Ato em cidade da Bahia lembra das vítimas de explosão em fábrica há 22 anos
O salão de eventos contíguo à Igreja do Bom Jesus é o lugar onde os moradores do bairro Irmã Dulce, em Santo Antônio de Jesus (BA), fazem festas de aniversário, casamentos e velórios. Na manhã de 11 de dezembro, às 7h30, três pessoas sopravam bexiga para uma celebração póstuma.
Em 1998, um acidente numa fábrica de fogos de artifício no pasto da Fazenda Joeirana, a minutos de Irmã Dulce, matou 64 pessoas. Entre as vítimas estava a filha de Maria Balbina, 59. Só quando a explosão completa anos as pessoas costumam se lembrar do fato e os procuram para entrevistas, diz Balbina, que é presidente do "11 de Dezembro", movimento que lutou para exigir justiça e indenização às vítimas, muitas delas crianças.
Naquela sexta-feira (11), sobreviventes e familiares de vítimas se reuniram em um ato ecumênico e comemoraram a condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos, ocorrida em julho e publicada em outubro.
Ingratidão ou injustiça?
Crispiniana Santos da Conceição, 33, que faz parte do movimento, afirma que algumas pessoas acusam o 11 de Dezembro de "ingratidão" com seu algoz, "Vardo dos Fogos", o empresário condenado Oswaldo Bastos Prazeres. Ela perdeu a mãe, a irmã e uma prima na explosão, mas no total sete pessoas próximas foram vítimas.
Apesar da tristeza que a põe cabisbaixa, ela é enfática. "O ser humano tem essa capacidade de julgar, mas julga até quando passa na pele. Ele [Vardo] não só matou a fome de muita gente, como também matou muita gente", afirma a dona de casa.
O endereço de Vardo costumava ser a imensa casa localizada na avenida Juracy Magalhães, a menos de 2 km do bairro Irmã Dulce. Mas ele não foi localizado no imóvel de três andares.
Pina é o apelido de Crispiniana. Desempregada, tem duas filhas e mora na entrada do bairro, mais conhecido por Mutum. Ela tinha apenas 11 anos quando os carros subiram a avenida principal, prestando socorro às vítimas, a maioria sem nenhum tipo de atenção médica.
Alguns familiares das vítimas já faleceram e outros não se veem emocionalmente fortalecidos para homenagens coletivas, nessa época do ano. Tonha é uma dessas pessoas que processam o luto com mais intensidade. Ela usava uma máscara pouco ajustada ao rosto, vez ou outra revelando nariz. A peça tinha o nome "Justiça Global" e a blusa branca era estampada nas costas com "Luta e resistência". Justiça Global é a ONG de direitos humanos envolvida com a luta do 11 de Dezembro.
Triste e com voz embargada, ela não conseguiu lembrar seu próprio sobrenome, nem a idade; apenas que perdeu duas sobrinhas no galpão que pegou fogo. "É muita luta, é desespero. Não é fácil a pessoa perder um povo. Morreu muita gente, muitos filhos perderam as mães, mães morreram grávidas", descreve Tonha.
Retinta, cabelos encaracolados curtos, ela narra que havia prometido levar a refeição das duas sobrinhas, Andreia e Adriana, no fatídico dia. Mas viu fumaça despontar no horizonte da praça, a mesma onde desmaiou, durante a homenagem às jovens.
Parede da memória
Apesar de estar do lado da igreja, o espaço onde aconteceu a celebração pertence à creche Escola 11 de Dezembro, e é dali que Maria Balbina tira seu sustento.
No altar da creche, a vela-de-sete-dias da Santa Dulce dos Pobres, a mesma que empresta nome ao bairro, estava apagada. Mas a devoção é a marca daqueles que cuidam da unidade.
A creche-escola é o espaço de luta das pessoas afetadas pela explosão. Nas paredes estão dizeres de boas-vindas e frases de esperança, dentre elas "Tenha fé, continuo presente", num quadro com a foto da santa.
Uma moldura abraça 58 fotos, a maioria de mulheres negras. "Honraremos o vosso sacrifício lutando por uma vida mais digna" está escrito acima. As imagens são pequenas e estão em preto e branco; algumas não têm nitidez.
Na descrição de cada fotografia, há o nome completo e a idade de quem padeceu na explosão. Outros dois espaços vazios grafam apenas o nome "Daniela C. Reis", que não foi fotografada em vida, e "3 Fetos", pois havia gestantes entre as vítimas.
O vigilante Alex da Conceição, 35, contou que costumava ir ao pasto para ajudar a família a produzir mais fogos. Segundo ele, uma semana antes da explosão, após um boi prender a cabeça na goma utilizada como cola, o animal começou a se debater e houve desespero entre as pessoas. "Muita gente saiu correndo e eu, pelo fato de ser pequeno, fui pisoteado. Tentei esconder do meu pai em casa porque quando eu estivesse melhor, acompanharia minha mãe novamente", narra o segurança.
