'Indo pro rolê': aposentado monta barco para cruzar Guarapiranga (SP)
É uma terça-feira de junho. A névoa matinal sobre a represa se dissipa ao som dos pássaros que brincam na margem. Enquanto papeiam, dão rasantes na água com um improvável farol pintado de vermelho e branco ao fundo — o Farol dos Piratas, com seis metros de altura.
Não há barulho de carro, moto buzinando, britadeira. Nada. O silêncio se mistura ao vento frio e fraco, que mal faz marola. A larga faixa marrom entre a borda e a grama mostra que a represa pede água. É nesse oásis bucólico de tranquilidade que um pequeno barco dorme sozinho em um píer de plástico.
E logo vem o dono, João Carlos Batista, 63. Ele mora a 800 metros do farol e aparece por volta das 9h para começar sua rotina de transporte pouco (põe pouco nisso) usual na cidade: meia hora em barco individual pela Guarapiranga e mais 10 km de bicicleta até o local de trabalho.
João vive com a mulher no Parque do Terceiro Lago há 10 anos. Antes, o casal morava numa chácara, em Parelheiros, mas o lugar começou a ficar infestado de bares, funk sem hora para acabar e muita bagunça na rua — o que expulsou João dali.
Ele põe a bota de borracha até a coxa, entra na água e arruma o Mini Toot para zarpar. Faz isso sempre sozinho. Primeiro, sobe a bicicleta. Subo em seguida. João me posiciona no barco de maneira que o peso fique bem distribuído. O motor pega de primeira e o barquinho começa a navegar suave pela represa. Não há mais ninguém no vasto espelho d'água. "Está vendo? Não é muito estranho ninguém usar a represa para se locomover?"
Barco de R$ 500 mil
Quando comprou o terreno para construir sua casa pré-fabricada, João conta que já tinha a ideia de fazer uma espécie de ônibus aquático como alternativa ao trânsito de carros. "Pensei em desenvolver um barco de passageiros na Amazônia, já que lá tudo é feito pela água."
João conta que a embarcação seria para até 30 passageiros. No entanto, o investimento de projetar o barco e depois trazê-lo por terra para São Paulo chegaria a R$ 500 mil, o que o fez desistir do plano.
Resolveu então fazer um barco pequeno. Em vez de pegar avenidas lotadas, ele atravessa a represa em meia hora, com o vento no rosto, sem máscara. "Não é um tempo que gasto; é um tempo que ganho. Deixo o barco na água, subo na bike na ciclovia da avenida Atlântica e pedalo uns 40 minutos até a Vila das Belezas."
João Carlos é aposentado e administra 11 quitinetes em um pequeno prédio da zona sul. Nascido em Tupã, no interior de São Paulo, tinha 4 anos quando chegou à capital com os pais lavradores e os seis irmãos. Começou a trabalhar como office boy aos 13 e ainda hoje se emociona ao lembrar que comprou a primeira bicicleta com gorjetas de uma chefe que pedia para ele levar a marmita até a sala dela.
Ele teve uma transportadora — a Transroda — por 40 anos, inicialmente com sócios, depois, sozinho. Atendia indústrias. Desfez do negócio ao notar que nenhum dos quatro filhos estava muito interessado em tocá-lo adiante. Do primeiro casamento, teve duas filhas, Milene, médica de 38 anos, "que nunca tem tempo pra nada", e Amanda, de 34, "que gosta de acampar como eu". Do segundo e atual casamento: Felipe, 25, e Luis, 23. Netos, são dois: Melissa, 7, e Eduardo, 4.
João nunca levou os netinhos para passear de barco. Batizada de Mini Toot, a embarcação de 4,5 m de comprimento e 1,6 de largura é um mero transporte de dia de semana, e fica parado aos sábados e domingos - ele não é afeito à pescaria, diz que não tem paciência. O barato nos dias de folga é acelerar a Honda CRF 230 em trilhas com a equipe que preside e fundou em agosto de 2017: Esfera Jaceguava. Os 12 membros desbravam os caminhos das áreas próximas à represa e trilhas de Embu-Guaçu e Itapecerica da Serra.
Barco de R$ 7 mil
Enquanto o barco de afasta da margem em ritmo lento, reparo como João é vizinho do Solo Sagrado da Igreja Messiânica Mundial do Brasil, inaugurado em 1995, uma espécie de Stonehenge gigante. Para o outro lado, João aponta morros próximos abarrotados de comunidades (região do Jardim Aracati). "Até pouco tempo, não tinha casa nenhuma ali. É muita gente, cada vez mais. Como esse pessoal consegue chegar ao centro da cidade?"
