Medo e alívio: a volta à 'normalidade' enquanto a pandemia não acaba
Uma mulher no megafone pede "máscara no rosto, por favor".
As luzes do Estádio do Morumbi estão novamente acesas. No entorno, os varais com camisas penduradas e a fumaça dos espetinhos dão a impressão de que entramos numa máquina do tempo, de volta ao antigo normal — ainda que em menor escala.
Com o ingresso mais barato no valor de R$ 110, a volta da torcida ao estádio tricolor — segunda partida com público, após determinação do Comitê Científico do Estado de São Paulo — ficou abaixo da lotação máxima de 30%. João Victor, 23, não teve dúvida. Esteve ali na última vez que o espaço recebeu 30 mil pessoas, no longínquo março de 2020. A volta, no entanto, tinha gosto agridoce. "A gente fica feliz porque a gente ama viver o São Paulo, mas triste pelas vidas que se foram", diz, entre goles na cerveja de latinha.
Naquela quinta-feira (7), o Brasil estava a algumas horas de alcançar a marca de 600 mil mortos pela pandemia — entre eles, o pai de João Victor. O jogo do São Paulo foi seu primeiro momento de lazer após a perda. "Estou aqui porque sei que ele ficaria feliz se eu continuasse fazendo o que fazíamos juntos", diz, com olhos marejados. "Mas eu tenho família em casa e as pessoas continuam morrendo. A guerra está aí."
Para Eusébio Miranda, 45, a ocasião despertou urgência. Era o primeiro programa em família desde o início da pandemia — e a estreia de muitos ali no estádio, da criança de quatro anos a seu pai, José, de 89. Com óculos de grau máximo, José comia um x-salada antes de entrar no estádio pela primeira vez: "Já era hora". "O fato de estar vacinado dá uma tranquilidade, há seis meses não faríamos isso. O sonho dos netos era assistir ao jogo com o avô. Por isso estamos aqui", explica Eusébio.
Acabado o lanche, todos colocam máscara. Sinal dos tempos — assim como a necessidade de mostrar comprovante de vacinação, nas tendas improvisadas no terreno ao lado do estádio. A nova regra para retirar a pulseira de acesso gerou uma fila grande que se estendeu após o juiz apitar o início da partida, às 18h30. Cinco minutos depois, o primeiro gol causou revolta num torcedor à espera. "Porra, gol do Santos, e eu nessa burocracia do c*****", gritou por trás da máscara.
Se o retorno sob a sombra de uma marca impressionante de perdas é definitivo ou não, ninguém sabe ao certo. O que está em jogo agora é munir as pessoas de informações para que entendam o que é a flexibilização de uma pandemia que ainda não terminou. É nisso que acredita o físico Vitor Mori, doutor em engenharia biomédica pela USP (Universidade de São Paulo) e membro do Observatório Covid-19 BR.
Mori diz que o estádio em si não é um lugar perigoso, desde que se mantenha o acesso reduzido, o uso de máscara e o mínimo de distanciamento. Não se trata de avaliar quem deve ou não ficar em casa, mas de como lidar com a autonomia das pessoas num período de privações. "A realidade se impõe", sintetiza. "A gente trata com um pouco de paternalismo, como se as pessoas fossem incapazes de entender nuances e detalhes, sair do binarismo de 'isso é seguro, isso é perigoso'; e elas conseguem sair."
Varanda comunitária
O Largo de Santa Cecília é, nas palavras da moradora e líder comunitária Bruna Franzoi, a sacada coletiva de centenas de moradores. No centro do espaço, a Paróquia lembra que a santa em questão é padroeira dos músicos. Era atrás da igreja que uma roda de samba acontecia toda sexta-feira, antes da pandemia.
Nos últimos dois finais de semana, o som da percussão voltou a rolar entre cadeiras e mesas de plástico. O espaço vem lotando dia após dia. Quando isso acontece, o clima de euforia toma o ambiente. Muitos levantaram para sambar, alguns sem máscara.
Bruna mostra um novo banco de cimento, conquistado numa ação comunitária. No período mais rígido das restrições, era ali (ou em cima de um engradado de cerveja) que os vizinhos se sentavam para beber, num esforço para que os bares do entorno não fechassem definitivamente.
Ela conta ter recebido ovada de quem julgava o ato como irresponsável — afronta que diz ouvir ainda hoje. "Moro sozinha, Meu maior risco era ficar mentalmente depressiva. Esse tempo trouxe toxicidade e intolerância", diz, citando ações da vizinhança na distribuição de cestas básicas. "E você vai julgar quem está vindo beber?"
Para Nori, a ausência de uma orientação clara e correta pelo governo federal fez a pandemia se tornar um verdadeiro "vigiar e punir" — e isso não apenas nas redes sociais. "Muitas pessoas se infectam e não falam, com medo do julgamento. Não dá pra dizer: quem sai de casa é genocida. Isso só afasta, empurra a pessoa para o negacionismo. A gente colocou muito peso para redução da transmissão no indivíduo."
