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Por amor ao Brasil, italiano batizou a própria rua com nome de Chico Mendes

Amedeo Cevolani, entre a filha Annamaria e a ex-mulher, Maria Laurinete, em frente à placa da rua Chico Mendes, em Poggio Rusco, na Itália - Paulo Malvezzi/UOL
Amedeo Cevolani, entre a filha Annamaria e a ex-mulher, Maria Laurinete, em frente à placa da rua Chico Mendes, em Poggio Rusco, na Itália Imagem: Paulo Malvezzi/UOL

Do TAB, em São Paulo

10/04/2022 04h01

Enquanto a pequena cidade de Lagarto, no interior de Sergipe, se organizava para o casamento de Maria com Amedeo, o noivo italiano descobria uma história que o impressionou. Uma amiga conterrânea contou por telefone: dois anos antes, naquele Brasil recém-conhecido por ele, haviam matado um defensor da floresta amazônica.

Para alguém como Amedeo Cevolani, 79, criado no campo, homem que morre defendendo a natureza deve ser honrado como um "patriota brasiliano". A amiga falava de Chico Mendes, o ambientalista e líder dos seringueiros no Acre, morto em dezembro de 1988, a mando do fazendeiro Darly Alves da Silva.

"Quando eu soube da notícia, procurei a história dele. Arranjei um livro e li, mas não sabia falar nenhuma palavrinha em português. Pedi a um padre que traduzisse e mandei tudo que consegui para Poggio Rusco", lembra-se, mencionando sua cidade natal de quase 7 mil habitantes, no norte da Itália.

Amedeo, de empolgado que estava, pediu à prefeitura que colocassem o nome da rua de casa de Chico Mendes. A burocracia foi toda resolvida a distância em dois meses. Como a rua não tinha nome, o pedido foi aprovado por unanimidade. Apaixonado pelo Brasil e por uma brasileira, ele decidiu que, assim, faria da pequena estrada onde vive um naco do país quente do outro lado do oceano.

O aposentado e ex-agricultor Amedeo Cevolani, 79 - Paulo Malvezzi/UOL - Paulo Malvezzi/UOL
O italiano Amedeo Cevolani, 79
Imagem: Paulo Malvezzi/UOL

Uma mudança

O aposentado e ex-agricultor Amedeo Cevolani é um senhor baixinho e de cabelos brancos. Seu avô morou durante 20 anos em uma fazenda de café em Franca (SP), mas ele conheceu o Brasil somente em 1988. A viagem foi a convite de um primo, Mário Rino Sivieri, padre missionário que morava em Lagarto desde a década de 1960 e que se tornou bispo em 1997. Passou ainda por Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Maranhão, Alagoas, Pernambuco, Ceará e Maranhão.

"Era um país muito pobre, mas quanto mais pobre, mais hospitaleiro. 'Me enamorei do Brasil", lembra, com sotaque arranhando o português. Frequentando a sorveteria próxima à paróquia onde o primo celebrava missa — um dos poucos espaços de lazer na cidadezinha sergipana —, o italiano conheceu Maria Laurinete, com quem manteve contato através de cartas e telefonemas, mesmo de volta à Itália. Em 1990, Amedeo foi novamente ao Brasil e, dessa vez, decidiu se casar com a moça, que tinha 18 anos.

"Ele era uma pessoa alegre, que me dava muita segurança", conta a sergipana. Laurinete, 48, chegou à Itália há três décadas. Mudou-se do interior do Nordeste brasileiro para o norte italiano às vésperas do Natal, e logo precisou se adaptar a um país completamente diferente do seu. "Vi do avião aquela coisa branca, e disse: 'Ah, meu Deus, tá cheio de areia', mas era neve. Na estrada, olhando aquelas plantas secas, pensava: 'Por que está tudo morto? Mas é que, com o frio, as folhas caem."

Maria foi a segunda brasileira a chegar em Poggio Rusco. Por isso ganhou uma festa de boas vindas na cidade. "O prefeito fez um evento. Todo mundo queria me ver", lembra-se, sorrindo. Ela e Amedeo tiveram dois filhos: Cláudio, 31, e Annamaria, de 27. A menina nasceu no dia da vitória do Brasil sobre a Itália, na Copa de 1994. "Do quarto da maternidade, eu vi um senhor comemorando os gols. De repente, ele fechou a janela e silenciou. Aí eu entendi que o Brasil tinha ganhado. Me perguntavam para quem eu torcia, eu dizia 'tanto faz', mas no fundo queria Brasil, né?"

