Conversa com planta e meditação na mata: a rotina de um jovem erveiro no RJ
Marmelo é bom para pedra no rim, malva é tiro e queda na dor de dente. E canela-de-velho, conhece? É antiinflamatório. É assim, apontando para as plantas que observa numa ladeira íngreme e perfumada de eucalipto que Thiago de Almeida, 25, anda pela mata próxima de casa e colhe os produtos da semana.
Morador do Complexo do Caramujo, em Niterói (RJ), o jovem prefere a tranquilidade do mato ao baile funk. Não curte rede social, ama ler e ouvir música. Já foi cobrador de ônibus das linhas Centro de Niterói × Caramujo e da intermunicipal Niterói-Rio. Vendeu bebida como ambulante, em carnavais. Mas escolheu virar "erveiro" quando percebeu que a vida só valia a pena em um trabalho que lhe dá satisfação — ainda que esta última não venha acompanhada de um salário fixo.
E ele adora uma plantinha. As pessoas chamam Thiago de erveiro, raizeiro, menino do mato, rapaz da erva — até de curandeiro, termo usado por quem estuda, cultiva e oferta ervas medicinais. Conhecidos, principalmente, pelos frequentadores de religiões de matriz africana, curandeiros e benzedeiros também são requisitados por quem prefere a medicina natural à farmacêutica.
Durante dois dias, a reportagem de TAB acompanhou Thiago de Almeida na colheita e na venda das plantas.
A tranquilidade da Rua Coelho, como é conhecido o alto da comunidade do Morro do Borel (há algumas com o mesmo nome, inclusive a do Rio), faz quem subiu esquecer que se está próximo à alameda São Boaventura, estrada movimentada que liga Niterói a São Gonçalo, na região metropolitana do Rio.
Metros acima das casas de alvenaria inacabadas, o bosque é forrado de capim que cresce solto, abacateiros e jamelão. É sedutor perder o tempo entre o cheiro de planta, o vento fresco e o cantar dos grilos. E é lá que Thiago passa sábados e domingos, em silêncio, colhendo plantas medicinais e meditando. Durante a semana, atravessa a ponte no sentido Niterói-Rio para vender sua safra nas calçadas de Copacabana.
Picada aberta a facão
Para subir, há poucos atalhos e nenhuma trilha aberta. O jovem erveiro vai cortando o capim com um facão e dando nome ao que, a olhos leigos, parece ser apenas mato. O caminho fica íngreme e o sol esquenta. O objetivo é subir até o topo, colher o que só é encontrado por lá e descer catando o que se deixou para trás.
Assim que chega ao topo, Thiago emudece e some, algumas vezes, sem dar chances à reportagem de segui-lo. "Segura um pouco aí que já volto", diz. Nessa hora, além do som da mata, ouvia-se o movimento do facão. É o menino do mato, em busca de boa colheita.
Já na descida, próximo às casas da favela, um rapaz e três crianças empinam pipa. Mulheres sentadas na calçada conversam. Todos param para papear com o erveiro.
O homem perguntava das plantas que estavam ali ao redor. Já com uma das mulheres foi Thiago quem puxou assunto, pediu autorização para pegar alguns ramos em seu terreno e perguntou sobre uma das espécies. Ao ouvir o nome, disse surpreso: "Nunca tinha ouvido falar". Satisfeita, a senhora sorri para o rapaz.
Thiago de Almeida evita os remédios de farmácia e diz se curar, ou melhor, se precaver, diante dos males do corpo, com plantas medicinais. Banha-se com ervas quando está com o corpo cansado. Quando questionado se tem alguma fé, responde que acredita e se conecta com as árvores, as pedras, os pássaros.
O trajeto é demorado. Às 16h, durante as seis horas de caminhada, folhas de jamelão, abre-caminho, aroeira, boldo e outras ervas-de-cheiro e medicinais foram coletadas e colocadas, em porções, em duas bolsas cheias.
Boldo, Pink Floyd e Game Of Thrones
Tímido e esguio, o erveiro tentava fugir da câmera fotográfica, toda vez que via a intenção da repórter em retratá-lo. Na prosa, o comportamento é diferente. Thiago gosta de puxar assunto. Tendo o ensino médio completo, ele é autodidata e lê sobre ervas medicinais nos livros que encontra. Como os jovens da sua idade, também curte séries e música. A série de que mais gosta é "Game Of Thrones" e o som que mais ouve é Pink Floyd, inclusive enquanto trabalha.
