'Cuidado com os micuins!': capivaras e humanos convivem na Raia da USP
Não é preciso andar por muito tempo para encontrá-las. A poucos metros da margem da Raia Olímpica da USP (Universidade de São Paulo), lago artificial dedicado à prática esportiva, uma capivara é flagrada pastando na grama verde, perto da água, indiferente à presença humana. Um pouco mais adiante, do outro lado, mais uma caminha pelo barranco antes de dar um mergulho.
Cerca de 50 capivaras vivem no local, que conta com um pouco mais de 2000 m de extensão e 100 m de largura. Do outro lado do paraíso, separados pelo polêmico muro de vidro, fica um dos cartões-postais mais tristes da capital de São Paulo: a Marginal Pinheiros, cujos grandes atrativos são os prédios metálicos, o trânsito permanente de automóveis e o rio poluído.
As primeiras capivaras chegaram em 2013, pelo Córrego Pirajuçara. Acredita-se que um casal de exploradores com espírito desbravador, acompanhados por sua prole de três ou quatro rebentos, foram os primeiros a ocupar o local.
O resto da história é fácil de concluir. Água limpa, grama abundante, ausência de predadores e a alta taxa de fertilidade da espécie multiplicaram a quantidade de capivaras desde então. Estima-se que a expectativa de vida dos animais em seu habitat natural seja de quatro a cinco anos. Na Raia Olímpica, vivem muito mais.
Resilientes, outras capivaras vivem nas margens do vizinho rio Pinheiros. Há quem diga que as capivaras da Raia têm uma aparência diferente das primas que vivem na Marginal — os pêlos são mais vistosos por mergulharem constantemente em águas límpidas.
O éden das capivaras não é novidade para quem conhece a Cidade Universitária, situada na Zona Oeste da capital paulista. Antes da pandemia, a raia da CEPEUSP (Centro de Práticas Esportivas da USP) virou uma espécie de ponto turístico dos estudantes. "O pessoal costumava sair do bandejão e vir aqui para fotografar as capivaras", conta Caio Geraldes, 26 anos, linguista e um dos remadores que divide as águas com os animais.
Protegendo a prole
Recentemente, Geraldes compartilhou em sua conta no Twitter uma foto do barco em que costuma remar, tirada logo após o ataque de uma capivara. "São animais muito dóceis, foi algo excepcional", defendeu José Carlos Simon Farah, 65, diretor-técnico do CEPEUSP, que recebeu o TAB após o treino matinal do time de remo.
Segundo Farah, a suspeita é que o esquife cruzou o caminho de um macho que nadava na água com seus filhotes. Assustado, o animal mordeu o barco em um ato de defesa. "Você já viu o tamanho dos dentes desse bicho?", perguntou, enquanto apontava para o barco já devidamente remendado. Os dentes incisivos de uma capivara adulta podem chegar a 6 centímetros de comprimento. "A sorte é que o remador manteve o equilíbrio e não virou o barco", disse.
Tirando o evento recente, a convivência entre capivaras, remadores e outros frequentadores humanos é pacífica. "Se você for pensar, os invasores somos nós", disse Farah. Acostumadas com a rotina do lugar, as capivaras evitam nadar na hora em que barcos estão na água, e não parecem se incomodar se alguém chega perto quando estão pastando na grama. Exceto, claro, quando estão com os filhotes. "Você também não reagiria assim se um estranho chegasse perto do seu filho na praia?", indagou o diretor-técnico.
Desde a chegada das capivaras, se discutiu se elas deveriam ser retiradas pelos órgãos competentes, mas os roedores venceram. Farah não se opõe à presença dos animais, mas frisa que não é exatamente um trabalho fácil ter de lidar com eles.
Quando os seres humanos estão recolhidos, os bichos avançam na terra firme, roendo árvores e barcos, deixando seus dejetos por todo lado e fazendo tudo mais que têm direito. "É como criar cachorros. As pessoas acham que é legal, mas quando são os outros que criam", comparou.
Em 2019 o departamento de Veterinária passou a fazer um controle populacional da espécie, aplicando vacinas de inibição de fertilidade. Os resultados estão sendo vistos agora, segundo o diretor.
Malditos micuins
Uma das ironias da natureza é a capivara ser um bicho fofo e dócil, mas que oferece riscos bem sérios aos humanos. A maior preocupação está no fato de esses roedores serem os principais hospedeiros do carrapato-estrela, também chamado de micuim. Quando está infectado pela bactéria Rickettsia rickettsii, o micuim transmite uma doença chamada febre maculosa, que pode até ser letal.