Brasileiro de paixão

Poggio Rusco é uma cidade essencialmente rural. Plantações de soja, tomate e beterraba dividem a paisagem bucólica com pequenas casas e alguns casarões centenários. Muitas construções vazias ou em ruínas denunciam os prejuízos do devastador terremoto de 2016, que deixou mais de 150 mortos no país, e do lento esvaziamento dos pequenos povoados italianos.

A rua Chico Mendes fica afastada do centro. É uma travessa da via Affittanza, entre Carnavale e Pinzone, sem calçamento, que termina abruptamente em meio às lavouras. A única casa ali é a da família de Amedeo. "Quando Maria chegou e viu o nome, ficou emocionada", diz o aposentado.

Amedeo e Maria, no entanto, se separaram em 2015. Ainda assim, mantêm amizade e convívio. Na rústica casa de dois andares, o aposentado mora com o irmão mais velho, Elisbano, 85, e embora a fachada ostente uma bandeira italiana, ele não esconde o grande desejo de viver no Brasil.

"Ele está aqui com o pensamento no Brasil. Toda hora ele telefona para as pessoas que conhece lá", comenta Maria.

O centro da pequena Poggio Rusco, no norte italiano - Paulo Malvezzi/UOL - Paulo Malvezzi/UOL
Centro de Poggio Rusco, na Itália
Imagem: Paulo Malvezzi/UOL
A rua Chico Mendes, no interior da Itália - Paulo Malvezzi/UOL - Paulo Malvezzi/UOL
A rua Chico Mendes, no interior da Itália
Imagem: Paulo Malvezzi/UOL

Um homem reticente

Além da família ítalo-brasileira, Amedeo fez muitos amigos no país de Chico Mendes. Relações que, apesar de muito próximas, não o deixam confortável para dar opinião sobre temas mais "polêmicos" das terras de cá. Nem mesmo sobre a Amazônia, cuja devastação aumentou em níveis alarmantes nos últimos três anos, de acordo com um levantamento do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia).

Em fevereiro, um relatório publicado pela instituição mostrou que, de agosto de 2018 a julho de 2021, o desmatamento da floresta cresceu 56% em comparação com o mesmo período de 2015 a 2018. O Ipam afirma que esse resultado está diretamente ligado ao enfraquecimento da fiscalização naquela região e ao esvaziamento das políticas ambientais no governo Bolsonaro (PL).

"Uma vez perguntei a Dom Mário, que vivia no Brasil [o padre morreu em 2020], sobre a Amazônia. Mas ele disse a mim: 'Olhe, Amedeo, você cale a boca, porque aqui tem muita gente da Itália interessada na madeira'", explica, antes de tergiversar simpaticamente: "Outra pergunta? Já basta?"

Acompanhando o pai na entrevista, Annamaria, filha mais nova do italiano, retomou depois o tema do meio ambiente. Ela tem cidadania brasileira, ama o Brasil ("a cultura, a música, as Havaianas", brinca) e dá aula de português a italianos que querem conhecer o país de sua mãe.

"Eu já sabia a história da placa desde criança, mas com 16, 17 anos, quando a gente começa a entender melhor as coisas, procurei saber sobre Chico Mendes. Achei muito interessante descobrir mais", conta. "Me preocupa muito a situação da natureza. Penso sempre no mundo que quero para mim, para meus filhos e para os filhos dos meus filhos. É tão importante cuidar do planeta."

A placa da rua Chico Mendes, em Poggio Rusco, na Itália - Paulo Malvezzi/UOL - Paulo Malvezzi/UOL
A placa da rua Chico Mendes, em Poggio Rusco, na Itália
Imagem: Paulo Malvezzi/UOL

Ninguém mexe

Chico Mendes, a rua, precisou resistir. Era um dia de inverno de 1990, uma semana depois de a família voltar para a Itália. Depois de longas horas de neve, quando abriram a porta de casa e viraram na esquina, a placa de sinalização não estava mais ali. Fora arrancada por alguém e jogada num córrego.

"Nunca descobrimos que fez aquilo, mas tenho minhas suspeitas", brinca Amedeo, sorrindo na cozinha de casa, acompanhado pela família. "Acho que [a pessoa] pensava: 'Com tanto nome aqui na Itália, tem que colocar um nome do Brasil?'". No mesmo dia, ele providenciou outra placa para repor. Continua intacta.

A via brasiliana de Poggio Rusco foi a primeira na Itália a receber o nome do ambientalista acreano. Hoje, na redondeza, há mais uma Chico Mendes: em Mirandola, a 12 quilômetros. "Esse aqui é um pedacinho de Brasil", resume, orgulhoso, o senhor.

Colaborou Paulo Malvezzi (fotos)