Ainda durante a caminhada, ao falar de política, prefere encurtar a conversa. Logo muda de assunto. Já no terraço da casa onde mora, conecta o celular a duas caixas de som grandes, dispostas em cima de uma mesa encostada numa parede sem reboco. Tim Maia canta "Que beleza". Ao entardecer, Thiago fica mais silencioso enquanto ouve seus avós falarem. Eles moram no térreo de um sobrado. Thiago e a irmã moram em cima.
Para entender seu jeito tímido, mas conversador, é preciso conhecê-los. Os dois estavam ansiosos pela visita. Assim como o neto, puxam todo tipo de conversa. A avó lembra que o interesse por plantas vem de pequeno e o avô tem orgulho do jeito trabalhador do neto.
Incentivado por eles, o jovem erveiro vai a diferentes regiões em busca de novas espécies. Maricá e Magé são algumas das cidades que visita — ainda é possível encontrar ali nacos da biodiversidade da Mata Atlântica. Thiago vende as ervas em Copacabana, onde cultiva clientes que, muitas das vezes, em busca apenas de um bom papo, o procuram sempre no mesmo local.
Entre máscaras e bugigangas
A rua Siqueira Campos é uma das mais movimentadas da zona sul e, por isso, cada espaço da calçada é cobiçado pelos camelôs. Thiago escolhe ficar em uma das esquinas de encontro com a rua Nossa Senhora de Copacabana. Estacionado embaixo de uma árvore que lhe dá sombra, um triciclo sustenta um caixote. Lá são colocados, separadamente, as ervas medicinais e garrafas de mel.
Às 13h30, enquanto organizava as mais de cinquenta plantas, os clientes chegavam. Quando solicitado, explica o que é e para que serve cada produto. A maioria dos clientes são mulheres e pessoas negras.
"Viemos aqui porque o cheiro nos chamou", disse uma mulher, à procura de manjericão. Quando um cliente esqueceu o nome do produto que procurava, bastou explicar o uso indicado que Thiago tinha uma recomendação a dar. O que não estava no caixote, o vendedor prometia trazer no dia seguinte. Ele parece levar jeito.
Thiago de Almeida aprendeu de ervas com idosas de sua comunidade e pela amizade com um erveiro de Niterói. Em meados de 2020, o jovem pediu para acompanhar Mauro Fujimori, 57, por alguns dias no ofício. O mais velho foi uma espécie de mestre para ele. Sete meses depois, sentiu-se preparado para caçar ervas sozinho e alçou voo. Atualmente os erveiros se encontram para conversar e trocar produtos colhidos.
As plantas mais vendidas da barraca de Thiago, no dia que a reportagem o acompanhou, foram canela-de-velho, levante, manjericão e erva-de-santa-maria. Ele alerta que essas, e tantas outras, têm nomes variados. A levante, por exemplo, também é conhecida como elevante e hortelã-verde e, por isso, é preciso ser curioso e estudar o tempo todo nesse ramo. Ele explica que não basta usar os produtos naturais apenas uma vez. Para fazer efeito é preciso paciência.
A banca reúne ainda as Pancs (plantas alimentícias não-convencionais), como ora-pro-nóbis e caruru, boas de comer.
Os preços variam de R$ 3 a R$ 5, porém podem custar mais caso precise comprar o produto no Ceasa de Irajá, segundo maior centro de abastecimento da América Latina. Perguntado sobre o retorno financeiro, Thiago faz as contas. "Tem o preço da passagem e do aluguel da sala [ele aluga um espaço no prédio do outro lado da rua para guardar mercadorias]. Ainda estou trocando dinheiro. Mas acredito nisso, e já vejo resultado. Tudo vai melhorar."
Passar o dia na barraca é garantia de aprendizado. Todos param para conversar com o jovem, e é só ao cair da tarde que ele se prepara para ir embora. Deixa a bicicleta em uma comunidade próxima dali e vai embora às 19h de ônibus. No dia seguinte pretende chegar mais cedo. Quer vender mato o dia inteiro.
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