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Método raven: adolescentes usam meditação para acessar universo de fantasia

Franquia Harry Potter é sucesso na comunidade shifting - Divulgação
Franquia Harry Potter é sucesso na comunidade shifting Imagem: Divulgação

Marcos Fantini

Colaboração para o TAB, em São Paulo

24/09/2021 04h00

Deitados confortavelmente em posição de estrela, com luzes apagadas e contando de zero até 100, adolescentes reforçam, a cada respiração, a mentalização de elementos de um novo e fictício universo. A esperança é de migrar para outra realidade, saindo do plano real.

Ao final da contagem, um novo ambiente, outras roupas, companhias e o tão sonhado contato com os personagens do mundo da fantasia favorito pode se realizar. Isso é o que promete o método "raven" de meditação, como é chamado em vídeos no TikTok. Este é um dos caminhos propostos como uma porta de entrada para o shifting (prática de mudança de percepção da realidade), tendência entre adolescentes na rede social.

Em sua maioria, as experiências narradas pelos adolescentes seguem modelos bem similares: após iniciar um dos diversos métodos ensinados nas redes e adentrarem a nova realidade, os jovens se imaginam convivendo com personagens, vivendo suas aventuras favoritas e até mesmo tendo uma aparência completamente diferente.

Seja para o universo de Harry Potter ou de algum anime como Naruto, essas técnicas -- que muito se assemelham com práticas meditativas -- prometem transportar o praticante para um mundo ideal, cheio de romances e tramas pessoais. Popularizado em 2020 por influencers norte-americanos, o shifting ganhou força entre os adolescentes brasileiros já habituados ao universo das fanfics (histórias criadas por fãs em seus mundos de fantasia favoritos, com universos preestabelecidos por grandes autores) e comunidades empolgadas para expandi-los.

Realidade x realidade desejada

O movimento se iniciou durante a pandemia, quando grupos de fãs do personagem Draco Malfoy, interpretado pelo ator Tom Felton da série Harry Potter, compartilhavam suas histórias e experiências no TikTok. Neste contexto, as fanfics se tornaram "scripts" nos quais os fãs, majoritariamente meninas, vislumbravam a possibilidade de tornar suas fantasias realidade. Inspirando-se em vídeos de meditação guiada no YouTube, criaram métodos para aprofundar suas experiências.

Não demorou muito para que a tendência chegasse também ao Brasil por meio dos mesmos grupos de interesse, principalmente relacionados à série do bruxo inglês. Os primeiros conteúdos citando o termo "DR" (Desired Reality) ou "Realidade Desejada" em português, datam também de 2020 — e não faltam vídeos que prometem ajudar os interessados na tão desejada mudança de universo.

"Comecei no shifting vendo minha prima, levei meses até entender como funcionava e conseguir acessar minha DR de Boku no Hero Academia (desenho japonês). Daí pra frente, conheci muitas outras meninas com quem troco ideias de scripts" conta a tiktoker paranaense Maria*, 19. "A sensação é uma mistura de liberdade com euforia, a gente não sabe o que pode fazer sem acabar saindo da DR, eu já 'sai' por ter tropeçado em uma escada por lá, mas são coisas que você vai aprendendo com a prática, viver com os seus personagens favoritos, mesmo que assim, não tem preço".

Maria conta, também, como a comunidade cresceu por aqui no Brasil. "A gente compartilha muita coisa, principalmente as experiências dentro dos grupos de fãs. O shifting reforçou muitas amizades entre otakus (fãs de desenhos japoneses) além da comunidade de DR sobre Harry Potter. Sem os eventos ou encontros ficou mais difícil reforçar esse contato, eu já até dividi DR e fui junto com outros amigos para lá ".

No TikTok, conteúdos nos quais jovens apresentam detalhes sobre suas viagens particulares para estes universos e os scripts utilizados ganham cada vez mais tração e a #realidadedesejada já conta com mais de meio bilhão de publicações relacionadas. Nelas, os jovens trocam suas experiências de maneira bem humorada sobre esses momentos de introspecção.

O relato de Maria* segue a linha dos perfis de shifting no TikTok brasileiro, onde os usuários criam conteúdos em equipe — dando dicas de como entrar na DR, criando seus próprios scripts e postando conteúdos motivacionais para que seus seguidores não desistam.

