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Com cópias à venda por R$ 410, Tratado de Tordesilhas é mantido em museu

Archivo General de Índias, em Sevilha, na Espanha, onde fica uma cópia oficial do Tratado de Tordesilhas - Hanna Thuin
Archivo General de Índias, em Sevilha, na Espanha, onde fica uma cópia oficial do Tratado de Tordesilhas Imagem: Hanna Thuin

Carina Ávila

Colaboração para o TAB, de Sevilha (Espanha)

19/02/2022 04h01

Do lado de fora de um prédio majestoso, centenas de turistas percorrem as ruas dos principais monumentos históricos de Sevilha, cidade ao sul da Espanha. Em meio ao vai e vem, grupos se detêm para assistir a apresentações de dançarinas de flamenco, músicos, estátuas vivas, patinadores radicais e um indivíduo especializado há anos em dar sustos nos passantes. As laranjeiras carregadas tornam a paisagem ainda mais viva, quase de se pegar.

Do lado de dentro, silêncio total.

O interior do Archivo General de Indias (Arquivo Geral das Índias, em português) contrasta com a vida pulsante do exterior. O prédio avermelhado, construído em 1584, reúne os principais documentos da época das Grandes Navegações e colonização das Américas. Há mais de 43 mil manuscritos originais ali dentro. Mesmo com entrada gratuita, o local não enche. Poucos turistas se interessam por papéis.

Dentro do edifício de dois andares, o piso parece um tabuleiro de xadrez, com azulejos pretos e brancos alternados. Escadas de mármore marrom levam ao segundo andar, onde várias janelas em forma de arco revelam um pátio iluminado. Distribuídos por todo esse espaço, oito quilômetros de estantes de ferro abrigam milhares de pastas. Para alívio dos pesquisadores, os arquivos também se encontram digitalizados na página do museu na internet.

Alguns documentos, contudo, recebem destaque especial. Entre eles, um amplamente estudado no Brasil, com presença garantida nos livros didáticos do ensino fundamental ao ensino médio. A poucos passos da entrada, uma redoma de vidro expõe o Tratado de Tordesilhas, acordo que começou a determinar o contorno que o Brasil tem hoje.

Existem dois arquivos originais do tratado, que contém 12 páginas de texto corrido: a versão em português é a que está em Sevilha; a versão em espanhol está no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa - houve um intercâmbio idiomático. Em 2007, ambos foram declarados "Memória do Mundo" pela Unesco, depois de uma solicitação conjunta feita por Espanha e Portugal. "É patrimônio público da humanidade, de valor inestimável", afirma Adauto Cândido Soares, coordenador do setor de Comunicação e Informação da Unesco no Brasil.

Ao longo dos séculos, enquanto valeu, diversas cópias oficiais percorreram o planeta, informando os detalhes do tratado às diversas monarquias e repúblicas da Europa.

Tratado de Tordesilhas exposto no Archivo General de Índias, de Sevilha - Carina Castro Ávila/UOL - Carina Castro Ávila/UOL
Tratado de Tordesilhas exposto no Archivo General de Índias, de Sevilha
Imagem: Carina Castro Ávila/UOL

Sem dedo do Papa

O Tratado de Tordesilhas, assinado em 7 de junho de 1494 pela rainha Isabel 1ª de Castela e seu marido, rei Fernando 2º de Aragão, da Espanha, e pelo rei João 2º, de Portugal, foi um acordo entre as duas grandes potências navais do século 15, que repartia entre elas o mundo a ser "descoberto".

O documento previa a divisão das terras segundo uma linha meridiana que passava a 370 léguas a oeste do Arquipélago de Cabo Verde. Assim, a linha passaria, hoje, de Belém (PA) a Florianópolis (SC). Tudo o que houvesse a oeste dessa linha seria próprio da Coroa espanhola; a leste seria da portuguesa.

Antes da assinatura do tratado, contudo, outros documentos expedidos pelo Papa já haviam tentado dividir as terras colonizadas. Eram as "bulas pontifícias". Diversas bulas ao longo da História chancelaram com benefícios espirituais as atividades de exploração comercial em toda a orla do Atlântico.

"A intermediação diplomática do papado era parte da guerra plurissecular contra os 'infiéis' islâmicos e judeus", explica Iris Kantor, professora do Departamento de História da USP (Universidade de São Paulo).

O Tratado de Tordesilhas foi firmado sem a participação do Vaticano, o que era novidade. Isso porque o Papa da época, Alexandre 6º, por ser espanhol, era grande aliado da Coroa da Espanha. Nessas condições, Portugal preferiu negociar a matéria diretamente com seu rival ibérico, prescindindo da mediação de Roma.

Os soberanos das duas Coroas, então, reuniram-se em Tordesilhas, município espanhol que hoje tem cerca de 8.000 habitantes, e assinaram o tratado há quase 528 anos.

"O acordo impediu um conflito entre as duas nações ibéricas e consagrou o princípio da livre movimentação de conquista e exploração desses dois países nos domínios reservados", afirma Estevão Martins, professor do Departamento de História da UnB (Universidade de Brasília).

O Tratado de Tordesilhas teve vigor até 1750, quando as monarquias assinaram o Tratado de Madri, atualizando as fronteiras e regulando conflitos na América do Sul.

Cópia de trecho do Tratado de Tordesilhas - Divulgação - Divulgação
Cópia de trecho do Tratado de Tordesilhas
Imagem: Divulgação

Limites da terra e do céu

Em grandes sites de compra, é fácil encontrar cópias do Tratado de Tordesilhas à venda. O preço médio é de 70 euros (cerca de R$ 410). Também são vendidas moedas comemorativas para colecionadores, selos e outros artigos referentes ao documento.

Segundo Carlos Ziller, professor de história da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), a principal consequência do tratado é perceptível ainda hoje pela partição linguística da América do Sul. "Mesmo depois de terem perdido a primazia, as duas grandes potências marítimas do século 15 guardaram aproximadamente entre elas os limites idiomáticos impostos pelo documento."

Muitos historiadores veem no Tratado de Tordesilhas uma prefiguração espacial do que veio a ser o Brasil. Entretanto, para a professora Iris Kantor, trata-se de um anacronismo. "A linha imaginária era 'indemarcável'; nunca houve consenso sobre a localização de qual das ilhas do arquipélago de Cabo Verde [a partir da contagem das 370 léguas] deveria ser feita."

Mais de cinco séculos depois da assinatura, Kantor enxerga, porém, um paralelo com outra disputa. "A corrida espacial iniciada nos anos 1960 reatualiza essas polêmicas. Atualmente, vivemos um novo momento de debate sobre a partilha do espaço sideral, sobre o direito dos Estados e das corporações empresariais de explorarem comercialmente os corpos celestes e o espaço."

Discussões sobre privatizar a Lua para resolver o problema da fome na Terra e o novo gás da corrida espacial, dado por bilionários como Elon Musk, acusado de querer "monopolizar" as viagens interplanetárias, atualizam uma conversa milenar sobre uma possível "ética" na conquista territorial, que o Tratado de Tordesilhas, tranquilamente depositado em Sevilha, tentou apaziguar.