Surda desde os 12 anos, bailarina faz história dançando quadrilhas no Ceará
Desde que veio ao mundo, a bailarina cearense Mara Alexandre, 35, incorporou novas formas de pensar, ouvir e sentir à arte de dançar
Mara Alexandre diz que dança para sentir o mundo. Em meio a gargalhadas durante entrevista ao TAB, em uma quadra poliesportiva que sedia ensaios da quadrilha Ceará Junino, em Fortaleza, ela diz: "já nasci dançando".
O primeiro contato de Mara com a dança aconteceu aos quatro anos de idade, ainda na pré-escola. A mãe sempre gostou de arraiás e levou a paixão pelo São João aos sete filhos, o que virou tradição familiar. Para a primeira apresentação de Mara, Dona Joana pediu a uma costureira amiga fizesse o vestido de chitão e bicos de renda.
Os irmãos -- que queriam que Mara conquistasse o concurso de rainha de classe -- buscavam preencher os dez pontos da rifa, que tinha formato de milho, para realizar esse sonho. Sem sapato adequado para o dia do evento, Mara teve de dançar com um tênis de estampa do desenho animado Pica-Pau.
As dificuldades financeiras continuaram nos anos seguintes, quando Mara quis estudar em escolas de balé clássico. Sem dinheiro, as oportunidades surgiam a cada abertura de vaga em algum dos projetos sociais no entorno do bairro Presidente Kennedy, onde morava. Na mesma região, aos sete, Mara começou a fazer parte da ala infantil da quadrilha junina "Puxando Fogo", junto dos irmãos, que já estavam na quadrilha adulta. Por lá, ela foi brincante durante 11 anos.
Escutando o mundo de outra forma
A vida de Mara mudou aos 12 anos de idade. Após tomar uma vacina contra meningite, teve reação alérgica rara e desmaiou. Quando recuperou a consciência, começou a vomitar, ficou em observação e foi liberada. Três meses depois, descobriu que havia perdido quase 100% da audição.
Ela lembra que os primeiros sinais começaram a aparecer após um telefonema. Mesmo próxima ao telefone, não conseguiu escutar a chamada. A mãe, que estava fazendo trabalhos domésticos, pediu para que a filha atendesse o aparelho. Como Mara não atendia, ficou brava, acreditando que se tratava de uma brincadeira. Percebendo que ela não respondia quando estava de costas, entrou em desespero.
Os primeiros dias na escola, após a descoberta da surdez, foram difíceis e dolorosos. Os professores falavam e Mara não escutava. A vergonha atrasava a aceitação do quadro. Os comentários dos colegas de classe causavam medo e construíam barreiras na cabeça da garota. Com o tempo e o apoio da família, começou a criar novas habilidades para melhorar a comunicação, além de desenvolver técnicas de aprimoramento da leitura labial. Mara se comunica através da visão, do sentir e do vibrar.
A mudança de vida expandiu a forma de Mara pensar a dança. As noções de tempo, espaço, velocidade e qualidade de movimento ganharam novos sentidos. Os sons mais graves, como da zabumba, ela consegue escutar. O triângulo, que é agudo, não. Para entender a melodia das músicas, pede a alguém que leia a letra para que consiga senti-la antes de adaptá-la à performance.
A metodologia se deve muito aos ensaios do grupo de dança criado pela irmã Márcia, sua maior inspiração, ainda na década de 1990, quando performava as músicas da Xuxa e das Paquitas. Com intuito de apenas passar o tempo e aproveitar as horas livres para brincar, a turma de Márcia realizava encontros para aprimorar coreografias e ritmos. Os ensinamentos da irmã continuaram no meio junino, na aprendizagem do marca-passo da quadrilha ou, até mesmo, na forma de conciliar da anágua de tule e chinelinho de couro à dança.
Um novo jeito de dançar quadrilha
Mara não conhecia o solo anterior quando participou, pela nona vez, do concurso de rainhas da Ceará Junino em 2013. Naquele ano, para conseguir o posto mais disputado da quadrilha, resolveu inovar. Durante a apresentação, trouxe novos movimentos e tentou desconstruir passos de outras danças.
