Nas rádios de Brasília, programas de música romântica e paquera resistem
"Esta noite temos Tainá. Tainá estuda jornalismo, tem 26 anos, sonha em ser apresentadora de televisão." A voz empostada e cantada traz a sensação de que um rádio acabou de ser ligado, mas ela está ao meu lado, de carne e osso: a passagem é uma imitação do quadro "Garotas do Fantástico", veiculado pela Rede Globo nos anos 1980, feita por Edson Rabelo. Foi a admiração pelo programa que fez Rabelo querer trabalhar em programas românticos radiofônicos.
Sentado em uma cadeira de ferro acolchoada, em volta da comprida mesa em tom pastel, na sala de reunião da Supra FM, o rapaz negro, alto e forte recebe a reportagem da TAB, no final do expediente, para contar detalhes dos seus 27 anos de carreira.
A rádio fica no meio de uma quadra comercial em Gama, a segunda maior região administrativa do Distrito Federal, mistura de zona urbana e rural e polo econômico estratégico para cidades goianas vizinhas como Valparaíso, Luziânia e Santo Antônio do Descoberto. A população, em grande parte, é de classe média. Por isso, Supra toca de tudo.
De calça jeans rasgada e camisa polo com o símbolo da rádio estampado, Edson lembra que antigamente a rádio se chamava Mega. Ali foi sua primeira casa como locutor em Brasília. Hoje, trabalha na empresa como diretor artístico da programação. Escolhe as músicas, acompanha os índices de audiência, resolve os pepinos e altera a ordem de programas, se precisar. Ganhou sala, mas teve de liberá-la para que construíssem um novo estúdio, que transmitirá em 360º — além da mesa em PVC, o ar-condicionado e o microfone de inox pendurado na altura do rosto, ela terá câmeras para transmissão ao vivo de programas nas redes sociais.
A decisão faz parte da modernização da rádio para incluir talk shows na grade. "Os programas de entrevista, talk shows e o programa romântico são os destaques", pontua.
Clima de paquera
Quando começou sua carreira no romance ao vivo, os moldes eram outros. Os programas tinham quatro horas de duração e varavam a madrugada. A companhia no estúdio era um gélido ar-condicionado e as cartas dos ouvintes, que chegavam em peso. Eram lidas no ar em tom de voz baixo, uma técnica do locutor para segurar a audiência e fazê-la se envolver — talvez o precursor do ASMR dos novos tempos.
Conduzido por sua voz, o roteiro anunciava pessoas procurando um par, recadinhos de amor e histórias pessoais, com uma música ao final para marcar a narrativa. "Envolve o sentimento, a comunicação, é um conjunto. Tem música, trilha sonora, uma voz falando com você, vendendo uma outra pessoa para você. Tem mais verdade", descreve o rapaz.
Rabelo se apaixonou de tal forma pelo formato que o mantém até hoje no programa que dirige, mesmo em tempos de nudes e mensagens instantâneas. "Não toco sertanejo", diz, com uma expressão séria. "Prezo muito em manter o romantismo, principalmente na programação musical. Não toco a música do momento."
Para ele, a combinação perfeita para embalar um programa de amor, especialmente na madrugada, é apertar o play, deixar rolar a clássica "Let's get it on", de Marvin Gaye, e sentir o momento. Recomenda pausas estratégicas para interação, com uma risada gostosa, e baixar o volume para emendar uma reflexão sobre o cotidiano. Por exemplo, se estamos retomando os tempos de isolamento, por causa da pandemia, por que não falar de saudade? "'Vamos falar de saudade? Você quer abraçar alguém? Eu sei que o momento é delicado?', e aí você já envolve a pessoa naquilo. Isso se chama conteúdo", ensina o veterano.
Apesar de não estar mais à frente do microfone, ele acompanha de perto o desempenho do "Love Hits" e do "Amor e Amizade". Quem empresta a voz é Franc Pereira, um homem na faixa dos 50, cabelos grisalhos, voz grossa, alto — ele lembra alguma personalidade do futebol. Ao todo, no programa, 70 a 100 participações chegam por WhatsApp. As pessoas pedem para anunciar seus perfis, mandam recadinhos, conversam com o apresentador, fazem comentários sobre a programação. Franc lê, responde, pensa rápido em um gancho para o próximo tema, sobe o som, tudo ao vivo, no gelado e confortável estúdio revestido de MDF e carpete azul. Segundo o Ibope, o programa atrai 34 mil ouvintes por minuto.
A equipe acredita que o número dobrou na rádio popular, durante a pandemia. Apesar do sucesso na Supra, Rabelo não acha que os programas românticos sejam os mesmos. "Em Brasília você pega 2 rádios aí que fazem programa romântico como antigamente. As outras, não, é programação normal e locução normal também. Não tem mais a locução romântica."
