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Na frente da igreja, ambulantes pregam liberdade e cristãos rezam terço

Paróquia São Luís Gonzaga na avenida Paulista, em São Paulo, durante manifestação no Sete de Setembro - Reinaldo Canato/UOL
Paróquia São Luís Gonzaga na avenida Paulista, em São Paulo, durante manifestação no Sete de Setembro Imagem: Reinaldo Canato/UOL

Tiago Dias

Do TAB, em São Paulo

07/09/2021 20h48

A avenida Paulista fervia de manifestantes às 12h quando a missa diária na Paróquia São Luís Gonzaga começou. Enquanto lá fora uma família inteira vestia camiseta com os inscritos "Deus Pátria Família" e tirava fotos na frente do templo, padre Nelson lembrava para pouco mais de uma dezena de fiéis que era dia de celebrar a pátria como "um corpo só". "Seja o pessoal da Paulista ou do Anhangabaú", disse, com voz baixa, amplificada por uma única caixa de som, que não chegava além do altar.

Enquanto o sacerdote pregava a gentileza, a paz, a não-violência e o respeito ao outro como metas do dia, na terceira fileira uma senhora de tailleur preto e écharpe verde cochichava: "Não tô conseguindo ouvir nada".

O padre pede um minuto para que Deus ouvisse as preces. Alguns repousaram a bandeira do Brasil no banco, enquanto se ajoelhavam no genuflexório. O silêncio, porém, não veio: a massa barulhenta de buzinas, apitos, gritos e até o ronco de um helicóptero lá fora se fez ainda mais presente.

"É tanta coisa acontecendo. Como alguém quer agir contra a Constituição? Contra a liberdade das pessoas?", dizia Rossana Orte, 41. Ao lado do marido e do filho, que parecia realizado dentro de um carrinho de madeira decorado com bandeirinhas do Brasil, ela fez questão de iniciar com a missa sua participação no ato convocado pelo presidente Jair Bolsonaro. "Isso que a gente está vivendo é uma guerra espiritual. A gente só pode se agarrar à oração."

Tão logo a missa acaba, o padre rapidamente coloca a máscara e deixa o altar. Na sequência, as luzes se apagam e os portões de acesso se fecham. A paróquia, localizada na esquina da Paulista com a rua Bela Cintra, passagem obrigatória de qualquer manifestação de grande porte por ali, tem os portões trancados. O ponto turístico passa então a abrigar na calçada apenas camisas e bandeiras verde-amarelas penduradas num varal, por onde passa múltiplas reivindicações em cartazes. As mais comuns eram direcionadas ao Supremo Tribunal Federal. As frases de ordem, no entanto, parecem ter sofrido uma mudança de tom. Se antes pediam intervenção militar, agora a destituição dos ministros era o clamor fundamental para salvar a democracia.

Paróquia São Luís Gonzaga na avenida Paulista durante manifestação no Sete de Setembro - Tiago Dias/UOL - Tiago Dias/UOL
Paróquia São Luís Gonzaga na avenida Paulista durante manifestação no Sete de Setembro
Imagem: Tiago Dias/UOL

Entre as cédulas e o patriotismo

Não fazia muito tempo que Geraldo Dias Filho, 48, tinha despejado dezenas de camisas amarelas da Seleção brasileira numa mesa improvisada perto dali. Dono de uma loja de roupas femininas, ele diz que não viria à manifestação se não fosse a necessidade de complementar a renda. No entanto, sentia o mesmo clima de insatisfação que fez milhares de pessoas encherem a Paulista nesta terça (7).

"Vou falar pra você: o país não está bom e Lula vai voltar de novo? Não dá pra isso acontecer, a verdade é essa. Hoje o presidente manda? Não manda", diz, antes de listar alguns casos de corrupção históricos. Sobra até para o senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente. "Me diz, como que um cara entra lá ganhando R$ 40 mil e ganha uma casa de R$ 6 milhões? E olha que eu sou a favor do Bolsonaro. Do pai eu gosto, dos filhos, não." Para ele, a solução do país seria ter "meia dúzia de deputados". "É muito político botando a mão."

O comércio na Paulista estava agitado como em um feriado normal, com direito a tendas de chope e até serviços de massagem na calçada. Lojas de doces, minimercados e ambulantes aproveitavam ao máximo o movimento para vender. O corretor de imóveis Marcos Pacchini, 59, distribuía ali, estrategicamente, folhetos de um novo empreendimento em Higienópolis, bairro de classe alta da cidade.

De camisa clara e calça social, afirma que gostaria de estar ali sem trabalhar. "O PT e a coisa da corrupção fizeram a direita se expor mais, ela tava muito calada. Fechamento de STF é uma bravata, não tem como acontecer. Os mais radicais podem até falar isso, mas o bom senso precisa prevalecer", diz, sem deixar de criticar os ministros. "Eles não podem rasgar a Constituição em alguns casos."

Acostumada a vender artesanato no começo da avenida, a peruana Elizabeth Basilio, 53, adaptava o mostruário ao dia. Braceletes, bolsinhas de couro e pequenas bandeirinhas LGBT estavam lado a lado a bandeiras do Brasil. "É o que vai sair hoje, né?". Sobre os problemas do país, diz não saber opinar.

Diferente de Adriano Cajati, 39. Com o cabelo penteado com gel, camiseta amarela e duas sacolas pesadas com bandeiras, ele queria cruzar a multidão para vender seus produtos no outro extremo da Paulista. Mesmo assim, disse estar ali "com sentimento patriótico". "O que a gente quer é simples, é ver de forma plena o artigo 5º da Constituição sendo colocado para todos nós", disse.