Periodicamente, a grama do local é analisada. "Se acharem um carrapato infectado, a raia fecha", explicou Farah. Muito presente no Sudeste do país, a febre maculosa deve ser tratada nos primeiros dias. Caso contrário, pode facilmente matar quem foi infectado.
Nunca foi detectada a presença de um carrapato-estrela infectado na Raia Olímpica, mas esses aracnídeos são abundantes na grama. "Cuidado com os micuins", advertiu Farah por dezenas de vezes, enquanto buscávamos uma capivara para fotografar. "Quando chegar em casa, tira a roupa na porta de entrada e já coloca para lavar", aconselhou. Em tempo: a dica do diretor-técnico foi cumprida, mas mesmo assim um micuim solitário foi encontrado na perna da repórter horas mais tarde.
O homem da raia
Farah frequenta o atual paraíso idílico das capivaras fugidas do rio Pinheiros desde 1976, três anos após sua fundação. Foi quando começou a remar. Alto, magro e disciplinado, nunca mais parou de praticar o esporte. Também dá aulas de remo e parece conhecer cada centímetro de terra e água do local.
Diz que atualmente entra na água três vezes por semana, e aproveita os outros dias para praticar atividades complementares. "Estar na água é algo natural para mim", resumiu. "É como andar."
Acompanhando o diretor, o linguista Caio Geraldes comenta sobre a rapidez de Farah quando está no barco. "Daria uma matéria inteira se você falasse como ele consegue remar deixando a água lisinha", contou Geraldes, praticante de remo desde os 13 anos de idade.
Enquanto circula pelo local, não há um funcionário que passe sem cumprimentar o diretor-técnico. Quando a pandemia teve início, em março de 2020, o CEPEUSP fechou assim que a gravidade da situação foi constatada.
Mesmo agora, quando praticamente tudo voltou a estar em funcionamento, Farah não flexibiliza o básico. "Você está sem máscara", disse, advertindo um dos frequentadores da raia, que rapidamente colocou a proteção rosto. Na hora de ser fotografado, baixou a máscara, contrariado. "Coloca aí que eu não quis tirar a máscara, por favor", pediu o diretor-técnico, antes de voltar cobrir o rosto assim que o retrato foi feito. "Tenho que dar o exemplo".
A vitrine abandonada
Farah fala firme sem precisar levantar a voz. Não parece ser um homem que perde a paciência com facilidade, mas não gosta quando passam informações erradas sobre a Raia Olímpica. Dois assuntos renderam dores de cabeça para o diretor-técnico: o muro de vidro e capivaras mortas.
O muro de vidro é uma polêmica por si só. A construção foi anunciada em 2017, quando João Doria tinha acabado de assumir o posto de prefeito. O muro de vidro parte de um esforço para limpar o Rio Pinheiros e revitalizar suas margens — em tese, foi construído para embelezar a área e deixar a Raia visível para quem está na Marginal. Na prática, a obra caminha a passos lentos. Em alguns trechos, parece abandonada, com vidros faltando, ou até quebrados, em diversos pontos de sua extensão.
Quem frequenta o CEPEUSP, incluindo Farah, é contra o muro de vidro, que também acabou desativando a pista de corrida que dava a volta pela raia olímpica. Por conta disso, a pista remanescente virou uma rota das capivaras. Pelas margens da Raia, além dos carrapatos-estrela, é preciso também ter cuidado para não pisar nas inúmeras pilhas de bolinhas fecais marrons deixadas pelos roedores.
'Não é uma cena bonita'
Já o segundo tópico que gerou incômodo para o diretor se refere ao ciclo natural da vida. Eventualmente alguma capivara morre e, por conta disso, aparece boiando na água.
Farah citou uma reportagem do UOL, publicada em 2019, acusando o CEPEUSP de deixar capivaras mortas na raia, prejudicando os remadores. "Avisei nesse dia que eu estava disponível para falar com o repórter, mas ele nunca me procurou", lamentou.
Quando a carcaça está na água, os funcionários vão de lancha para retirá-la. Não é um trabalho fácil, visto que uma capivara adulta pode pesar até 100 kg e, na água, fica ainda mais pesada.
Dependendo do período em que estiver boiando e de seu estado de putrefação, o cadáver de capivara pode explodir assim que é retirado da água. O protocolo é cobrir o animal e notificar a prefeitura do campus. O descarte é feito pela Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP (FMVZ).
O mais prático, no entanto, é deixar a natureza correr seu curso. "Em questão de horas os urubus limpam tudo. Depois os cachorros pegam os ossos e não sobra mais nada", resumiu o diretor-técnico. "Mas não é uma cena bonita de ver, então o pessoal reclama".
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