Sonho de Carnaval
Não precisa ir muito longe. Uma caminhada em qualquer shopping center, feira e evento mostra que a população está em peso nas ruas. Os bares já lotam e as baladas, antes clandestinas, continuam na muquia, cada vez mais frequentes.
É apenas o tira-gosto da promessa de volta plena ao mundo que abandonamos no início de 2020. Na mesma semana, São Paulo engrossou o coro de outras capitais e anunciou o Carnaval para 2022, além de outros eventos sem limite de público, a partir de novembro.
"Tem que rolar, porque aí vou me soltar", diz Marco Aurélio, 51, aos risos. Ele perdeu o namorado para a covid-19 e conta que se levantou desse e de outros solavancos no Largo. "Fiquei em casa e aqui desde o começo. Era importante pra mim", diz, de olho na folia ano que vem. "Sou costureiro de fantasias na Vai Vai, já até voltei a trabalhar."
Foi durante a pandemia que o samba entrou de vez na vida de Redson Carioca, 39. Nos encontros no Largo, improvisou versos e batuques com amigos. Em pouco tempo, criaram um grupo de samba, o mesmo que tem animado o espaço nessa volta. Ele sente que alguns vizinhos mais resistentes têm participado mais daquela "varanda", onde a maioria está sem máscara.
"A gente nunca ficou tanto tempo sem ter contato com cultura, arte e lazer, e isso é necessário para viver. Como é que não pode isso sendo que tem 13 mil pessoas num estádio de futebol? É um lugar ao ar livre, estou sempre com os mesmos vizinhos. Pra mim é o lugar mais seguro, no meio da pandemia", explica.
Para Nori, o lazer sempre foi visto por um viés moralista. "Você abrir mão do lazer não te torna mais ou menos virtuoso. Dado que as pessoas precisam de lazer, a gente precisa pensar em alternativas." Para ele, é hora do brasileiro lidar com contenção de riscos.
Medo do toque
A poucos metros do Largo, o Bar da Bete bomba. Desde 17 de agosto, quando o estado anunciou o fim das restrições de horários e capacidade de estabelecimento comerciais, o casal Washington e Bete viu aumentar em pelo menos 30% o público do bar que abriram juntos.
Eles se desdobram atrás do balcão para atender o público, que toma a calçada e o meio da rua a partir da meia-noite. Uma coisa não muda: os dois estão sempre de máscara.
Washington, 64, diz acompanhar diariamente as novidades do centro de contingência. Na semana passada, estava indignado com a promessa da prefeitura de suspender obrigatoriamente o uso de máscara. "Até hoje eu não consigo pegar um elevador sem ela", observa. "Graças a Deus não pegamos [covid-19] e acho que foi por causa disso." No dia seguinte, o comitê científico deu um passo atrás e disse que a questão será discutida no futuro.
Socióloga e colunista do VivaBem UOL, Mariana Varella nota que países que fizeram a flexibilização sem cautela — ou com menos de 70% da população com as duas doses — acabaram retrocedendo nas medidas.
"Não dá pra dizer que a gente vai seguir o mesmo caminho. A pandemia é muito dinâmica, mas, de qualquer jeito, experiências anteriores deveriam servir pra gente ficar mais esperto", diz. "É muito melhor hoje uma orientação de como beber uma cerveja ao ar livre."
A chuva e o frio não espantaram o público do bar no último fim de semana. Do lado de fora do bar, Alexandre Andrade, 34, conversa animado com amigos. No entanto, disse que se sentia estranho naquela volta. "É como se eu reaprendesse a andar", compara. "Sinto ainda o receio de abraçar. É involuntário, porque automaticamente você acha que está fazendo algo errado."
Energia represada
Bete é conhecida por nunca parar atrás do balcão. Ela mesma nota que tem trabalhado dobrado, talvez para extravasar o período de reclusão. No ano passado, ficou oito meses com o bar fechado. "Só estamos vivos porque tínhamos um fundo de reserva."
Nas últimas semanas, passou três dias sem trabalhar. O movimento na calçada fez o bar receber reclamações de barulho. Washignton diz controlar o acesso da porta pra dentro. "Mas ficam 300 pessoas, todo mundo mamado, falando alto na rua." Bete observa: "É muito tempo trancado, preso, e agora eles estão saindo, estressados".
"Vai ter um período de euforia, ainda mais que estão chegando as festas de fim de ano, o verão", nota Varella. "E isso é meio perigoso, porque não dá mais pra gente jurar que o pior já passou."
Num "otimismo cauteloso", ela comemora que, mesmo com informações falsas e muitas vezes divergentes, o brasileiro optou por se vacinar em massa. Essa é a luz que deve nos guiar nesse fim de túnel. "Concluir a vacinação e o imunizar com terceira dose o maior número possível de idosos e imunossuprimidos. Quando a gente chegar a isso, vai respirar mais tranquilidade", diz. E, quem sabe, sem máscara.
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