Poucos minutos de navegação são suficientes para alcançarmos uma pequena ilha. "Quer parar um pouco?" Claro que sim. "Essa ilha não tem um nome certo, cada um chama de um jeito, mas nos próximos dias vão colocar um Cristo nessa pilastra e aí vai passar a se chamar Ilha do Cristo."
Pergunto se ele tem religião. "Ah, rapaz, e agora... Olha, não sou praticante, gosto de espiritismo, rezo todo dia para Deus, mas um Deus que é de todas as religiões."
Ao falar sobre sua juventude, João resume que sempre gostou de superação. "Já fiz montanhismo e gostava de acampar, mesmo sem dinheiro. Pegava carona, fazia longas distâncias a pé, de bike, de moto, ou caiaque. No Nordeste, já fui até Recife; no Sul, até Porto Alegre; conheço também Goiás e Mato Grosso. Nunca viajei para o exterior; só fui para o Paraguai."
Inspirado em Amyr Klink — e pelo livro "Cem dias entre céu e mar", de 1985, em que o navegador narra a travessia da Namíbia para a Bahia de caiaque — , João conta que a primeira tentativa de evitar as avenidas entupidas nos horários de rush aconteceu a bordo de um caiaque, mas a remada ficou pesada para ser diária.
Partiu, então, para o projeto de um caiaque estilo catamarã, que ele construiu com duas amas (flutuadores laterais) de canoa havaiana e seria puxado por um reboque. Não deu certo: aos poucos, a água invadia a embarcação e uma vez quase que ele afunda, em 2015.
Foi aí que começou a imaginar como montar um barco quase individual, com uma pequena cabine para protegê-lo nos dias de chuva. Com um amigo de Itapetininga (SP), preparou um motor de gerador com eixo pé de galinha para não despertar a ânsia de ladrões sempre de plantão - não compensa destruir o barco para tentar levar a peça. O barco João comprou em Minas Gerais, e a cabine desenvolveu com um cara em Mairiporã. Ao todo, gastou cerca de R$ 7 mil.
Tudo isso ele fez sem desenhar nada — a ideia estava na cabeça. O motor de 15hp pode atingir 20 km/h, mas João costuma acelerar a 12 km/h. Gasta um litro de gasolina para ir e outro para voltar. São 6,5 km de represa. "Não tenho pressa. Esse lugar é uma beleza. Quando saio de casa, não sinto que estou indo trabalhar - é algo que me dá prazer. Costumo dizer para minha mulher que estou indo pro rolê. Sempre chego renovado do outro lado."
Ele não conhece mais ninguém que tenha tal hábito aquático de transporte diário. "Nem gosto muito de postar [imagens do barco] para não acharem que sou egoísta ou estou me vangloriando. Tem muita inveja por aí. Às vezes, quando muita gente me vê passar, o barco dá uma travada, acaba apresentando algum problema. Mais gente poderia viver dessa forma. Tudo é uma questão de prioridade. A maioria das pessoas sempre está na correria dos filhos, de conseguir comida, de resolver mil coisas... Mas, por outro lado, muita gente poderia buscar esse caminho pela água. Tem que pôr a mão na massa, não pode ter preguiça."
Mundo desordenado
Enquanto a covid-19 fulmina milhares de brasileiros, João segue a rotina de transporte com isolamento social sem precisar usar máscara.
Ao passarmos por outra ilha maior, João conta que ela se chamava dos Macacos, mas agora os animais não estão mais lá, então, passaram a chamar ilha dos Eucaliptos.
Como um guia turístico, ele mostra clubes de elite à margem da represa, onde os sócios passeiam com seus cavalos. Mostra também a Guarda Civil, que atua de barco. "Eles já me pararam uma vez, viram meus documentos. São bem rigorosos, mas, depois, nunca mais."
Quase ao final da travessia, João destaca que a volta, à noite, às vezes é muito bonita. "A lua reflete no rastro que o barco vai deixando." Ele estaciona o barco em uma marina decrépita, na avenida Atlântica. Tira a bicicleta do Mini Toot e se prepara para o próximo trecho de ciclovia até o trabalho.
Afivela o capacete, põe a máscara e responde a uma última pergunta: qual sua próxima meta, João? "Não quero mais nada dessa vida. Me sinto realizado. Nem penso em viajar para conhecer o mundo. Tem muita beleza perto da gente."
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