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Concessão entrega parque de SP com cara de fazendinha à iniciativa privada

Parque da Água Branca - Camila Svenson/UOL
Parque da Água Branca Imagem: Camila Svenson/UOL

Felipe Pereira

Do TAB, em São Paulo

27/04/2022 04h00

Com cimento para todo o lado, São Paulo parece uma plantação bem-sucedida de prédios. Esse cenário torna o parque com cara de fazendinha situado na zona oeste uma discrepância muito bem-vinda. Em meio a três mil árvores adultas, cavalos são adestrados e galinhas, patos e pavões caminham livres entre os visitantes.

Os cavalos são soldados e servem à Polícia Militar. No caso das aves, não há serviço militar obrigatório. Elas ficam de boas ciscando a terra e olhando para os humanos na esperança de sobrar uma migalha ou lançarem grãos de pipoca. Sempre sobra e isto enfurece a veterinária Terezinha Knöbl, professora da USP e responsável pelo cuidado dos animais.

"Fico indignada que dão pipoca para o pavão. Depois, vejo um rim gigante na necropsia", reclama, explicando que as aves são menos tolerantes ao sal.

Vocação agrária

O Parque da Água Branca foi criado em 1929 com vocação agrária. Tanto que um dos prédios foi desenhado para ser um galinheiro de luxo. Chamava-se Palácio das Aves. Local amplo como um casarão, tem vidraças e fica num nível acima da calçada por onde os pedestres caminham.

Mas, com o passar do tempo, as galinhas perderam a área nobre. A construção mudou até de nome e hoje se chama pergolado. As telas foram retiradas e o interior não tem mais poleiros para as aves, foi povoado por bancos. No espaço que restou livre, o bicho homem estica tapetinhos.

"Agora o pessoal faz ioga aos finais de semana", conta Terezinha.

Como se vê, o parque já enfrentava suas questões quando calhou de ser concedido à iniciativa privada — o contrato será assinado no próximo mês. Numa época em que o tema animais se tornou tão caro, o assunto é acompanhado de perto. Está no edital que os bichos devem ser mantidos e o consórcio que assumirá a gestão se comprometeu a seguir o estabelecido no documento. O compromisso, entretanto, não encerra as polêmicas.

Parque da Água Branca - Camila Svenson/UOL - Camila Svenson/UOL
Criado em 1929, o Parque da Água Branca tinha no projeto um galinheiro de luxo; não tem mais
Imagem: Camila Svenson/UOL

A natureza como ela é

Os pintinhos são os animais mais vulneráveis do parque. Não são raros os casos de crianças levando os filhotes para casa. "Já houve inúmeros flagrantes de instrutores. Eles dão orientação, mas ainda acontece", afirma Terezinha.

Também há ameaças naturais. Galos cantando indicam a presença de gaviões que atacarão se houver oportunidade. Mas o mais chocante para os visitantes é convivência com os patos. Eles são onívoros, ou seja, comem vegetais e carnes.

Parque da Água Branca - Camila Svenson/UOL - Camila Svenson/UOL
Crianças brincando no Parque da Água Branca, na zona oeste de São Paulo
Imagem: Camila Svenson/UOL

Ocorre de crianças vivendo um cenário de desenho da Disney enquanto brincam com os animais assistirem os patos abocanharem os pintinhos. "Quando acontece, as pessoas não querem ver, mas de vez em quanto eles pegam os pintinhos", relata a veterinária.

O mundo encantado se despedaça. É como se o Pato Donald devorasse o Piu-Piu. O desenho da Galinha Pintadinha vira documentário do Discovery Selvagem. Terezinha lamenta que aconteça, reconhece que é desagradável para as famílias assistirem, mas explica que é da natureza do pato.

O parque tem cerca de 1,2 mil animais distribuídos da seguinte forma: 800 galinhas, 240 patos, seis galinhas d'Angola, quatro gansos e dois pavões.

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Convivência com os patos é complicada: onívoros, eles comem vegetais e carne (inclusive pintinhos)
Imagem: Camila Svenson/UOL

O galinheiro da discórdia

Espécie mais numerosa do Água Branca, as galinhas demandam maiores atenções. Durante a pandemia, elas ficaram sem os cuidados dos professores e estudantes do curso de Medicina Veterinária da USP, com o qual o parque tem convênio desde 2017. O resultado foi o aumento da incidência de vermes, piolhos e da população.

A quantidade chegou a 1,2 mil, número excessivo afirma Terezinha. A veterinária, que tem mestrado e doutorado relacionado a aves, explica que a lotação máxima para haver conforto é de 800 animais. A partir desse limite, o ambiente do parque se degrada e as galinhas têm qualidade de vida prejudicada.

A solução foi doar 600 animais para um proprietário que preencheu uma série de requisitos — o principal era a proibição do abate. Os demais itens consistiam em haver espaço para as galinhas, garantia de qualidade de vida e ficar a pelo menos 10 km de uma granja. As aves foram transferidas para Mongaguá, cidade do litoral paulista onde fica o sítio do vencedor do edital público.

