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Santa Maria (RS) sofre com mais de 40ºC e encosta em recorde de temperatura

Leonardo Severo Barros, "o catador que tem o sonho de morar no bairro Medianeira", trabalha nas ruas de Santa Maria (RS) - Renan Mattos/UOL
Leonardo Severo Barros, 'o catador que tem o sonho de morar no bairro Medianeira', trabalha nas ruas de Santa Maria (RS)
Imagem: Renan Mattos/UOL

Leonardo Catto

Colaboração para o TAB, de Santa Maria (RS)

17/01/2022 04h01

Santa Maria, 40ºC. Até o mais fiel veranista pode demonstrar aversão ao ar abafado que encobre o município rodeado de morros. As elevações do entorno fazem com que a cidade gaúcha ganhe aspecto de sauna.

Na Praça Saldanha Marinho, bem no centro da cidade, o domingo de calor quase recorde — se os termômetros tivessem marcado 42°C, seria o janeiro mais quente da história do município — foi solitário.

Durante a semana, quem precisa cruzar o centro também passa pela praça. Sob um céu sem nuvens, no domingo, o movimento se resumiu a algumas pessoas em situação de rua que recebiam marmitas de voluntários e já saiam dali em busca de alguma sombra.

Guerra de temperatura

Um exército de um homem só foi exceção lutando contra o calor na praça. De boné, camiseta, calça e máscara camuflados, Leonardo Severo Barros, 22, se identifica como "o catador que tem o sonho de morar no bairro Medianeira", na região central da cidade. Ele ainda carregava uma farda militar com o termo "catador" — trabalho que executa desde os 8 anos - onde seria a patente. Além disso, a caminhada dele destoa bastante da marcha disciplinar de um soldado.

Segundo ele, a vestimenta é para chamar atenção enquanto trabalha procurando latinhas de alumínio e papelão para revender. A cidade é um dos maiores polos militares do Brasil.

O carrinho em que ele empilha o material é carregado pelas subidas irregulares de Santa Maria. O que o move, ele diz, é o sonho. O bairro específico é um acordo com a noiva.

A futura casa, espera Leonardo, terá ar-condicionado para encarar os dias quentes de Santa Maria. Ele morava na Vila Noal, próxima ao centro da cidade. Lá, tinha apenas um ventilador. Saiu de casa por um desentendimento com o padrasto, com quem dividia a residência.

A rotina virou alternar entre a casa da família da noiva e a rua. Sai durante o anoitecer com o carrinho e visita os contêineres de lixo, sempre com a farda completa. Apesar de sonhar com o ar-condicionado, na rua, ele não se queixa do calor no corpo. Leva uma garrafa térmica com suco de uva e bebe em um copo improvisado. Recusa álcool e drogas que a rua lhe oferece. "Meu vício é correr atrás do meu sonho e tomar uma Coca bem gelada."

Ele também prefere café com gelo quando a temperatura sobe. E até a comida que leva, Leonardo pede para colocar um pouco na geladeira de restaurantes da avenida Rio Branco, próximo da praça. "No calor, é melhor comer gelada."

Apesar do tom quixotesco, a inspiração que ele carrega ao guiar o carrinho de reciclagem é MC Marks e não a obra de Miguel de Cervantes. Como o sonho é ter casa própria, independentemente do desafio da temperatura, ele entoa: 'Tô pensando em me mudar daqui/Me jogar, ir pro lado de lá/ Aonde tem fartura, onde tem estrutura/ E tá tendo dinheiro pra gastar".

O catador Leonardo Severo Barros, debaixo do sol de 40ºC desde domingo (16), em Santa Maria - Renan Mattos/UOL - Renan Mattos/UOL
Leonardo Severo Barros, debaixo do sol de 40ºC do domingo (16) em Santa Maria (RS)
Imagem: Renan Mattos/UOL

'A gente se vira'

Longe da praça, o calor também maltrata. No começo da tarde, a estação meteorológica do Aeroporto Municipal de Santa Maria indicou máxima de 40,2°C. Na Vila Kennedy, zona norte da cidade, Simone Pádua Chiapa e Cristiano Rondon buscavam fugir da temperatura alta. Botaram uma piscina de plástico de mil litros na frente de casa. Acima da água, uma mangueira faz as vezes de cascata.

Casados há 30 anos, Simone e Cristiano, ambos com 46 anos, sempre viveram na Kennedy e costumavam montar a piscina no verão, mas nunca viram o calor como agora. Não que isso seja motivo de reclamação. Simone se considera veranista. "A gente fica mais ativa, com vontade. Inverno é de ficar encolhido." Ela tem razão. A cidade que passa dos 40ºC em janeiro registrou neve e chuva congelada seis meses atrás.

De folga do trabalho no domingo (16), a vigia Simone Pádua Chiapa e o motorista Cristiano Rondon montaram uma piscina na frente de casa para aplacar o calor em Santa Maria (RS) - Renan Mattos/UOL - Renan Mattos/UOL
De folga do trabalho, a vigia Simone Pádua Chiapa e o motorista Cristiano Rondon montaram uma piscina na frente de casa para aplacar o calor
Imagem: Renan Mattos/UOL

Cristiano não tem uma estação preferida, mas teoriza sobre o clima. Não é referente ao aquecimento global. Para ele, a única forma de aproveitar uma estação é com dinheiro. "Verão e inverno é para quem tem grana. A gente se vira nos 30", diz, apontando para a piscina. Foi ideia dele incrementar, no domingo mesmo, a mangueira em cima da água. Entre uma virada e outra no espeto do churrasco, "montou" a estrutura onde apoiaria a saída de água.

O casal não conta o tempo para ficar na piscina. Ela trabalha como vigilante, e ele, como motorista. No domingo, com os dois de folga, a resposta para até quando ficariam na água era uníssona: "nós se vamos aqui". O banho de piscina vai longe.

Cristiano Rondon, que colocou uma piscina na calçada de casa para se refrescar na Vila Kennedy, em Santa Maria (RS) - Renan Mattos/UOL - Renan Mattos/UOL
Cristiano Rondon, na piscina colocada em frente de casa, em Santa Maria (RS)
Imagem: Renan Mattos/UOL

Onda seca

A massa de calor que passa pela América do Sul há uma semana fez as temperaturas se elevarem até 15 graus acima da média para essa época do ano. Em Santa Maria, a madrugada de domingo teve a temperatura mínima mais alta da cidade para o mês de janeiro: 28°C. Na fronteira oeste, ao lado da Argentina, as máximas ainda podem chegar a 45°C.

O recorde histórico em Santa Maria foi em janeiro de 1914, com 41,2°C. O Inmet (Instituto Nacional de Meteorologia) prevê chuva para o Rio Grande do Sul. Mas antes, a previsão é de quebra de recorde nesta segunda-feira (17), com a possibilidade de fazer 43°C.

Além da cidade, o campo vive uma das piores estiagens no estado. Santa Maria e outras 30 cidades do entorno do município já decretaram situação de emergência por falta de água. Fosse Jorge Ben Jor santamariense, a prece seria para a chuva começar.