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O que a obsessão em transmitir refeições diz sobre nossa relação com comida

Ingerir grandes quantidades de comida é essencial para o sucesso do mukbang - Getty Images
Ingerir grandes quantidades de comida é essencial para o sucesso do mukbang
Imagem: Getty Images

Marie Declercq

Do TAB

22/10/2020 04h00

Posicionado na frete de um fundo preto, o youtuber Lucas Rodrigues dos Santos apresenta, para os mais de 100 mil inscritos no seu canal, uma refeição composta por quatro sanduíches, batata frita, nuggets e um refrigerante da rede de fast food Burger King. Em menos de 13 minutos, o mineiro de Ribeirão das Neves dá grandes mordidas nos sanduíches e comenta sussurrando no microfone sobre a textura, o sabor e a experiência da refeição.

Rodrigues faz parte de um nicho bastante popular na internet chamado ASMR, onde pessoas exploram certos sons e ruídos que causam "gatilhos" de arrepio ou relaxamento nos ouvintes. Sons de mastigação também fazem parte desse combo, mas estão inseridos em uma outra categoria — igualmente popular— chamada mukbang. Nesse encontro de ASMR e mukbang, está Rodrigues, sendo um dos poucos youturbers brasileiros que fazem conteúdo envolvendo exclusivamente comer perante as câmeras.

O mukbang foi criado na Coreia do Sul, no final dos anos 2000, e existe estritamente na internet como uma forma de transmissão ao vivo, na qual o apresentador consome grandes quantidades de comida enquanto conversa com sua audiência. Dentre a categoria, existem os mukbangers que se filmam desde o preparo da comida até a hora da refeição. Muitos outros apenas comem enquanto conversam com milhares de pessoas. Há diversas especulações sobre a motivação de tanto interesse pelo mukbang — desde a solidão e a ansiedade nos dias atuais até o simples interesse pela comida e por escutar barulhos de mastigação.

Foi uma questão de tempo para que o mukbang deixasse de ser um costume da Coreia do Sul e da China e se tornasse popular nos Estados Unidos e em outros países ocidentais, que copiaram a mesma estética da transmissão sul-coreana.

O fascínio de Rodrigues por sons de mastigação começou antes de conhecer o nicho. "Sempre gostei desse som de mastigação de comida, desde pequeno. Às vezes eu ficava na mesa de jantar, sem comer, olhando e ouvindo as pessoas comerem. Isso me relaxa até hoje", conta.

Comilância documentada

Um apelo incontestável do mukbang é a beleza estética das comidas e a grande quantidade devorada pelo apresentador do vídeo. Quanto mais calorias, mais visualizações. O mesmo se aplica quando a comida é mais "exótica" ou rara, como lagostas e frutos do mar gigantes.

Observando a falta de comidas brasileiras no mundo do mukbang, Rodrigues colocou em prática a ideia de criar um canal de ASMR, mas focando mais em pratos locais. Nos vídeos, não faltam os clássicos arroz e feijão, estrogonofe (com muita batata palha, claro) e quitutes como coxinha de frango e biscoito de polvilho. Esse último foi o vídeo mais visualizado do canal, com mais de 600 mil visualizações.

Começando em março, um pouco depois do começo da pandemia da Covid-19, o canal de Lucas saltou para 164 mil inscritos em apenas seis meses. "O que fez o canal ganhar popularidade é fato de eu fazer ASMR com comidas mais simples", diz. "Lá fora, os gringos do mukbang costumam fazer os vídeos com comidas exorbitantes, que nós não temos condições financeiras para comer. Por isso, resolvi adequar ao meu jeito. Acho que o que me fez chegar nesse ponto foi minha humildade. Quem me assiste é o povão mesmo".

Mesmo apresentando comidas mais acessíveis para o público em geral, a quantidade ingerida para cada vídeo não é tímida. "Com certeza, as pessoas gostam muito de fartura. Quanto mais sua mesa está farta, mais chama a atenção das pessoas", conta o youtuber.

Relacionamento problemático

Não há dúvidas que ingerir uma grande quantidade de comida em apenas uma refeição pode gerar efeitos colaterais, psicológicos e físicos. Desde que o mukbang começou a se popularizar, muitas estrelas do nicho foram alvos de críticas por demonstrarem ou incentivarem um relacionamento problemático com a comida.

