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Youtubers de ASMR sussurram Marx, pornô e até "cirurgia" em abacate

Carol Rossi faz ASMR no YouTube - YouTube/Reprodução
Carol Rossi faz ASMR no YouTube Imagem: YouTube/Reprodução

Kaluan Bernardo

Do TAB, em São Paulo

18/10/2019 04h00

Para relaxar, algumas pessoas vão à praia, ouvem mantras, praticam yoga. Mas há aqueles que, para descansar a mente ou até cair no sono, assistem a vídeos de um "parto cesariana" em um abacate, executado por uma "médica" que só fala sussurrando. São fãs de um fenômeno chamado ASMR. Uma legião de milhões de pessoas.

A sigla ASMR vem do inglês e significa "resposta sensorial meridiana autônoma". É uma referência ao formigamento que algumas pessoas sentem quando ouvem sons sibilantes como sussurros. Apesar do verniz científico, o termo não foi criado por nenhum especialista. Ele vem de um grupo de Facebook, organizado em 2010 por uma estadunidense chamada Jennifer Allen.

Desde então, o interesse pelo tema só cresceu. Veja no gráfico abaixo as buscas pelo termo "ASMR" no Google, tanto no Brasil como no mundo.

"O ASMR me causa uma sensação de formigamento no couro cabeludo, é um relaxamento, como se fosse um cafuné virtual", diz Carolina Rossi, dona do canal no YouTube "Sweet Carol", com mais de 1,4 milhão de inscritos e voltado às "práticas" de ASMR.

A youtuber conta que, desde criança, sentia sensações físicas relacionadas a sons como papéis sendo dobrados. É a chamada sinestesia — quando um único estímulo causa sensações de naturezas diferentes.

É dela o vídeo da cesariana no abacate, assim como de outras "cirurgias" em frutas, como a "retirada de cistos" de uma romã ou de "remoção de cravos" em um morango. Ela também já fez vídeos de ASMR dando banho em uma esponja chamada Boris, simulando limpeza de ouvido, comendo lencinhos umedecidos, imitando um tatuador ou uma balconista de farmácia. Há também quem procure por uma irmã malvada sussurrante mascando chiclete e se maquiando, ou até mesmo pessoas lendo o Manifesto Comunista.

Há também vídeos que são apenas exploração de sons e texturas, capturados com um microfone ultrassensível. "Não precisa ser sussurro, mas tem que ter movimentos sutis, em câmera lenta. Tem que explorar", diz Rossi. Ela conta que tem cinco microfones binaurais, que dão um aspecto "tridimensional" ao som, brincando com o lado esquerdo e direito dos fones.

"As pessoas gostam de diferentes conteúdos. Quando faço as cirurgias nas frutas, é como se estivesse brincando de boneca. Há uma espécie de magia nesse processo teatral", explica Rossi. "Para mim é uma questão de criatividade. Mas, quem assiste, relaxa, independentemente do cenário e do contexto", afirma.

Ela diz que não tem dados exatos sobre a audiência de seu público, mas na rua é reconhecida especialmente por crianças. Apesar do caráter lúdico de suas produções, há também muitos adultos assistindo aos seus vídeos. "Enquanto as crianças assistem mais para se divertir, sentir o formigamento etc, adultos procuram o ASMR para lidar com problemas como insônia e ansiedade", comenta.

Conversa para boi dormir

Os vídeos de maior sucesso de Rossi são os que prometem levar ao sono. No YouTube, uma rápida busca por ASMR revela como a promessa de relaxar e dormir é comum nas produções do tipo. Será que funciona?

"Alguns estímulos sonoros podem relaxar e induzir ao sono. Isso varia com a intensidade e características do áudio. No caso do ASMR, ainda são necessários mais estudos", diz Luciano Ribeiro, neurologista da Associação Brasileira do Sono. "É importante conhecermos mais até para saber se esses estímulos não estão prejudicando o sono. O campo é pouco conhecido", afirma.

Um artigo científico publicado na Revista da Associação Médica Americana (JAMA, na sigla em inglês) defende que há poucos estudos sobre ASMR porque é difícil definir o efeito placebo, neste caso. "Como nós simulamos uma intervenção que já é, em si, uma simulação?", questionam os médicos Amisha Ahuja e Nitin Kumar, que veem potencial terapêutico no ASMR.

Tal como o placebo, o ASMR é, em si, um exercício de sugestionamento. "O que não sabemos ainda é se ASMR é apenas um sugestionamento ou se provoca alguma alteração preconizável no sono", diz Ribeiro.

Na dúvida, a dica de Luciano Ribeiro é a tradicional: bom senso. Se, para você, ouvir sussurros antes de ir para a cama ajuda a cair no sono, use o ASMR, mas com moderação. "O sono é algo natural. Em teoria, não demanda estímulos. O perigo é condicionar o cérebro. Se você cria muitos rituais [para conseguir dormir], pode ser pior, porque transforma algo que era para ser voluntário em dependência. É por isso que a terapia comportamental tenta convencer as pessoas a eliminar estímulos, como celular, televisão etc", explica.

No colo da mãe

Não é só no YouTube que o ASMR faz sucesso. Sites pornô estão cheios deles. Alguns canais de ASMR no YouTube convidam o público a ver mais em páginas adultas.

Rossi concorda que há a associação entre sussurros e sexo, mas que procura evitá-la. "Deixo meus vídeos menos sexualizados quanto for possível, até porque tenho público infantil. Mas há pessoas que ficam excitadas, sim — afinal é uma resposta autônoma ao estímulo", diz.

O psicanalista Marcus Teshainer, pós-doutor em psicologia clínica em São Paulo, diz que há algo de erótico nos sussurros, mas que na psicanálise o conceito de erótico não é pornográfico. "Erótico é o que 'toca' o corpo. Na psicanálise, o erótico é necessário para a constituição da pessoa, porque define os limites entre o eu e o outro", explica.

Nesse sentido, o sussurro de uma mãe para o bebê é erótico. "Ajuda a criança a entender os limites do corpo dela e da mãe. O erotismo determina a diferença entre o interno (psíquico) e o externo (o mundo). Isso acontece pelos limites dos sentidos", diz.

Quando alguém ouve sussurros no YouTube, de certa forma ela está buscando novamente a conexão com esse momento da infância (daí o interesse também pelos vídeos mais "infantis", como o banho na esponja). "Tem a ver com lembrar um prazer que se experimenta nas relações primordiais entre mãe e bebê. É prazeroso, enquanto criança, ser cuidado pela mãe. São as primeiras lembranças de prazer que alguém tem",comenta Teshainer.

O interesse por cirurgias em frutas pode estar relacionado ao momento da curiosidade infantil pelo sexo (que surge em torno dos sete anos). "É quando a criança começa a perguntar de onde os bebês vêm, a achar pessoas bonitas etc. Isso instiga na criança uma curiosidade sobre o que é sexual, como funciona seu corpo", diz.

Já a interpretação de personagens, como dentistas e médicos, pode estar relacionada a uma mera despersonalização do youtuber — ajudando o espectador a abstrair de que está apenas assistindo um vídeo. "É tudo um grande faz-de-conta. As pessoas querem um refúgio para o dia a dia. E o YouTube pode proporcionar isso. É um mundo mágico que permite descanso", diz Rossi.