A mudança está no perfil do público. "Se o meu perfil de ouvinte é de 15 a 22 anos, como vou tocar música de 30 anos atrás? Não vai colar. Eles não conhecem mais músicas de 40 anos atrás, que eram sucessos românticos."
Os novos românticos
De segunda a sexta-feira, de meio-dia às 13h, a voz firme de Alex Blau Blau conduz o "Histórias de Amor". O rapaz largou a carreira no jiu jítsu, no interior do Rio de Janeiro, para falar de chaveco em rádio. Entre aumentar o volume, apertar botão, dar play em um áudio que chega pelo "Metrozap" - nome do WhatsApp da Rádio Metrópoles - e narrar uma história no microfone, ele também acha que o romantismo anda fora de moda.
Ele já "casou" pessoas por causa dos programas de rádio que apresenta, mas hoje os interesses são outros. "Antes eu fazia tradução nesse horário, programa romântico sempre foi isso. Essa questão de perfil [detalhar as características de si e o que se espera de um parceiro (a)]. Era muito forte, mas hoje em dia as pessoas usam o Tinder ou outros aplicativos para paquerar", explica.
Foi preciso fazer adaptações. No dele, foi incluído o quadro "Aconteceu comigo", em que as pessoas mandam um resumo de uma história de vida, sempre aberto para a opinião dos ouvintes, via áudio por WhatsApp. Na hora da narração, uma música dramática embala o momento para criar o clima e, se for para apimentar mais, até um palavrão ele deixa escapar no ar. Depois, Alex solta as melhores interações ao vivo e mescla tudo com música, de clássicos românticos até as dançantes do momento, como "Oh Juliana", de MC Niack. Em uma hora de programação, o locutor consegue em torno de 43 participações - varia de dia para dia.
Blau Blau viveu a era em que as pessoas enviavam cartas para as rádios. Ele mesmo fazia o papel de telefonista, atendia as ligações, via os relacionamentos acontecendo. "Não é que eu não acredite no produto que estou vendendo, pelo amor de Deus, mas hoje, a probabilidade de sair um relacionamento duradouro daqui da rádio, não sei. Mas pode acontecer."
Ainda assim, o locutor acredita no programa romântico. "As pessoas ainda têm e gostam de mandar recados para seus cônjuges, pares e namorados. Elas querem fazer dedicatórias românticas." O diferencial é a voz que embala o flerte.
Nosso produto é a voz
Rádio mexe com a imaginação. Os locutores têm técnicas, entonações e trejeitos para anunciarem qualquer coisa, e o público reage ao dono da voz. Problemas com apresentadores impopulares ou mudanças bruscas na programação são comuns. Alex Blau Blau é do time dos amados, tem até fã-clube. Uma vez, ao bater o carro na saída da rádio e ir parar em um hospital, um dos seguidores foi até o local para fotografá-lo e provar aos outros que estava tudo bem.
Na Supra, as pessoas cobram os quadros na programação do "Love Hits". Há alguns meses, um ouvinte decidiu processar a rádio porque se sentiu destratado pelo locutor, que explicou que a pessoa deveria ter calma e deixar o espaço para outros participantes tentarem. Rabelo entende a situação como a concretização do que é uma rádio popular. "Estou falando com pessoas comuns. Normalmente com as classes C e D, românticas. Sinto uma carência nas pessoas, porque quando elas começam a conversar, eles abrem coisas para você, contam coisas da vida pessoal."
Um dia, Rabelo chegou à sede e se espantou com a quantidade de marmitex na recepção — um ouvinte, dono de uma empresa, quis agraciá-lo. "É uma rádio da cidade, o povo sabe onde fica. Tem que agradecer ao vivo. Faz parte."
Para Edson Rabelo, falta aos locutores mais preocupação em preparar um programa romântico. Em seu tempo de apresentador, havia uma abertura com uma vinheta, relacionada ao que as pessoas estavam vivenciando. A voz baixa e arrastada era envolvente. "A melhor companhia é o rádio. Dá trabalho, mas fica bonito. O cara tá trabalhando, aí liga o rádio ali e vira uma companhia. Nos aplicativos, não. Você vai lá, cria um perfil, escreve o que quiser sobre você. Falta algo orgânico ali. No rádio, por incrível que pareça, antes de encontrar a paquera você já começa a conversar com a pessoa. Ali elas já começam a se apaixonar. Então, quando encontrar pessoalmente, é só para formalizar."
Mas, romântico incurável, ele pergunta, pela quinta vez: "Quem não tem uma pontinha de romantismo? Os programas românticos sobrevivem firmes e fortes. Não vão acabar", premedita.
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