - Fernando Moraes/UOL
A bailarina Mel Reis, em sua casa no Mandaqui, zona norte de São Paulo Imagem: Fernando Moraes/UOL

Edison Veiga

Colaboração para o TAB, de Bled (Eslovênia)

02/04/2021 04h01

Quando menina, seu sonho eram as sapatilhas. Quando as calçava e experimentava a leveza da dança, era feliz. Depois do acidente que mudou sua vida, o desejo passou a ser ficar de pé sem precisar de muletas -- a aridez maciça do aparato não combinava com a essência da bailarina. Agora ela precisa de um novo pé esquerdo.

Quinze mil e oitocentos reais separam a bailarina Melina Vieira Reis, 36, mais conhecida como Mel Reis, de retomar uma vida normal. É o preço de uma prótese feita sob medida e com tecnologia compatível com o uso de alguém que usa muito os pés, mais do que alguém que só os para se locomover.

Toda a leveza e suavidade dos passos do balé foram interrompidos de forma abrupta em um acidente de moto em 2 de junho de 2002, no bairro de Lauzane Paulista, zona norte de São Paulo.

São flashes, essas lembranças. A colisão com um carro. A dor. O resgate. A fratura exposta. O medo de morrer. O atendimento médico, os primeiros-socorros. A espera, a longa espera -- cinco horas na maca do Hospital Geral de Vila Penteado. Na sua cabeça, dava para imaginar duas vezes inteiras "O Lago dos Cisnes", de Tchaikovski, e ainda sobrava tempo para mentalmente pensar em plié, tendu, jeté, rond de jambe, fondu, frappé, grand battement, adagio, en dehors, os nove passos básicos do balé.

O medo de nunca mais dançar. O pavor de nunca mais dançar.

Ela tinha 17 anos.

"A perna ficou lá, aguardando. A cirurgia demorou. No dia seguinte me transferiram para a Santa Casa", recorda-se. "Eu não perdi o pé nesse momento. Eu não aceitava perdê-lo, não aceitava a amputação. Mas comecei ali uma luta com o pé."

O diagnóstico foi osteomielite, ou seja, o osso acabou infectado por bactérias, provavelmente em decorrência da fratura exposta por horas em um ambiente hospitalar. "Desde o primeiro momento já falavam: ou você amputa a perna ou você vai morrer", conta. Sua decisão cobrou 38 cirurgias. E um peso: quatro meses internada, três anos sem conseguir botar o pé no chão. E, depois, as muletas e os dez medicamentos tomados todos os dias. "Perdi a mobilidade do tornozelo e de todos os dedos."

Quatro anos antes do acidente, Mel havia conseguido "subir na ponta" pela primeira vez. Aquele momento tinha sido mágico. Em suas palavras, era como se sua alma dançasse. Deitada na cama do hospital, ela olhava para seu pé esquerdo em frangalhos e só pensava nisso: "a ponta" não seria mais possível?

A bailarina Mel Reis, em sua casa no Mandaqui, zona norte de São Paulo - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Imagem: Fernando Moraes/UOL

A decisão de amputar

Foram doze anos de tratamentos, idas e vindas ao hospital, tentativas, insistências. Em muitos momentos, era impossível encostar o pé no chão, tamanha a dor. Lancinante também era a dor interior, porque a "alma dançante", daquele jeito, estava engaiolada pelos metais dos fixadores pós-cirúrgicos.

"Mas eu nunca deixei de acreditar que um dia eu iria voltar a dançar", afirma. "Estive entre a vida e a morte e tudo o que eu queria era voltar a dançar."

Foi um processo também de autoconvencimento, de tanto ouvir os médicos dizendo que, em seu caso, amputar a perna esquerda seria melhorar a qualidade de vida. Em 28 de outubro de 2014, ela se submeteu à cirurgia definitiva.

Mel tinha em mente voltar a dançar. Imaginou que conseguiria adaptar os movimentos e fazê-los com uma prótese adequada. Pesquisou e não encontrou ninguém que, sem um dos pés, dançasse balé. Resolveu se inspirar em atletas paralímpicos, que conseguem fazer movimentos específicos em condição semelhante.