Eis o artigo 5º: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade".

Com bacharelado em direito recém-conquistado, Adriano tenta explicar melhor as mensagens nos cartazes, que parecem difusas e contraditórias. "Estamos claramente caminhando para algo obscuro. Você começa a ver pessoas sendo presas sem o devido processo legal, independentemente de que lado ele seja. É uma Constituição plural, mas eu acho ela linda, depende de nós defendê-la. Se a gente perder nossos direitos, nós, comuns do povo, não vamos ter condições de ascender. Só os que estão na cúpula do poder. Sem povo, não há Estado."

, com direito a tendas de chopp e até serviços de massagem na calçada - Reinaldo Canato/UOL - Reinaldo Canato/UOL
Imagem: Reinaldo Canato/UOL
O comércio na Paulista estava agitado como qualquer feriado - Reinaldo Canato/UOL - Reinaldo Canato/UOL
O comércio na Paulista estava agitado como um feriado normal, com direito a tendas de chopp e até serviços de massagem na calçada
Imagem: Reinaldo Canato/UOL

Na força do rosário

Apesar de Bolsonaro ser a estrela esperada da manifestação. Eduardo Figueiredo dizia não estar ali pelo presidente. "Mais do que meramente uma luta política, é uma luta espiritual entre o bem e o mal", diz, discorrendo sobre como a cultura marxista tem como objetivo destruir a família e a Igreja. "Estamos aqui pedindo aos céus para poderem ajudar nosso país."

Ele havia acabado de participar de uma roda de oração em frente à São Luís Gonzaga. O rosário, feito na calçada, teve mais adesão que a própria missa de horas antes. "Muitas batalhas foram vencidas com o poder do terço", disse, lembrando-se da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, série de manifestações públicas que deu força ao golpe militar de 1964. Hoje, para ele, o mal é maior. "O PT foi aparelhando o STF e hoje vivemos numa ditadura imposta pelo STF que rasgou a Constituição e faz e desfaz como bem entender. Vocês não estão falando sobre isso", critica.

Rafael Nascimento, 30, um dos mais fervorosos durante a oração, interveio. "Se eu escrever no Twitter 'Fora Alexandre Moraes', eu corro risco de a Polícia Federal bater na minha casa, pegar meu notebook e me levar embora."

Com o terço na mão, ele diz ser um dia histórico para resgatar a vocação do país. "Que é católica", enfatiza à reportagem. "Sabe qual foi o primeiro evento público no Brasil? Foi uma missa."

Após a oração, Elken Henrique, 23, faz questão de deixar claro que é do Jardim Orly, no distrito de Cidade Ademar, na zona sul da capital. E cita a prisão do blogueiro bolsonarista Wellington Macedo e a busca pelo suposto caminhoneiro Marcos Antônio Pereira Gomes, o Zé Trovão, por atos não-democráticos. "Sou operário também, não sou classe média. A gente está metido na política hoje para lá na frente exercer nosso direito de falar de Jesus, da Nossa Senhora em paz, sem ser perseguido", diz.

"Bolsonaro não é perfeito, ele erra pra caramba, mas pelo menos ele dá liberdade para as pessoas, coisa que falaram que ele ia tirar. Não vi ninguém ser sendo preso ou torturado pelo Bolsonaro. Só aquela palhaçada daquela CPI, prendendo e quebrando sigilo bancário", diz. "Se o Lula for eleito, deus-me-livre-e-guarde isso venha acontecer, a gente não quer ter rede social bloqueado, opinião censurada, canais desmonetizados."

Família vende água, mas dizem apoiar manifestação: "Quero um futuro melhor" - Tiago Dias/UOL - Tiago Dias/UOL
Imagem: Tiago Dias/UOL

O país é livre, pô

Perto dali, Maiane Morais, 23, vendia água na esquina com a Consolação, com uma faixa à frente do isopor: "Bolsonaro defende a Constituição. Segurança Jurídica. Defesas fundamentais". Um manifestante deu a ela o cartaz, e ela achou melhor usar para ajudar nas vendas. Acostumada a vender no Carnaval e na Parada LGBT, Maiane diz achar o clima da manifestação "pesado". Ao lado do irmão e dos pais, no entanto, conta votar em Bolsonaro. "Não concordo com tudo, mas eu espero um futuro melhor."

Do outro lado da rua, Carlos Antonio grita por trás da máscara: "Olha a água!". Vestido com camiseta preta e calça jeans, tem os olhos cansados. Chegou na Paulista às 8h e demorou horas para vender a primeira garrafinha de água. No isopor, boiavam também algumas latinhas vindas de Ferraz de Vasconcelos, onde mora.

Parece destoar dos ambulantes ouvidos pelo TAB durante a manifestação. "Sou contra ele", diz, convicto. "Tem muita coisa que ele podia fazer se ele quisesse, dar mais emprego pra população. Está certo que estamos na pandemia, mas tem muita gente passando fome nesse mundo. E vendedor ambulante não tem valor nenhum."

No entanto, ao desembarcar na Paulista pela manhã, conta que mentiu. "Fui abordado por um cara na estação que me perguntou: 'você vota no presidente?' É claro que eu não vou dizer que não. Eu nem sei quem era, mas não gostei da cara dele. Ele respondeu: 'ainda bem'."

"Não sei porque isso, o país é livre, pô", diz. "A gente que é ambulante tem que ter jogo de cintura pra tudo. Com a autoridade, com gente que quer fazer o mal. Você tem que ter uma saída pra tudo. E eu não sou de bater boca."