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'Mas que dói, dói': o que é real na dor fantasma que atormenta amputados

Alessandra Scaratto Budny, que perdeu a perna em um acidente de moto - Fernando Cremonez/UOL
Alessandra Scaratto Budny, que perdeu a perna em um acidente de moto Imagem: Fernando Cremonez/UOL

Mônica Manir

Colaboração para o TAB

17/01/2021 04h00

"Não é dor fantasma, é dor real", diz Alessandra Scaratto Budny, olhos expressivos, cabelos lisos espalhados nos ombros. Há oito anos, a paranaense se vê às voltas com sensações desconfortáveis na perna que se foi. Ora são fisgadas, ora a coceira, ora o "membro gelado", ora uma ardência no dedinho do pé ausente. "Sinto mais a perna que não existe do que a minha que está aqui."

Por volta das 18h do dia 6 de setembro de 2012, um carro atingiu a moto CG 125 de Alessandra em Apucarana, cidade vizinha à sua Arapongas, região metropolitana de Londrina. A moça teve fratura exposta na tíbia esquerda, clavícula quebrada e várias escoriações. Três dias depois do acidente, com o quadro agravado por uma infecção hospitalar, sua perna esquerda foi amputada acima do joelho. Não tardou para que Alessandra sentisse o incômodo no que não podia mais tocar. "Foi logo depois da cirurgia, mas ninguém me preveniu sobre isso", afirma.

O prognóstico não era dos mais promissores. O médico disse que a dor poderia durar um dia, um mês, um ano, dez anos, eternamente. E pouco havia de concreto, dizia ele, para aliviar o sofrimento.

Alessandra tinha 20 anos, um filho de 3 e um parceiro com dificuldade para entender o que ela mal conseguia explicar. "Eu passava por louca." Guilherme, o companheiro atual e pai de seu segundo menino, ultrapassou a insensatez e pesquisou o que pôde sobre técnicas de alívio, como massagens dessensibilizantes feitas no membro residual (coto), que nem sempre surtem resultado. "Tem dia em que dou uns beliscos ou arranho o coto, para que aquilo faça algum sentido", diz. Nathan, o filho mais velho, reconhece a chegada da dor fantasma de longe. Pega o pequeno Fernando, de 1 ano e 11 meses, e vão os dois brincar em outro lugar, enquanto a mãe se restabelece quieta num canto da casa.

Os gatilhos para o desconforto mais intenso são variados. Pode ser a mudança de tempo, a enxaqueca, a cólica menstrual, o estresse. Sua última crise brava durou três dias e três noites. Alessandra a atribui a um período profissional mais exaustivo. Ela trabalha como agente de pedágio das 18h às 24h. "Tem dia em que não me importo com ela, mas às vezes a dor me atrapalha de uma forma insuportável, a ponto de eu não conseguir pegar meu filho no colo, não conseguir dormir, não conseguir dirigir."
Há algum tempo, ficou cerca de 40 minutos parada com o pisca-alerta do carro ligado até o desconforto arrefecer. "A prótese ajudou no processo, mas diante da dor intensa ela trava de um jeito que eu não consigo raciocinar, meu cérebro não funciona, é horrível."

Alessandra Scaratto Budny, que perdeu a perna em um acidente de moto e ainda sofre com a dor fantasma - Fernando Cremonez/UOL - Fernando Cremonez/UOL
Alessandra Scaratto Budny, que perdeu a perna em um acidente de moto e ainda sofre com a dor fantasma
Imagem: Fernando Cremonez/UOL

Onde mora a dor

"É exatamente no cérebro que começa e termina a perna", lembra André Sugawara, fisiatra do IMREA (Instituto de Medicina Física e Reabilitação) da Rede de Reabilitação Lucy Montoro. A amputação do membro, portanto, não o elimina totalmente do corpo da pessoa. Cerca de 98% dos amputados relatam uma sensação desagradável, a tal dor fantasma, disparada de uma área do cérebro ainda a ser mapeada. Esse mapeamento é tema de um estudo multicêntrico do qual o IMREA participa, juntamente com pesquisadores da Universidade Harvard, nos Estados Unidos.

"O que se sabe é que não se trata de uma dor psicológica, emocional, mas concreta, presente inclusive nos exames, porque a gente consegue visualizar a arquitetura cerebral se modificando quando ela acontece."
Entre as alternativas que podem atenuar a dor está a terapia do espelho. Nela, oculta-se o membro residual com um espelho e a pessoa vê ali refletida a imagem do membro oposto, que pode ser movimentado. "Não seria enganar o cérebro, porque ele sabe que aquela parte do corpo não está mais lá, mas recuperar o visual do membro no espelho e ajudar no controle mental do que foi amputado", diz o fisiatra.

Alessandra fez a terapia do espelho uma única vez, o que lhe deu certo alívio. O ex-vigilante Josimar Martins, 30, nunca tinha ouvido falar dela. Morador de Itumbiara, no sul de Goiás, quase divisa com Minas Gerais, ele também perdeu a perna esquerda num acidente de moto, porém mais recentemente — há um ano e dois meses. Foi buscar um crachá esquecido na casa da mãe, que mora em Cachoeira Dourada, a cerca de 36 quilômetros de Itumbiara, quando colidiu com um carro numa rodovia escura. Desde então, a dor fantasma o acompanha.

"Achei que ia parar quando cicatrizou o coto, mas não parou." Restou um formigamento diário, que às vezes evolui como se fosse uma estaca, batendo, batendo. Uma sequência de espirros por causa da rinite alérgica pode ser gatilho para a piora. Mas complicada mesmo é a queda de temperatura. "No frio dói mesmo, meu pai amado, como dói." Vira e mexe ele também sente coceira no pé, na canela e no joelho que se foram. Analgésicos nunca funcionaram.

Martins anda com muletas axilares, que acha desconfortáveis, especialmente porque seu cotovelo esquerdo quebrou seriamente no acidente, levou fio de titânio e pinos e não estende por completo. Ele entrou com um pedido de prótese pelo SUS. Acha que ela talvez lhe alivie a dor, porque vai permitir movimento. Para quem queria muito trabalhar como segurança, emprego que o levou a buscar o crachá, o baque foi grande. Mas ele agradece por estar vivo. "Eu considero um livramento muito grande de Deus quando acontece esse tipo de coisa e a pessoa sobrevive." Martins tem dois filhos, e sua esposa espera mais um.

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Alessandra Scaratto Budny
Imagem: Fernando Cremonez/UOL

Questão de amparo

O fisiatra Sugawara lembra que a amputação é um procedimento reservado a quem faz opção pela vida. Mas tem consequências, como a perda de mobilidade e a dor do membro fantasma. Pesa mais quando o amputado não encontra ouvidos para esse desconforto, e há equipes médicas ainda surdas para isso.

Certos profissionais, por exemplo, pedem raio X do membro residual para mostrar ao amputado que não há registro visual da dor ali. "Naquele momento, já rompeu a relação porque o paciente se sente desacreditado, ele sabe que não dá para tirar radiografia de um fantasma, e ainda tem de ouvir 'é da sua cabeça'."

Alessandra ouviu de um médico algo que fez sentido para ela. Ele comparou a dor do membro fantasma a uma dor de dente. Quando se extrai o dente, a região continua sensível, latejante. Por que de um membro tão grande extraído dela, como uma perna, Alessandra não sentiria dor? "Ela está aqui, é muito vívida."