Com dificuldades financeiras, ela decidiu fazer uma campanha de financiamento coletivo para pagar as despesas com a cirurgia e conseguir comprar a prótese. Vislumbrava contar com a ajuda dos amigos, mas a iniciativa viralizou e ela foi chamada para participar do programa "Hora do Faro", da TV Record. Conseguiu patrocínio para todos os custos e, em abril, estava de volta ao programa, feliz da vida com o novo pé.

"Desde o primeiro dia em que coloquei a prótese, comecei a dançar de novo", diz. "Na verdade foi preciso adaptar tudo, né? Tudo aquilo que eu sabia da técnica de balé não serve mais para mim."

Melina Reis, bailarina - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

Era um recomeço de vida e de carreira. Mel passou a se apresentar na condição especial de "primeira bailarina do mundo a dançar com prótese". Em novembro de 2017, emocionou o público do Parlamento Europeu, em Bruxelas, na Bélgica. "Melina demonstra de forma belíssima, por meio da dança, como a tecnologia médica pode mudar a vida das pessoas", comentou na época a coordenadora de políticas públicas da instituição que a convidou, Sonja Kropidlowska. Dois anos mais tarde, a bailarina foi uma das principais atrações do evento beneficente Teletón México.

Nesse meio-tempo, virou palestrante, usando como premissa sua história de vida, e acabou contratada com frequência para estrelar campanhas publicitárias com discurso inclusivo. E criou uma ONG para divulgar seu método de balé adaptado e ajudar crianças e adolescentes com deficiência a também conseguirem dançar. Por meio de um amigo em comum, o muralista Eduardo Kobra conheceu a história de Mel e decidiu retratá-la em uma obra -- Mel tornou-se destaque de "Escadaria das Bailarinas", trabalho feito em 2018 no bairro de Pinheiros.

Sessão de fotos de Melina Reis com Kobra, em São Paulo - Divulgação - Divulgação
Sessão de fotos de Mel Reis com Kobra, no Viaduto Santa Efigênia, no centro de São Paulo
Imagem: Divulgação

Não dá pé

Mas veio a covid-19, e o que parecia estar indo bem, desandou. Mais um drama na vida de Mel. Os trabalhos foram, um a um, cancelados. Ela conta que passou a viver com R$ 1,3 mil por mês -- valor do benefício social que recebe, desde que sofreu o acidente. Com esse dinheiro, paga o aluguel do pequeno apartamento onde mora no Mandaqui e sustenta a filha, Zoe, de 4 anos. "Sou mãe solteira, com muito orgulho. Ela é minha força e o que me dá coragem para continuar."

Apertou o orçamento, reduziu os custos e fez um pacto consigo mesma para sobreviver a essa fase difícil. O que não estava nesse enxuto plano financeiro era o prazo de validade do seu pé esquerdo. "Tenho ele desde 2015. Acabou a vida útil. A prótese está rachada, pelo desgaste natural", explica. Essa situação exige dela um esforço maior para caminhar, ao mesmo tempo que convive com a angústia de saber que, mais dia, menos dia, a prótese vai quebrar de vez.

Dinheiro para um pé novo ela não tem. Kobra teve uma ideia: transformar o retrato que fez de Mel em uma serigrafia. A ideia é leiloar a peça e reverter para o novo pé esquerdo da bailarina. A campanha já está no ar.

"Estou muito vulnerável. Sinto-me limitada pela prótese, porque não posso forçá-la, isso mexe com minhas emoções. Preciso resolver esse problema. Para mim é grave, muito grave", comenta. "Pode não ser para quem tem grana. Ou para quem tem as duas pernas. Mas para mim é muito grave: o medo de ter de voltar a usar muletas [caso fique sem prótese] me remete às perdas do passado."

Metaforicamente, Mel Reis precisa andar na ponta dos pés, com cuidado. Mas só com a prótese nova ela poderá voltar a ser quem é: uma bailarina, dessas que dançam nas pontas.