Pânico em Alphaville: lama da mineração isola condomínio na Grande BH
Caía um aguaceiro em Alphaville - Lagoa dos Ingleses, quando a cabeleireira Adriana Ferraz, 47, ouviu a sirene. "Gente, que barulho é esse?", perguntou às colegas e clientes do salão de beleza na área comercial do condomínio de luxo em Nova Lima, a 60 km do centro de Belo Horizonte. Ninguém sabia.
Lucas dos Santos, 32, supervisor de manutenção em um hotel no condomínio, também ouviu a sirene. De onde estava, observava a tremenda barragem da mina de Pau Branco da mineradora francesa Vallourec, e associou o barulho a um possível desastre. "Vou subir pro topo do prédio, porque deu ruim", comentou, meio brincando, meio a sério, ao recepcionista.
Já nas casas de Ana Vilma, 56, e sua vizinha Renata Cantini, 50, à beira da lagoa que dá nome ao condomínio, ruído algum chegou — entre a área comercial e as residências amplas, ao estilo estadunidense, um morro arborizado barra a passagem do som. Assim, seguiram seus afazeres, até que as primeiras mensagens pipocaram nos grupos de WhatsApp.
Naquela manhã de sábado, 8 de janeiro, um dique da barragem de Pau Branco transbordara, interditando o trecho da rodovia BR-040 que dá acesso ao Alphaville.
Vídeos que circularam na internet, mostrando a quantidade colossal de lama arrastando caminhonetes e arrasando a mata que margeia a pista, levaram muitos moradores a especular que a barragem havia se rompido. Não era o caso, embora, nas horas seguintes, a ANM (Agência Nacional de Mineração) tivesse classificado a estrutura no nível 3 de emergência — quando a "ruptura [é] iminente ou [está] em curso".
Sem terem como ir para BH, os cerca de 7 mil moradores e os aproximadamente 5 mil funcionários (entre seguranças, garis, babás, empregadas domésticas e trabalhadores do comércio) ficaram ilhados no condomínio. Junto deles estavam os caminhoneiros e os demais viajantes cujo caminho fora barrado pela lama.
Ilha intranquila
A Lagoa dos Ingleses consiste num reservatório de água cujo propósito primeiro, na década de 1930, era gerar energia hidrelétrica para a mineradora britânica Saint John Del Rey Mining Company, atual AngloGoldAshanti, que minerava o quadrilátero ferrífero de Minas Gerais.
Em 1999, nasceu a ideia de converter os terrenos no entorno da lagoa num bairro fechado. O empreendimento associou-se ao padrão Alphaville Urbanismo, cujo "conceito", diz o site do condomínio, "significa viver em um lugar tranquilo, bonito, civilizado, com bons serviços".
Numa das imobiliárias locais, uma casa na Lagoa dos Ingleses é negociada por não menos que R$ 3 milhões. Um lote custa, em média, R$ 1,1 milhão. No fim de semana de 8 de janeiro, as coisas não estavam tranquilas em Alphaville.
Quando as primeiras notícias e boatos começaram a circular, conta o servidor aposentado do Ministério Público Ricardo Diniz, 61, presidente da Associação dos Moradores de Alphaville, houve quem fizesse as malas para deixar o condomínio. Logo, contudo, ficou claro que sair dali não era uma opção.
No salão de beleza onde trabalha Adriana, manicures e cabeleireiras recebiam ligações dos parentes. Uma adolescente chegou a ligar desesperada, perguntando se a mãe estava viva. Sem informações precisas, mas certas de que não voltariam para casa naquele dia, o pânico se espalhou entre as funcionárias, exaustas do trabalho e sem saber como iriam comer e onde passariam a noite.
Lucas, por sua vez, não teve um minuto de descanso no hotel. Num fim de semana chuvoso como aquele, quatro ou cinco quartos estariam ocupados; na noite de sábado, porém, todos os 100 apartamentos tinham hóspedes, e uma fila de vinte metros se formara em frente à recepção, onde o tempo de espera de atendimento ultrapassava três horas. Alguns quartos foram reservados, pela direção do hotel, para alojar funcionários do supermercado e da doceria que operam no condomínio.
Lucas varou a madrugada, trabalhando por mais de 36 horas. Sem exagero, pode dizer que envelheceu um ano naquele fim de semana — pois fez aniversário no dia 9, quando o lobby estava repleto de clientes, alguns dos quais choravam e discutiam aos gritos. Quem não conseguia uma vaga se resignava a dormir dentro dos carros, no estacionamento do hotel.