Ele nunca chegou a voltar para trabalhar; sua mãe se foi na explosão. Na saleta onde está fixado o quadro das vítimas, ele aceitou posar para uma foto com a moldura ao fundo. Ao lado, noutro ambiente diminuto, Manoel Missionário, o escolhido para mediar o ato ecumênico, se arrumava.
"Nossos direitos vêm, nossos direitos vêm, se não vir (sic) nossos direitos, o Brasil perde também", entoou Manoel, evocando cantos de trabalho comuns no repertório popular. Antes dos versos darem vigor aos presentes, a vice-presidente do Movimento 11 de Dezembro, dona Helena, falou sem melodia sobre a luta ao longo dos anos.
"No dia que veio essa vitória, eu fiquei satisfeita, porque a gente ouvia aqui em Santo Antônio de Jesus que pobre não ganha pra rico. Então nós mostramos um espelho, que nós somos bons", conta Maria Madalena Rocha, como foi registrada dona Helena. "Nós temos capricho, nós andamos, lutamos e conseguimos a vitória."
Quem viveu para contar
Seis pessoas sobreviveram à tragédia e tiveram cerca de 70% do corpo queimado. Ao menos uma delas estava assistindo, com certa distância, ao ato ecumênico, mas não falou abertamente para a plateia que trajava camisas de protesto. Era possível percorrer a luta do Movimento através das tipografias e ícones de diferentes anos.
Diante do microfone, ela insistiu sobre a coincidência de uma sexta-feira, 11 de dezembro, ser o dia que comemoravam a sentença e dia em que aconteceu a explosão criminosa. "Só Deus sabe a dor que eu passo, que todo mundo passa", discursou Balbina. Me sinto como se fosse a sexta-feira de 1998 que aconteceu aquela tragédia, 11h45 da manhã", emendou, chorosa.
Mediada pelos cânticos cristãos de Missionário, a cerimônia viu seu ponto alto exatamente às 11h45. Liderança conhecida no bairro, ele pediu a Rosângela Rocha, filha de Maria Madalena Rocha, que iniciasse a distribuição dos balões de ar. Durante todo o ato ela havia sido áspera por conta das bolas. O motivo, segundo ela, era o risco de estourarem antes de serem soltos no ar.
Ailton do Sindicato, como é conhecida outra liderança local, orientou que as pessoas não tardassem a escolher os balões distribuídos por Rosângela. "Não precisa procurar pelo nome do seu familiar, pega o balão e passa para quem está do lado", disse Ailton. Mas ninguém obedeceu, já que cada esfera branca tinha grafado em preto o nome de cada pessoa morta na explosão.
Horas antes da movimentação que resultaria na soltura dos balões de ar, Ailton do Sindicato narrou os momentos após a explosão. "Os enterros eram sempre à noite. Havia corpos com partes faltando e a gente não queria que as famílias passassem pelo sofrimento de ver os familiares daquele jeito", contou.
Maria Balbina, por exemplo, não se despediu da filha e até pensou em exumar o corpo para velar os ossos, mas não teve coragem. O esposo, que chegou a conversar com a filha no hospital, jamais partilhou os últimos momentos da jovem Arlete, de 14 anos. Maria Madalena informou que pôde sepultar somente pescoço, tronco e membros de uma das suas filhas. Nunca encontraram a cabeça.
Munidos de balões, Balbina, Madalena e os demais aguardavam para encenar uma despedida que não foi possível 22 anos atrás. O grupo, então, formou um círculo fora do toldo branco e se preparou para o gesto.
As cores sóbrias das blusas e dos balões se destacaram na praça onde, além da grande cruz de madeira, há um quiosque cercado por grades onde moradores secam suas roupas multicoloridas. O fotógrafo Aécio Almeida, que fazia a filmagem para o Movimento 11 de Dezembro, subiu no banco de concreto, buscou o enquadramento e, assim como os demais, aguardou algum comando.
O efeito em cascata foi mais rápido do que o som da voz orientando soltar as bolas de ar. Os balões, então, planaram e, já ao longe, confundiram-se com as nuvens. A cena carregou bastante simbolismo. "A explosão aconteceu lá e os balões foram para outro lado", apontou Maria Balbina.
Como ninguém se lembrou de olhar de volta para o chão por um tempo, não reparam quando Tonha, aquela que não lembrava o sobrenome, ficou bastante abalada e quase tombou no chão quente da praça. Outra mulher foi carregada e precisou ser socorrida. O momento era de vitória, mas se confundiu com pesar.
Só depois de um tempo as pessoas cabisbaixas voltaram a olhar na altura dos olhos dos outros, e retomaram o caminho de casa, em diferentes direções da praça. Fez-se silêncio após a soltura dos balões e enquanto uma parte dos 50 dispersava, uma criança que não soltou o balão - e pôde decidir não deixá-lo ir embora - foi notada. "Não quis soltar, não foi?!". Ninguém respondeu de volta.
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