'De esperança em esperança': uma ceia natalina à população de rua de SP

Manoel já provou de muita coisa na vida. Teve emprego, casa e dinheiro, mas perdeu tudo e foi parar na rua. Dos tempos de vacas gordas ele guarda lembranças dos eventos chiques que frequentou e dos planos de sucesso que alimentou, até se endividar incontrolavelmente. "Foi o fundo do poço", conta.
Ex-funcionário de uma indústria química em Santo André, no ABC paulista, Manoel Lino dos Santos, 51, ocupou cargo de técnico em segurança do trabalho por mais de uma década. No início dos anos 2000, depois de juntar uma grana, decidiu pedir demissão e enveredar pelos riscos das ações de fundo de investimento. Investiu R$ 400 mil que tinha e perdeu tudo. Quebrou.
As dívidas só aumentaram. Teve luz e água cortadas, hipotecou a casa onde vivia, entrou em depressão. "Comecei a me isolar. Cheguei a agredir minha filha. Foi uma fase muito difícil. Quando a pandemia começou, eu não tinha mais onde morar, e vim para o centro de São Paulo."
Foi na igreja de Nossa Senhora da Achiropita, no bairro da Bela Vista, que Manoel encontrou ajuda. Conseguiu se alimentar e foi orientado a procurar um CTA (Centro Temporário de Acolhimento) da Prefeitura, na Liberdade, onde vive desde o início de 2020. Lá, além de hospedagem, recebe café da manhã, almoço e janta.
Em janeiro de 2021, Manoel decidiu que queria retribuir de alguma forma a atenção que recebeu quando mais precisou. Conheceu, assim, o Cisarte (Centro de Integração Social pela Arte, Trabalho e Educação), uma associação criada em 2016, no Viaduto Pedroso, também na Bela Vista, onde desde então tornou-se voluntário. O espaço atende diariamente a dezenas de pessoas em situação de rua e as nutre com atividades sociais, cursos e oficinas profissionalizantes. Manoel é recepcionista e ajudante de lá.
Ceia natalina
No fim de tarde de quinta-feira (16), cerca de 30 pessoas estavam sentadas no chão e na escadaria que dá acesso ao Cisarte, alinhadas em fila. A entrada do centro fica exatamente na parte de cima do viaduto que liga a Liberdade à Bela Vista.
Lá dentro, Manoel se preparava para uma ocasião especial. Caminhava de canto a canto do espaço, observando se tudo estava nos conformes para a ceia natalina oferecida em parceria com a ONG SP Invisível. O prédio foi todo decorado com luzes e árvores de Natal. Na maior das três salas, foram colocadas mesas redondas, rodeadas de cadeiras. A expectativa era grande, tanto dos convidados quantos dos voluntários. "A gente às vezes só quer um tempinho de atenção. Quem está na rua tem sentimento, é gente", dizia Manoel.
Neste ano, as duas organizações se propuseram a bancar jantar a cerca de 5 mil pessoas. De 1º a 23 de dezembro, grupos com uma média de 100 pessoas participaram da ceia, cujo tema era "O que sobra em você falta no outro". Naquela quinta-feira, 128 pessoas celebraram o Natal em conjunto.
"Vêm do entorno e outros trazemos em vans. Nós circulamos por locais onde sabemos que há pessoas em situação de rua e as convidamos", conta o cineasta André Soler, um dos responsáveis pelo projeto SP Invisível. "Além dos eventos no Cisarte, faremos também jantar e almoço itinerante. Vamos com um caminhão e montaremos essas ceias em pontos específicos da cidade."
Os alimentos servidos no Natal Invisível foram comprados com dinheiro recebido em doações. A própria SP Invisível lançou um site para que voluntários pudessem contribuir. Alguns também ajudaram servindo os pratos durante as 23 noites.
Não é só comida
"Eu ainda não sei onde vou passar o Natal. Você acredita que recebi alguns convites?", dizia Manoel, sorrindo, ao ser questionado sobre como será seu dia 24. "Vou resolver. Tem a casa da minha filha, mas eu fico pensando que, depois de tudo que fiz ela passar, não sei se é legal ir. Fica um clima estranho, né?" A filha dele, que tem 21 anos, mora com a mãe em Cidade São Mateus, na zona leste de São Paulo.
Parado bem próximo ao balcão de entrada do espaço, onde os participantes precisavam preencher um cadastro antes de entrar, Manoel acenava para Maria Selma, uma das primeiras a chegar à ceia. Descia as escadas com um vestido longo estampado e um lenço fino, amarelo, cobrindo seus ombros.
"Hoje é aniversário do meu marido. Pedi que cantassem parabéns pra ele, mas é surpresa. Ele vai amar", explicava a mulher, tão logo se aproximou, passando a mão nos cabelos vermelhos, escovados. Selma e o marido dela, Allan, moram na rua há mais de 10 anos e frequentam o Cisarte semanalmente. "A gente tem uma carroça e uma barraca, e vamos mudando de lugar quando queremos. A gente cata reciclável", explicava.
"Allan vai chorar quando cantarem parabéns. Você vai ver", mudava de assunto, ansiosa pelo início do jantar, que teve arroz, bisteca, tutu e salada de maionese. "Ai, bebê, hoje você vai chorar", emendava, falando sozinha enquanto olhava para o marido à distância. Pouco tempo depois, com o salão repleto de gente, todos alimentados, um dos voluntários chamou à frente os aniversariantes do dia. Lá estava Allan, em pé, tímido, ouvindo todos cantarem parabéns. "Sabe o quanto isso é importante? Há pessoas que esquecem a própria data de aniversário. É uma vida difícil. E isso enche o coração deles. Dá um ânimo", comentava a administradora do Cisarte, Luciene Inácio, 54.
Num canto do salão, Manoel acenava, sorrindo. Estava satisfeito com a festa que ajudou a montar para os amigos. Ao se aproximar, ouviu a pergunta da reportagem: "o que espera de 2022?". Ainda sorridente, respondeu: "Tudo vai ficar bem. Não tenho como não citar a frase de Dom Evaristo Arns: 'é de esperança em esperança' que a gente vive".
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