Outros se arriscaram a ir embora, como Pedro Vinícius, 35, que trabalha em uma loja de produtos orgânicos no condomínio. De moto, esperou a chuva baixar e foi desviando do lamaçal. Quando, na segunda-feira (10), soube da família que morreu soterrada em um carro em Brumadinho, a poucos quilômetros de Alphaville, reconheceu que sua ousadia fora "uma loucura". Também essa família buscava uma rota para contornar o bloqueio da BR-040.
Crise de abastecimento
No supermercado do condomínio, a situação era caótica. Prevendo que o cerco duraria dias, moradores correram às prateleiras. Os caixas e empacotadores, sem terem quem os rendessem, fizeram jornadas triplas de trabalho.
O drama sensibilizou os moradores, que criaram uma rede solidária para amparar os funcionários e os demais ilhados.
Daniele Ávila, 45, ajudou a recolher mantimentos, que foram distribuídos ao longo do sábado e do domingo. Ela segue direcionando as doações para as cidades próximas. Já as vizinhas Ana e Renata equiparam, com colchões e cobertores, um dos salões de festas do local, que alojou os garis presos pela lama. Um deles, que preferiu não dar entrevista, é morador do distrito de Honório Bicalho, em Nova Lima, e durante o domingo a casa de sua família ficou completamente alagada.
O carioca Vitor Lecas, 40, dono de um restaurante em Alphaville, coordenou os esforços de sua cozinha para o preparo de feijão tropeiro para mais de 60 pessoas ilhadas. Tendo se mudado para lá em busca de uma vida tranquila, ele reflete sobre o ineditismo da situação para moradores como ele. "BH sofre muito nesses meses com as chuvas, mas em Alphaville sempre me senti seguro, nunca passei nenhum aperto. Estar no centro do acontecimento dessa vez traz uma série de reflexões. Um sentimento simultâneo de impotência e desespero."
Adriana e suas colegas se hospedaram na mansão de uma das clientes do salão de beleza. Deslumbraram-se com a escadaria suntuosa, a ilha de granito na cozinha, os colchões tão macios e o vinho do Porto que, pela primeira vez, provaram. "Ficamos até emocionadas com o carinho dos moradores", conta, sem disfarçar a empolgação.
Acerto de contas
Em janeiro de 2021, a Vallourec conseguiu um licenciamento, junto ao governo de Minas para ampliar a barragem de Pau Branco. Conforme informou o site independente Observatório da Mineração, a licença foi expedida de modo expresso, e aos técnicos e ambientalistas do Conselho de Atividades Minerárias teriam sido dados cinco dias úteis para a análise das mais de 400 páginas do laudo técnico apresentado pela empresa.
Por determinação legal, em casos como esse, a mineradora deve consultar as comunidades do entorno sobre a conveniência das obras. A diretoria do Alphaville afirma não ter sido consultada, mas avisada sobre as obras quando estas já estavam em andamento.
O condomínio estuda entrar como amigo da corte na ação do Ministério Público contra a Vallourec. Parte dela foi acatada pela primeira instância da Justiça, que bloqueou R$ 1 bilhão da empresa, paralisou suas atividades no Estado e a obrigou a tomar providências "para conter os danos ambientais e sociais" causados pelo vazamento. Além disso, o governo de Minas multou a mineradora em R$ 288 milhões, por degradar a paisagem e poluir os rios.
Procurada pelo TAB, a mineradora afirmou que "o processo de licenciamento ambiental de ampliação da Pilha Cachoeirinha, aprovado pela CMI (Câmara de Atividades Minerárias) do COPAM (Conselho Estadual de Política Ambiental/MG), durou quatro anos e passou por todos os trâmites e etapas legais". Quanto à segurança da estrutura, a Vallourec afirma que o dique "operava em nível zero de criticidade e dentro dos parâmetros previstos na legislação", e que "se esforça para minimizar os transtornos e restabelecer a normalidade".
Na segunda (10), a BR-040 foi liberada e a ANM baixou o nível de emergência para 2, que indica a necessidade de reparos em anomalias "não controladas" e "não extintas" na barragem.
Adriana e Lucas finalmente puderam voltar para as suas casas e descansar.
Já na quarta-feira (12), retornaram às suas funções no condomínio, mas temem que algo pior que o transbordamento de um dique aconteça.
Entre os hóspedes do hotel, no domingo, havia engenheiros da Vallourec que sobrevoaram a barragem para uma vistoria, segundo Lucas dos Santos. Eles garantiram a Lucas que, com os novos reparos, não há risco de rompimento. O rapaz, no entanto, desconfia. "Imagino que vão manter tudo em segredo até o dia que acontecer. Como ocorreu em Mariana e em Brumadinho."
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