'As falas deixam a desejar': a agenda evangélica de Bolsonaro em Manaus
Com uma grossa Bíblia no colo, o missionário Railson Ribeiro, 26, tinha na fisionomia um conflito: tentava se concentrar na pregação, apesar do incômodo com a claque barulhenta que aplaudia as autoridades presentes naquela manhã de quarta-feira (27).
"A Bíblia diz que há hipócritas e fariseus. Se esses aplausos fossem para dar glória a Deus, Ele estaria contente."
Na linha do olhar de Railson, no palanque-púlpito do Centro de Convenções Vasco Vasques, em Manaus, estavam Carlos Porto, Presidente da Base Cristã no Amazonas, que abria a 1ª Consagração Pública de Pastores, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), o governador do Amazonas, Wilson Lima (PSC), e o prefeito de Manaus, David Almeida (Avante). Ao lado deles, mais líderes religiosos e Silas Câmara, deputado federal e ex-coordenador da Frente Parlamentar Evangélica.
Na madrugada de quarta-feira, Railson enfrentou quatro horas de Itacoatiara, onde atua como missionário há três meses, até a capital. Foi o de menos. A pior batalha ocorrera um ano e quatro meses atrás quando ele pediu, em oração, uma chance para mudar de vida. Railson cumpria pena em Roraima por tráfico de drogas.
"Falei para Deus que, se ele me tirasse dali e me desse uma oportunidade, eu ia mudar de vida e me entregar a ele verdadeiramente. Ele disse que ia me colocar em lugares onde nunca imaginei estar e me honrou. Hoje estou aqui em Manaus."
O evento, que consagrou 96 pastores e reuniu quase 1.100 pessoas, significa para Railson o cumprimento das promessas de Deus em sua vida e a expectativa de fortalecimento de sua fé. Mas ele teve outros significados para as autoridades presentes.
No segundo turno das eleições de 2018, Jair Bolsonaro recebeu 70% dos votos válidos em Manaus. De acordo com pesquisa de setembro do Datafolha, embora tenha se reduzido a aprovação entre os evangélicos, o segmento não migrou para o adversário mais forte dele em 2022, o ex-presidente Lula.
Foi nesse ambiente que Bolsonaro buscou refúgio em um momento de pressão, após o relatório da CPI da Covid pedir seu indiciamento por nove crimes. Um deles é o de crime contra a humanidade em função das mortes por asfixia de milhares de amazonenses, por escassez no fornecimento de oxigênio, dentro e fora dos hospitais do estado. O sistema de saúde de Manaus colapsou, entre janeiro e fevereiro de 2021, mas o relatório aponta que o Ministério da Saúde já sabia da "vulnerabilidade do Estado do Amazonas" desde abril de 2020.
Bolso vazio
Bolsonaro discursou e sorriu em Manaus, onde cumpriu agenda na quarta-feira até tarde da noite, mas não manteve a expressão de satisfação de outras visitas. Estava sério nas selfies postadas ao lado de políticos.
Sem anúncios de recursos ou inaugurações, Bolsonaro coletou palavras de apoio de líderes evangélicos e aplausos em eventos com aglomerações.
Na Consagração Pública, pastores e políticos de olhos fechados oraram com as mãos em direção à cabeça do presidente. Em comunhão religiosa, Railson chegou a envergar o corpo para a frente, cerrando os olhos e sobrancelhas. O pastor que conduzia a prece pediu a Deus que "toda arma forjada contra o presidente não prospere e toda língua que se levantasse contra ele, que Deus condenasse em juízo", citando uma passagem bíblica conhecida.
Coube ao general Augusto Heleno, ministro do GSI (Gabinete de Segurança Institucional), destoar do comportamento geral. Enquanto o público louvava, Heleno acompanhava a cena de olhos abertos.
O clima diferente durante a visita a Manaus não ficou só no humor do presidente. Do lado de fora, onde seguidores costumam se aglomerar para ter contato com ele, havia mais ambulantes que clientes. Pelo menos quatro vendedores aguardavam sua chegada.