A ousadia causou frisson. De lá pra cá, as criações viralizaram e são reproduzidas por brincantes de todo o país. Reconhecida pelas obras, começou a ser procurada para ministrar cursos e apresentações dos movimentos. As críticas também vieram, não foi surpresa, mas Mara diz que não tem medo de inovar. Em 2016, veio como bailarina. No solo, usou movimentos de mãos e braços, lembrando as quadrilles dançadas pela elite parisiense no século 18.
Em um dos primeiros festivais de 2018, na cidade de Mossoró, no Rio Grande do Norte, Mara sofreu uma queda enquanto dançava. Vestida de índia Iracema, caiu quando realizou um dos saltos e rompeu um dos ligamentos do joelho. Tentou se levantar e emendar um giro mas, sem estabilidade para ficar de pé, caiu novamente. Para não sobrecarregar e não prejudicar a apresentação da quadrilha, ficou nos bastidores sentada e entrou para agradecer no final.
A experiência como rainha fez com que Mara participasse do Ceará Junino no restante do certame. Mara ficou fazendo apenas o primeiro momento. Na sequência, Cristiane Rodrigues, um dos nomes históricos do São João, entrava para dançar. Quem assistia às apresentações não escondia a admiração pela dupla. A cumplicidade entre as duas se tornou essencial no decorrer das competições. "Tinha tanto esforço ali. Era um espetáculo lindo", rememora.
O bloqueio em relação ao medo de se machucar novamente pesava na decisão de continuar dançando no ano seguinte. Por gratidão ao carinho recebido nos meses que precisou se ausentar, criou alternativas para conseguir dançar. O salto do sapato ficou mais baixo e, antes da apresentação, andava metros e mais metros espiando se havia buracos no local.
Novo normal, novos desafios
Na pandemia, Mara precisou, mais uma vez, se adaptar. Como utiliza a leitura labial para se comunicar, teve receio das aulas remotas. "Se a conexão da internet não está legal, a pessoa faz uma pergunta pra mim e não entendo, como fica?". A dançarina não consegue entender quando mais de uma pessoa fala ao mesmo tempo. "Sei que a pessoa está falando por causa dos movimentos, mas, sem leitura labial, não identifico o que ela diz". Nos últimos meses, começou a experimentar. Mara tomou a iniciativa de ministrar workshops e realizar lives nas redes sociais.
O uso da máscara também dificulta a comunicação. Durante a entrevista, precisamos retirá-la para fazer as perguntas, mantendo o distanciamento. A dançarina se concentra e, na sequência, responde, de máscara. Em locais onde o uso do equipamento de proteção é obrigatório -- como nos hospitais --, ela precisa estar acompanhada de alguém ou levar um bloco de papel e caneta.
Aprendizado mútuo
Em 2013, o cansaço e o tédio de Mara durante a realização do Enem contrastavam com a curiosidade de cursar o ensino superior. Sem saber de muitas informações acerca do sistema de cotas, fez a inscrição na ampla concorrência. Pelos cálculos, não imaginava passar até saber da aprovação no Curso de Dança da UFC (Universidade Federal do Ceará), por meio de uma amiga. Após receber os 'parabéns', questionou o cumprimento por não ser o dia de seu aniversário e fingiu indiferença, mudou de assunto, mas foi intimada, na sequência, para comparecer à matrícula no dia posterior.
Na verdade, a ficha não caiu nem mesmo nos primeiros dias de aula. Para conseguir apreender os primeiros conteúdos, usava a colega que sentava ao lado como referência. Perguntava e perguntava. Durante a graduação, pensou em desistir algumas vezes. Aprendeu, mas sente que também ensinou estudantes e professores. Nas aulas de investigação da respiração, Mara não consegue se concentrar com os olhos fechados. Então, abre os olhos, presta atenção no que a professora está falando e realiza a atividade. As dificuldades viraram tema do trabalho de conclusão de curso.
Como trata-se de um curso integral, com aulas nos três turnos, a conclusão atrasou. Mara aproveitou a nova pausa no São João para acelerar a defesa do trabalho de conclusão de curso, que está previsto para o fim deste ano. Enquanto os festejos não vêm, ela faz planos e convive com as lembranças. Em 2022, os palcos terão novamente Mara Alexandre, mais insistente e sonhadora ainda.
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