Foi a segunda transferência de galinhas. A primeira ocorreu em 2018 e teve a mesma motivação, superpopulação. A retirada dos animais aconteceu um ano depois do começo do convênio do parque com o curso de Medicina Veterinária da USP. Terezinha conta que a avaliação inicial mostrou que as aves estavam em sofrimento.

Muitas tinham doenças e estavam cegas. Também foi verificado que estavam danificando a vegetação que protege as nascentes existentes dentro do Água Branca. Assim, foi instituído o controle populacional. Mas, como o tema animais desperta paixões, toda a medida é seguida de protestos aguerridos.

Terezinha Knöbl, veterinária, no Parque da Água Branca - Camila Svenson/UOL - Camila Svenson/UOL
O instinto maternal das galinhas faz elas serem o animal preferido da professora Terezinha Knöbl
Imagem: Camila Svenson/UOL

A manutenção da população envolve coletar e destruir os ovos e a professora ouviu uma aluna vegana reclamar que estavam impedindo que a natureza seguisse seu curso. Em tempos de fome, há questionamento sobre quebrar ovos que poderiam alimentar muita gente.

Terezinha explica que a legislação proíbe a distribuição de ovo galado — quando ocorre a monta do galo. Além disso, alimentos de origem animal precisam passar por processos de inspeção antes de serem consumidos, para evitar a disseminação de doenças.

Outra questão é o confinamento das galinhas. Um local para recolher e realizar tratamento de saúde foi criado no parque: o Espaço Zootécnico, um grande galinheiro em que as aves são vacinadas, tomam vermífugo e passam por exames de fezes e peso.

Terezinha cita que quando o convênio começou, em 2017, a taxa de morte anual era de 10%. Agora, a mortalidade está em 3%. Ela defende prender todas as galinhas e tratar para que os animais fiquem com a saúde em dia. A veterinária sugere que, depois de todas as galinhas estarem sadias, seja feita uma discussão entre manter as aves soltas, presas ou regime híbrido.

"É muito mais bonito ver as galinhas soltas, mas muito mais saudável ter elas fechadas."

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Terezinha defende o cuidado de saúde seguido da discussão se as galinhas devem ficar confinadas, soltas ou em regime híbrido
Imagem: Camila Svenson/UOL

A fuga das galinhas

A criação do Espaço Zootécnico dividiu os frequentadores de parque. Aqueles que não gostaram do confinamento agiram num final de semana. Cocos foram colocados entre o chão e a tela, permitindo que as galinhas fugissem. Com a concessão do Água Branca à iniciativa privada, a questão ganha um novo ator.

A Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente informou que o consórcio que venceu a disputa terá de apresentar um plano de manejo das aves. O Consórcio Novos Parques Urbanos informou ao TAB por e-mail que ainda não assinou contrato e não se manifestaria sobre o plano de manejo.

Mas o consórcio informa que vai cumprir os itens do edital que exigem o cuidado das aves. "Os animais que residem no Parque Água Branca terão seus planos de manejo e bem-estar respeitados", relata um trecho do e-mail.

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Joe, o galo abandonado que virou xodó dos funcionários do Parque da Água Branca
Imagem: Camila Svenson/UOL

Convivência pacífica com novos moradores

A linhagem predominante no parque é garnizé, aves de tamanho menor e que vivem até 16 anos. Com essa vizinhança, Joe chama muita atenção. Ele é um dos animais de granja que foram abandonados no Água Branca. Num dia qualquer de 2017, os tratadores notaram um galo muito maior que os demais.

Ele foi adicionado ao grupo e passou a receber os cuidados que incluem 50 gramas de ração diária — as galinhas comem 1,2 tonelada de ração por mês. Certo dia, o cantar dos galos anunciou gavião na área. O predador foi justamente em Joe.

"Ele só não morreu porque a gente tratou na hora. Mas perdeu um pedaço da crina", conta Terezinha.

Joe se recuperou e virou o xodó da veterinária e dos funcionários do parque. O galo desfila sua imponência entre os prédios do Água Branca, local duplamente tombado pelo órgão estadual e municipal de preservação. Passa por construções baixas de até três andares, a maioria feita ao estilo da Normandia, região da França.

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Imagem: Camila Svenson/UOL
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Hoje, o parque possui 800 galinhas, 240 patos, seis galinhas d'Angola, quatro gansos e dois pavões
Imagem: Camila Svenson/UOL

Há também vitrais em art déco, o que faz todo o sentido porque estilo estava na moda na década de 1920 — o Água Branca foi inaugurado em julho de 1929. Naquela época, um dos passeios mais populares da cidade era visitar o parque a noite para ver as construções.

Surgido como um espaço para feira e exposições, o Água Branca viu essa função acabar em 1979, quando esses eventos foram transferidos para o Centro de Exposições Imigrantes. Nos anos seguintes, os grandes terrenos das fábricas e vilas operárias de sua vizinhança deram lugar a prédios residenciais, shoppings e edifícios comerciais.

O parque permaneceu inviolável como espaço verde. Seus frequentadores querem que ele continue assim, uma fazendinha cheia de animais no meio de São Paulo.


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