O sucesso também cobra seu preço: as comunidades optaram por não se identificar na reportagem de TAB porque sofrem ataques nas redes e são constantemente ridicularizadas, tendo seus vídeos copiados e postados em páginas de memes no Instagram e Twitter.

Meditação ou magia?

"A maior parte da comunidade de shifting entende que o processo e os métodos são pessoais e acontecem somente na nossa cabeça, mas algumas, principalmente as mais jovens, acreditam que podem de fato estar mudando de realidade", explica a tiktoker paulistana Marcela*, 24, sobre como ainda não foi estabelecido um consenso a respeito da prática, mesmo entre seus adeptos.

"É muito mais difícil do que parece ir para a DR, muita gente tenta por meses com muitos métodos e ainda assim não consegue. Geralmente, consegue quem persiste muito." A definição aberta para o shifting torna comuns as variações de nomenclatura para os mesmos processos. O shifting também é chamado de meditação guiada, auto hipnose, projeção astral ou até mesmo sonho lúcido.

Parte daqueles que acreditam no viés pseudo-científico do shifting citam física quântica, a teoria do multiverso ou autores como Neville Goddard — palestrante famoso na década de 1950 pela divulgação de ideias relacionadas ao poder da mente em uma leitura própria do cristianismo — o que acaba por aproximar a prática do shifting ao esoterismo.

Essa associação fica evidente em diversos canais de YouTube que já produziam conteúdos relacionados a questões místicas. Com a nova tendência, embarcaram na onda e criaram seus próprios vídeos sobre métodos e práticas de acesso a Realidades Desejadas.

Coisa de menina?

Independentemente da definição do método, o psicólogo Pedro Desiderio Checchetto, pesquisador de juventudes e mestre pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) não acredita que a prática possa ser nociva para os adolescentes. "Eventuais problemas que possam surgir estão relacionados a questões multifatoriais e não do shifting por si. A frustração pode ocorrer, uma vez que fora da 'realidade desejada' o jovem se depara novamente com o seu contexto real", observa.

Checchetto levanta paralelos com outras práticas similares e anteriores ao shifting. "Apesar de individual, ele encontra paralelo com outros fenômenos como o cosplay — no qual pessoas se fantasiam de seus personagens favoritos e podem participar de encontros nos quais abdicam de parte de suas identidades para viverem, mesmo que parcialmente, próximos a estes universos ficcionais."

Em agosto de 2021, diversas das principais páginas de shifting em português deu um tempo nas postagens por conta dos ataques e ofensas que chegavam de forma massiva. O fenômeno não acontece de maneira isolada: outras modas com temas tidos como de interesse majoritário de meninas, em especial adolescentes, já foram alvo de piadas. Tendo sua origem nos grupos de fãs assíduos de universos como Harry Potter ou Crepúsculo, a comunidade shifter acaba por carregar este mesmo estigma e ódio direcionado.

Segundo a psicóloga e especialista em terapia analítico-comportamental, Camille Borges, a divisão estrutural entre os gostos tidos como para meninas ou para meninos pode ser um fator motivador para que meninos sejam menos propensos a compartilhar suas experiências — bem como a segregação dos gostos é um facilitador de críticas direcionadas.

Para Borges, esse tipo de segregação também é uma forma de violência contra meninas. "Quando consideram que existem assuntos para homens e assuntos para mulheres ou quando questionam a capacidade intelectual, reforçam a tentativa de controle ao longo da adolescência — momento em que estamos construindo a nossa personalidade".

Assim como outras manifestações sociais e comportamentais na adolescência, o shifting se apresenta como uma nova moda, capaz até de estimular a criatividade em um momento na qual as trocas coletivas estão dificultadas pelo distanciamento entre os jovens em um ponto tão crítico para a formação e identificação com um grupo.

Em relação à atenção necessária aos pais dos adolescentes praticantes do shifting, o pesquisador Pedro Desiderio reitera: "Não existe um problema em relação à prática em si. Porém, é importante que os pais fiquem atentos caso haja um comportamento patológico ou excessivo do jovem em relação ao tema".