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Comida a R$ 1 em São Paulo alivia estômago de quem já passou fome na vida

Unidade do Bom Prato na avenida Rangel Pestana, no Brás, em São Paulo - Reinaldo Canato
Unidade do Bom Prato na avenida Rangel Pestana, no Brás, em São Paulo Imagem: Reinaldo Canato

Felipe Pereira

Do TAB

16/12/2020 04h01

O Bom Prato é um restaurante com função social. Serve uma clientela que come com a voracidade e a pressa de quem já sentiu fome. Agachados, sentados no chão ou num degrau, os frequentadores avançam no marmitex de isopor do restaurante do governo estadual que vende almoço e janta a R$ 1, no centro de São Paulo. São as mesmas pessoas que passam a noite em albergues ou montam barracas e malocas em praças e embaixo de viadutos.

Existem restaurantes do Bom Prato em 38 cidades de São Paulo e a rua 25 de Março, na capital, abriga um deles. Fica na extremidade oposta às lojas de comércio popular que fazem a calçada parecer formigueiro. Nas imediações do Bom Prato, a calçada parece refeitório. Por causa da pandemia de Covid-19, só é possível pegar almoço e jantar para levar.

O movimento é alto todos os dias da semana, mas é mais intenso às quartas-feiras, dia de feijoada. Perto das 12h30, não tem mais almoço. Os retardatários se rendem à falta de dignidade. Procuram quentinhas com restos de comida, tarefa não tão complicada. Eles garimpam no lixo e só desistem depois de comprovar que as sobras contêm somente arroz e feijão. Deixar carne para trás é mais difícil.

O passado de José Serafim Neto, 37, ensina o desespero que a fome provoca numa pessoa. Ele conta que chorava na infância porque faltava o que comer. "Não tenho vergonha de falar que não tinha comida quando era criança em João Pessoa."

José Serafim Neto - Reinaldo Canato - Reinaldo Canato
José Serafim Neto chorava de fome quando era criança
Imagem: Reinaldo Canato

Roosevelt de Oliveira Moreira, 46, morava em Picos (PI) e enfrentou períodos de geladeira vazia até chegar aos 15 anos de idade. "Nessa época, meu pai conseguiu emprego de garçom e a gente ficava feliz porque tinha arroz e ovo para comer."

Edvaldo Teixeira, 39, passa fome por causa do álcool e das drogas. Ele trabalha como ambulante até juntar R$ 150, o que leva em média três dias. Atingido o objetivo, torra tudo até o último centavo.

"Passo fome direto desde 2008, porque tenho meus vícios. Quando vou para zoeira começo na cachaça, passo para farinha (cocaína) e quando vejo, estou na Cracolândia. Acordo no meio da rua".

Lugar de sonhos não realizados

Com o centro de São Paulo cheio de cracolândias, o Bom Prato mata a fome de muitos usuários de crack, mas o público vai bem além disso. Marco Antônio Júlio tem 71 anos. Sua camiseta preta destaca manchas de meleca seca. O homem de pele curtida no sol carrega uma pasta de couro de onde tira uma carteirinha de técnico em contabilidade que serve de gatilho para contar sua história.

"Tenho casa em Vitória (ES), morava com minha mulher. Mas, de uns dois anos para cá, ela deu para beber. Graças a Deus sou evangélico. Nosso estilo de vida não fechou mais."

Marco Antônio usou o Estatuto do Idoso para conseguir uma passagem para São Paulo no começo de 2020 O plano de juntar dinheiro e trazer o filho está em ponto morto desde a pandemia. Ele passa as noites em albergues e sobrevive do auxílio emergencial. O Bom Prato foi um alívio para as finanças e o estômago.

"Comida boa, comida de qualidade", elogia.

