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Perdido na tradução: réu haitiano é absolvido após 16 meses sem intérprete

Marcos de Lima/UOL
Imagem: Marcos de Lima/UOL

Tiago Dias

Do TAB, em São Paulo

21/04/2022 04h01

Numa das salas da 1ª Vara do Júri do Fórum Criminal da Barra Funda, na capital paulista, o haitiano Y. C., 39, estava ansioso. Disparava palavras na sua língua materna diante do júri. Com dificuldade de acompanhar o ritmo, o intérprete de créole ou crioulo haitiano pedia calma com a mão para traduzir corretamente a história contada, mas o réu tinha pressa. Era a primeira vez, após passar 1 ano e quatro meses encarcerado, que ele daria a própria versão para o crime que o levou à prisão em 13 de setembro de 2020.

Segundo o processo, ao qual TAB teve acesso, Y. C. foi preso em flagrante, acusado de matar a esposa. A autoria foi sustentada pelo depoimento dos dois policiais militares que passavam pelo bairro de São Mateus, na zona leste, na hora do homicídio, e pelo depoimento de uma única testemunha ocular, o sobrinho da vítima.

A haitiana de 36 anos foi encontrada desmaiada na calçada da casa, com sangue a tingir a saia florida. Tinha ferimentos na região das costas, barriga e mãos, "aparentemente produzidos por arma branca [faca]", segundo o boletim de ocorrência registrado. Chegou sem vida ao pronto-socorro.

Y. C. estava alterado, com o rosto cortado, e gritava em sua língua. Em português fluente, o sobrinho alegou ter ouvido a briga do casal e, na sequência, visto a vítima já ensanguentada gritar por socorro. Y. C. a teria esfaqueado. Na cozinha havia indícios da versão apresentada: cacos de uma garrafa de aguardente quebrada, manchas de sangue no chão e uma faca dentro da pia.

O caso foi registrado como homicídio qualificado como feminicídio e por motivo fútil. O suspeito, segundo o B.O., exerceu voluntariamente o direito de ficar em silêncio. Em nenhum momento do processo aparece a informação de que o suspeito não falava português ou respondia no idioma majoritário do Haiti. A única exceção passou batido. No formulário sobre fatores de risco, que se tornou praxe durante a pandemia, no campo que questionava a necessidade de tradução para seu devido preenchimento, assinalava-se "sim".

Problema de compreensão

A prisão logo se tornou preventiva e Y. C. foi levado à unidade prisional de Itaí, em São Paulo, exclusiva para estrangeiros no Brasil. O primeiro interrogatório foi marcado no formato virtual em fevereiro de 2021. Tão logo apareceu no vídeo, a juíza pediu para anular a audiência. Foi a primeira a notar que o acusado estava impossibilitado de compreender e de se expressar. Solicitava então um intérprete de crioulo haitiano para o interrogatório.

Os reveses que se seguiram foram kafkianos. Remarcada para abril, a audiência contou com o auxílio de um homem que falava a língua, indicado pelo Consulado do Haiti, mas o tradutor não conseguiu entrar na chamada de vídeo. Quando a conexão foi restabelecida, o defensor afirmou que havia se comunicado com o réu e não havia mais necessidade do intérprete. As testemunhas chamadas para o julgamento, incluindo o sobrinho da vítima, não foram encontradas em seus endereços.

O júri, marcado para 7 de outubro, mais de um ano após a prisão, também não aconteceu. Por um erro comum quando se fala em crioulo haitiano, um intérprete especializado em língua francesa foi chamado, mas logo informou à juíza que não conseguia entender o réu. Embora tenha sua base lexical no francês, a estrutura da língua vem da fon, língua africana do grupo gbe.

A equipe que auxilia os casos no tribunal correu para encontrar o intérprete qualificado para o caso ser finalmente julgado em janeiro de 2022. Não encontraram no Consulado, em ONGs ou centros de acolhimento a estrangeiros. Numa pesquisa no Google Acadêmico, um artigo sobre as semelhanças e diferenças entre o francês e o crioulo haitiano os levaram a um especialista no idioma.