"É um show, uma maneira de entreter as pessoas. Também acho que existe uma coisa social, até meio escatológica, das pessoas terem prazer em ver outras ingerindo comidas que parecem muito saborosas, e isso tem uma ligação direta com esse dia a dia de dieta que vivemos, de restrições. Acaba sendo uma maneira da pessoa participar de um prazer que ela sente que é proibido", analisa Marcela Salim Kotait, nutricionista e coordenadora do ambulatório de anorexia nervosa do HC.

Kotait também frisa o perigo de que o mukbang crie modelos nada equilibrados de alimentação para internautas, podendo incentivar a compulsão e outros transtornos alimentares. "Esse voyerismo alimentar é uma característica muito presente na anorexia alimentar, por exemplo. Não vejo como um hábito muito saudável, podendo afetar tanto a pessoa que come quanto a pessoa que assiste a tendência a não respeitar nosso apetite e a nossa saciedade", diz.

A estética do mukbang, em si, é rígida. As celebridades do meio são quase obrigatoriamente magras e bonitas. As poucas pessoas gordas que se aventuram pelo nicho são alvos de memes e brincadeiras por conta do peso.

"A gente sabe que a pessoa gorda traz consigo um estigma social muito grande, onde o comer 'mal' sempre é atribuído a elas — como se fossem pessoas preguiçosas e sem força de vontade. O fato de pessoas magras serem populares nisso é um reflexo desse comportamento gordofóbico, que vai sempre privilegiar um corpo magro comendo, mesmo que de maneira exagerada", explica a nutricionista.

A pressão por manter uma boa aparência, mas comendo cada vez mais nos vídeos, já mostra consequências. Com mais de 5 milhões de inscritos, a youtuber Boki foi duramente criticada em agosto, por supostamente cuspir a comida fora das câmeras. Boki rebateu as acusações, afirmando que não passam de uma farsa.

No caso de Nicholas Perry, youtuber norte-americano conhecido como Nikocado Avocado, a comilança extrema causou problemas físicos, ganho rápido de peso e mexeu com sua saúde mental ao lidar com um círculo vicioso de refeições ultra calóricas de fast-food — e com os constantes ataques dos seguidores, referentes à sua vida pessoal.

A grande obsessão dos espectadores de mukbang por fast-food não acontece só em outros países. O próprio Rodrigues conta que os vídeos em que come comidas deste tipo são adorados pelos seus seguidores. "Muita gente que me assiste mora em cidades pequenas, e nunca comeu nada desse tipo. Por conta disso, o pessoal gosta muito quando trago essas comidas. É uma experiência para elas também".

De acordo com Kotait, nossa relação com fast-food também tem raízes mais profundas, muito por causa da cultura de dietas restritivas que determinam comidas "boas" ou "ruins". "Hoje em dia, graças à demonização dos alimentos, esse tipo de comida sempre é classificado como ruim. Quando você classifica a comida entre boa e ruim, é natural a gente ficar mais obcecado pela comida ruim. Isso gera pensamentos obsessivos, e as chances de comer com descontrole são maiores", explica ao TAB.

O apreço pelo exagero também ficou malvisto na China. Nesse ano, o presidente Xi Jinping deu início a uma campanha contra o desperdício de alimentos, alertando os chineses sobre os perigos da escassez de comida. Os principais "maus exemplos" foram os internatos que praticam o mukbang. Eles tiveram vídeos restringidos pelo governo chinês.

Foco e acompanhamento médico

Longe das polêmicas do outro lado do mundo, Rodrigues segue se aventurando pelo universo do mukbang abrasileirado que criou. Em um vídeo, já chegou a comer miojo, sanduíche e batatas fritas para seus seguidores, que comentam nos vídeos dando sugestão ou elogiando os sons de mastigação.

Para enfrentar as refeições, Rodrigues afirma que faz tudo com acompanhamento médico e que faz exercícios constantes para evitar o ganho de peso. Em comparação com outro mukbangers, a quantidade de comida de Rodrigues quase parece uma refeição leve.

"Eu cheguei a engordar, mas nada muito preocupante", conta o youtuber. "O que temos que tomar cuidado é com o consumo de sódio, porque a gente acaba retendo muito líquido. Por isso que a gente faz uma dieta e exercícios físicos. Eu faço acompanhamento médico, fiz exames no mês passado e, a cada três meses, faço check up".

Enquanto Rodrigues tenta encontrar um equilíbrio entre sua paixão pelo mukbang e uma boa saúde, seu canal cresce, com inscritos fascinados pelos sons de mastigação que o youtuber tanto adora ouvir e produzir. Mas a saúde, segundo ele, vem em primeiro lugar. "Se eu não tiver saúde, tudo será em vão".