Para Railson, o assédio popular significa a queda moral dos políticos. "Aceitar Jesus é renunciar ao eu, à soberba, prostituição, mentira, ganância, ira. Muitos querem ter cargos, renome, mas não querem pagar o preço que Jesus pagou."
O missionário afirma não aprovar a presença de políticos dentro de eventos religiosos porque "a Bíblia ensina que o dever do cristão é adorar apenas a Deus". No entanto, disse que gostou de saber que o presidente sempre foi a favor de manter igrejas abertas durante a pandemia. "Ele demonstrou que teme a Deus", avaliou o evangélico.
Fila e garoa
Sete horas depois da Consagração Pública, a 15 quilômetros dali, uma enorme fila de homens de paletó e mulheres de vestidos longos entrava no auditório Canaã, da Assembleia de Deus, para participar da Convenção Geral. A maioria entrou molhada porque ficou na fila pegando chuva fina e insistente por cerca de 40 minutos.
Assim como no evento da manhã, era exigido o uso de máscara na entrada. Tubos de álcool em gel foram deixados no chão da área externa. O auditório tem capacidade para 10 mil pessoas. Estava quase lotado, e lá dentro, não havia oferta do sanitizante. Manaus tem 50% da população imunizada contra a covid-19.
Além de puxar louvores e orações, o pastor destacou a presença do presidente e do indicado de Bolsonaro ao cargo de ministro do STF (Supremo Tribunal Federal), André Mendonça — que, ao lhe ser dada a palavra, comparou sua espera pela sabatina no Senado à fé de Paulo de Tarso em suas cartas aos cristãos nos momentos de tribulação. Ao final, o pastor orou para que o Senado não faça Mendonça esperar, só por ser "evangélico".
No evento, Bolsonaro voltou a defender que as sessões do STF começassem com uma oração e fechou o raciocínio: "Deus nunca é demais. Deus é sempre bem-vindo. Não fechei uma igreja na pandemia. Vocês lembram do 'fica em casa, a economia a gente vê depois'. Agora a conta chegou e querem me culpar." A cada fala, todo o público aplaudia de pé.
Ao lado da mulher e da filha, o pastor Josimar Ribeiro, 46, esperava o Uber em frente ao auditório Canaã sem esconder o entusiasmo com a convenção.
Há quatro anos, Josimar é um dos pastores da Assembleia de Deus no bairro Jorge Teixeira, um dos mais populosos da periferia de Manaus. Frequentam sua igreja 80 fiéis. O evento grandioso da Assembleia de Deus foi o primeiro de que ele e a família participaram, desde o início da pandemia.
Josimar ajeitou a máscara espontaneamente e respondeu que não teve medo da pandemia porque apenas Deus sabe a hora de cada um. O pastor argumenta que é impossível separar a política da vida religiosa. Para ele, a igreja e seus membros precisam discutir política, caráter e perfil de candidatos, como qualquer outro segmento. Disse não ser a favor da indicação de nomes e que o "futuro ministro do STF" precisará entender que está lá não para defender a igreja e sim a nação.
"A gente saber que ter alguém ali que teme ao Senhor é motivo de orgulho. Mas ele vai estar lá para cuidar do Brasil."
De Nova Olinda do Norte, a 134 quilômetros de Manaus, o pastor Eunício José Ferreira de Souza, 63, contou que participar do evento, apesar do sacrifício de uma viagem de um dia e uma noite de barco, é importante para organizar a igreja onde mora. Mas não fica confortável com a presença de políticos. "Achei boa a vinda do presidente, mas o que ele fala e outras coisas que faz ficam a desejar."
Questionado sobre o que faltou na fala de Bolsonaro, Eunício respondeu: "sobre o preço das coisas. Eu esperava ouvir palavras que viessem a confortar a gente".
Um pastor de 64 anos que pediu para não ser identificado afirmou que se sente constrangido quando políticos estão tão à vontade. "A gente é quase obrigado pelo nosso presidente [liderança da igreja] a votar nesses candidatos. Hoje, você sabe, eles praticamente sabem em que a gente vota ou não, né? Para a gente não desobedecer, passar por rebelde, a gente vota", disse ao TAB.
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