Aluno de mestrado no Departamento de Linguística da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas) da USP (Universidade de São Paulo), Bruno Pinto Silva havia dado uma palestra três dias antes sobre a importância dos intérpretes na inserção dos haitianos, em um seminário na capital paulista, quando recebeu o chamado do tribunal. "Estava explicando a dificuldade em encontrar intérpretes para os mais diversos casos quando recebi aquela ligação falando exatamente a mesma coisa", conta ao TAB.

Perdido na tradução - Marcos de Lima/UOL - Marcos de Lima/UOL
Imagem: Marcos de Lima/UOL

O que pode esta língua?

Bruno Pinto Silva tem 26 anos e um interesse por línguas estrangeiras que vem da infância. Fluente em português, espanhol, inglês, italiano e francês, ele aprendeu crioulo haitiano aos 18, ao se dedicar ao trabalho voluntário com imigrantes que vivem em Jundiaí, no interior de São Paulo, sua cidade natal. Passou a dar aulas e a estreitar relações com a comunidade. Foi até chamado para ser padrinho de um casamento. Da experiência, nasceu o blog "Aprenda Crioulo Haitiano", referência de pesquisa sobre o idioma.

"A imagem que tenho dos haitianos é de um povo muito trabalhador. Eles querem aprender português, estão interessados, mas o movimento contrário é preciso", ele explica. "Chego aos problemas, entendo o contexto porque falo a língua. Há linguistas que pesquisam, mas não falam. Faz toda a diferença."

Formado em tradução e interpretação em 2018, Silva focou no idioma em seu mestrado, com uma pesquisa sobre a comunidade de haitianos no bairro de Perus, na zona norte de São Paulo. Já havia tido experiências na Justiça, servindo de intérprete em casos voltados à infância e juventude, como guarda de filhos. Todos trabalhos voluntários, nada comparado ao caso explicado na ligação.

"Os intérpretes estão preparados para lidar com questões fortes — inclusive, por ética profissional, se a pessoa não se sente apta para atuar, ela vai recusar. Foi algo impactante saber desse caso, sem dúvida, mas aceitei. Sabia que haveria grande dificuldade de se encontrar outra pessoa", conta.

Tradutor e intérprete, Bruno Pinto Silva foi a voz de haitiano diante do júri popular - Acervo pessoal - Acervo pessoal
Tradutor e intérprete, Bruno Pinto Silva foi a voz de haitiano diante do júri popular
Imagem: Acervo pessoal

O julgamento

O encontro do intérprete com o réu aconteceu minutos antes do julgamento, numa sala reservada. Alheio ao movimento, Y. C. só mudou de expressão quando notou que aquele rosto novo falava sua língua. "Ele começou a responder eufórico e rápido. Tive que pedir para que falasse mais devagar", conta Silva. Por meio de seu tradutor, Y. C. indicou ao defensor que aquela seria a primeira vez que poderiam realmente ouvi-lo. Logo contou sua versão, repetida mais tarde em frente ao júri, durante cinco horas de depoimento.

Disse que era casado havia oito anos e que, no fatídico dia, houve sim uma briga, após ele ter se atrasado para ajudar a esposa a carregar as compras do mercado. A discussão escalou. A mulher então teria quebrado a garrafa de aguardente e cortado sua face.

O sobrinho logo interveio com um martelo e um caco de vidro e foi para cima de Y. C. Ao júri, o réu mostrou as marcas na mão, ao alegar que estava se protegendo dos golpes. Para apartar, a esposa teria entrado no meio dos dois, quando foi atingida pelo sobrinho com um caco de vidro. A faca, cuja imagem está anexada ao processo, teria sido usada pela esposa para cortar o pano para estancar o sangue no rosto de Y. C.