Cristiano Estrela de Souza almoça e janta no Bom Prato todos os dias - Reinaldo Canato/UOL - Reinaldo Canato/UOL
Cristiano Estrela de Souza almoça e janta no Bom Prato todos os dias
Imagem: Reinaldo Canato/UOL

Menos usuários de drogas no Brás

O Brás é outro centro de compra popular de São Paulo e também tem um Bom Prato. A fila é grande, lembra a de gente esperando loja da Apple abrir em dia de lançamento de iPhone. Diferente da 25 de Março, o trânsito aqui é carregado e duas motos da PM passam ligeiro com giroflex e sirene ligados. Um homem na fila faz arminha com a mão e "dispara" duas vezes na direção dos policiais que já estão longe.

"Têm medo de mim", se gaba.

Quase ninguém presta atenção. Mesmo com a máscara escondendo suas feições, os olhos oblíquos entregam os traços andinos de uma adolescente de barriga de fora que aguarda a vez de pegar o almoço. Os homens são maioria na fila cheia de machismo, e não são poucos os que encaram a garota com cobiça. Recebem desdém e menosprezo.

O Bom Prato do Brás tem clientes sem-noção, mas há muito menos dependentes químicos que na 25 de Março. Talvez seja esse o motivo de não existirem evangélicos entregando panfletos e tentando recrutar almas para a obra de Deus.

O público do restaurante é composto por vendedores de lojas e ambulantes que gritaram a manhã inteira "água gelada é R$ 1". Agora, essas pessoas roçam suas caixas de isopor nas próprias canelas enquanto esperam.

Fazem isso para não atrapalhar seus companheiros de fila. O restaurante também atende gente que compra roupas no local para revender e moradores de rua que não estão no álcool ou nas drogas. Toda essa clientela é zelosa com a nota de R$ 2 ou com as moedas com que pagarão a quentinha. Fecham a mão ao redor do dinheiro com a força de quem vai dar um soco.

A recompensa é uma marmita de isopor com arroz, feijão, carne e um punhado de salada e/ou legumes. Eles entregam o pagamento a dois atendentes vestidos como açougueiros: calça, camiseta, máscara, touca e botas plásticas brancas. A fuligem que encarde as ruas do Centro de São Paulo ressalta a limpeza dos funcionários, que se comportam como se estivessem numa linha de montagem.

"Próximo", diz o primeiro com voz firme. Ele pega o pagamento e o companheiro entrega o marmitex numa coreografia que a repetição levou à excelência. O comportamento robótico muda quando acabam as quentinhas. Um dos homens levanta as mãos e grita: "Não tem mais almoço. Acabou o almoço". Enquanto atira as palavras no ar, balança os braços em movimentos que lembram um juiz encerrando um jogo de futebol.

Jaime - Reinaldo Canato - Reinaldo Canato
O engraxate Jaime Morales Perez é um boliviano com necessidades especias que ganha comida no Bom Prato
Imagem: Reinaldo Canato

Engraxate boliviano come de graça

O portão de ferro laranja baixa imediatamente. Serve de encosto para os últimos que pegaram marmitex apoiarem as costas. Cristiano Estrela de Souza, 36, tira a cenoura da farofa servida com a feijoada e ataca o prato.

Deixa cair os talheres e rasga um pedaço da tampa de isopor que faz as vezes de colher. O jantar será servido somente no final da tarde e Cristiano vai matar tempo até lá. O homem está conversando quando a porta do Bom Prato abre.

Um funcionário sai para fumar, carregando uma quentinha entregue a um engraxate com um cordão ao redor do pescoço, que prende um Bilhete Único em que se lê de longe a palavra "especial". Jaime Morales Perez tem 34 anos, mas o boné virado para trás e a falta de desconfiança no olhar lhe dão jeito de menino.

A disposição para trabalhar conquistou os funcionários do Bom Prato do Brás, que dão almoço de graça a ele. Com uma deficiência motora, Jaime não consegue parar de mexer os braços e o pescoço. O mesmo problema que não deixa essas partes do corpo quietas dificulta o movimento do maxilar. Cada palavra sai com muito custo e pouco volume. Jaime é boliviano, mora na Mooca, tem muita fome e não quer perder tempo com conversa.