Usando a voz de Silva, Y. C. deu detalhes sobre a posição da vítima na hora dos golpes e se emocionou quando questionado se poderia acidentalmente ter golpeado a esposa. Aos prantos, disse que nunca levantou a mão para a mulher, com quem tinha uma filha de sete anos, da qual desconhecia o paradeiro desde o dia da prisão. "Quando soube que ela tinha falecido, não consegui acreditar", relatou.

O promotor notou que os detalhes condiziam com as notas e provas coletadas pela perícia. Havia também incoerências no relato do sobrinho, que não chegou a ir à delegacia no dia da morte para prestar depoimento e nunca mais foi localizado. Descobriu-se depois que, diferentemente do réu, a testemunha principal tinha passagem pela polícia. Com aquele depoimento inédito de Y. C., o promotor reconheceu haver dúvidas sobre a autoria do crime. O júri popular então absolveu Y. C. da acusação, após ele ter ficado 16 meses preso, com base no princípio mais antigo da Justiça, o chamado "in dubio pro reo", expressão latina entendida em todo o mundo que significa "na dúvida, em favor do réu".

Até o fechamento desta reportagem, o Ministério Público não informou se há outro inquérito ou investigação para apurar a morte da haitiana. Procurada também pelo TAB, a Defensoria Pública de São Paulo não se manifestou por não ter autorização do haitiano para falar de seu processo judicial.

Perdidos na tradução

Y. C. foi posto em liberdade em 27 de janeiro de 2022 e levado pela polícia a um Centro de Referência e Atendimento para Imigrantes. Hoje ele reside no Sul do País.

Por áudios de Facebook, traduzidos por Silva, ele diz que deixou São Paulo após receber ameaças de morte de familiares e da vizinhança. Mesmo com a reviravolta, alguns acreditam que ele seja o culpado. Por causa da barreira da língua, diz não ter conseguido reaver sua carteira de trabalho e seu passaporte. Sobre a filha de sete anos, disse que ela foi levada para a Guiana Francesa após a tragédia.

Segundo levantamento feito pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, entre 2011 e 2020, residem no Brasil aproximadamente 149 mil haitianos. Ao todo, são 1,3 milhão de imigrantes recentes no País — e incontáveis casos em que a tradução se perde.

"Compreender português é uma coisa, mas se expressar é outra, são habilidades bastante independentes. O Brasil aceitou acolher, mas não criou a estrutura necessária para esse acolhimento", observa o mestrando, citando o Pacto de São José da Costa Rica, da Convenção Americana de Direitos Humanos, que reserva ao acusado de delito o direito "de ser assistido gratuitamente por um tradutor ou intérprete, caso não compreenda ou não fale a língua do juízo ou tribunal".

O serviço está avançado em muitos países da América Latina, mas no Brasil ainda há um vácuo. No Senado, tramita a passos lentos o projeto de lei 5182/2020, que obriga o Estado a prover serviços de interpretação e mediação linguística em órgãos públicos, federais, estaduais e municipais.

"Este caso chega na hora certa para mostrar quantos outros estão sem assistência linguística, inclusive brasileiros indígenas, surdos, comunidades privadas da defesa e do contraditório. Não só na Justiça como nos serviços públicos básicos", explica Sabine Gorovitz, coordenadora do grupo de pesquisa e extensão do Instituto de Letras da UnB (Universidade de Brasília) que ajudou a elaborar o projeto.

"Línguas totalmente desconhecidas e minoritárias agora apareceram na paisagem linguística brasileira. Quem faz esse processo muitas vezes são os filhos, que acabam aprendendo a língua antes dos pais, mas é um trabalho que requer competências e habilidades. Não é só falar as duas línguas. É uma atividade desafiadora em termos linguísticos e transculturais", observa.

Para o intérprete que ajudou o haitiano a ser ouvido diante do júri, esta é a chance de promover uma justiça mais humana. "Quando a gente tiver bem entendido isso, não vamos ter inocentes presos, nem culpados impunes", diz Silva.