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Com aval do dono, catadores 'depenam' casarão chique em bairro de Curitiba

Moradores da ocupação Nova Tiradentes aproveitam peças de duas casas antigas que são demolidas em Curitiba - Theo Marques/UOL
Moradores da ocupação Nova Tiradentes aproveitam peças de duas casas antigas que são demolidas em Curitiba
Imagem: Theo Marques/UOL

Bruna Bronoski

Colaboração para o TAB, de Curitiba

28/04/2022 04h01

Entrando no casarão de arquitetura modernista, construído há cinco décadas, Beatriz Fabrício, 28, solta seu entusiasmo em sorriso: "Ai, que lindo esse banheiro, é todo rosa!". A catadora de recicláveis logo iria constatar, ao circular pela casa, que todos os seis banheiros do imóvel eram monocromáticos: rosa, azul, amarelo. Era a moda da construção civil de luxo dos anos 1970.

Beatriz (a Bia) e mais 15 pessoas, entre catadores de recicláveis e membros da Ambiens Sociedade Cooperativa, tiveram dois dias para depenar o casarão e uma casa de madeira. Os imóveis serão demolidos para a construção de um novo prédio residencial em Água Verde, bairro na região central de Curitiba, exemplo da rápida transformação imobiliária que vivem os bairros de classe média da cidade. Todo material retirado das casas será reutilizado na construção de um barracão para triagem de material reciclável que o grupo já coleta.

A esquina das ruas Murilo do Amaral Ferreira e Professor Assis Gonçalves ouviu as marteladas frenéticas do grupo em pleno feriado de Tiradentes, na última sexta-feira (21). O inconfidente também dá nome à ocupação na zona oeste onde as portas e janelas serão muito úteis. Na Vila Tiradentes, onde os lotes não são regularizados e não há fornecimento formal de água e energia, dois terrenos de frente para a única rua asfaltada devem ser o maior patrimônio da comunidade nos próximos anos.

Casarão em Água Verde, bairro de Curitiba - Theo Marques/UOL - Theo Marques/UOL
Imagem: Theo Marques/UOL

"A gente já sabe do que o barracão precisa. Tudo o que sobrar vamos vender para fazer dinheiro e comprar o que faltar", explica Jhessykelly Gomes de Souza Veiga, 20. Jhessy ficou responsável por anunciar, em um grupo de mensagens, os itens que estarão à venda. "Eu vejo que não vai para o barracão, já tiro foto e mando no grupo [de mensagens] da Tiradentes. Quem quer comprar, me avisa no privado", diz, mostrando pelo celular a troca de mensagens no grupo com 240 membros. Cada porta foi anunciada por R$ 50.

Uma vaquinha online deve complementar os recursos necessários para o futuro barracão de 128 m².

Jhessy é uma das filhas mais velhas de Cristiane Gomes, 40, que pegou o espelho de um dos vários banheiros para dar de presente à filha caçula, de cinco anos. As três "carrinham" juntas, verbo frequente entre os catadores que deixaram as ruas no fim de semana para desmanchar as casas. "Quando não tem aula, não tem com quem deixar as crianças, a gente leva junto. Tem uma cadeirinha adaptada no carrinho, na frente, aí ela não fica em contato com os reciclados", detalha Gomes.

Sua vida deu mais voltas que o carrinho que carrega em Curitiba. Cristiane engravidou 15 vezes. Foram quatro abortos e dois filhos falecidos por problemas de epilepsia e coração. Nove estão vivos, e muitos moram com ela.

Moradores de Nova Tiradentes retiram objetos e peças de dois casarões de Água Verde, em Curitiba - Theo Marques/UOL - Theo Marques/UOL
Retirada de objetos dos casarões de Água Verde, em Curitiba
Imagem: Theo Marques/UOL

"Já trabalhei como servente de limpeza, tenho o 'tique' da limpeza. Em casa acordo limpando tudo, arrumando, para depois tomar café. Eu sou uma mãe 'locona', sabe?", conta a catadora com bom humor.

Entre a retirada de um bocal e outro, serviço assumido pelas mulheres do grupo, é possível entender a alegria de concretizar, mesmo que ainda mentalmente, um barracão próprio para triar o material que se cata na rua. "Hoje a gente leva tudo para nosso quintal, mas é contaminado, sabe? Nossas crianças já veem um brinquedo, pegam, se contaminam. Com o barracão isso vai mudar", espera Cristiane Gomes.

Os tijolos para erguer o barracão serão produzidos pela própria comunidade. Valdecir Ferreira da Silva é líder comunitário e desenvolveu uma máquina para fazer o que ele chama de "tijolo ecológico" com areia, cimento e isopor que vem da coleta. "Agora a gente só precisa conseguir produzir em larga escala", explica.

Cristiane Gomes, 40, catadora de recicláveis e uma das fundadoras da associação de Vila Tiradentes, no casarão de Água Verde, em Curitiba - Theo Marques/UOL - Theo Marques/UOL
Cristiane Gomes, 40, uma das fundadoras da associação de Vila Tiradentes, no casarão de Água Verde
Imagem: Theo Marques/UOL

Carrinho nem é meu

A situação de Gomes é muito comum na periferia. É um carrinho por família, muitas vezes "cedido" por um ferro-velho. Logo, a família só pode vender o material para esse mesmo ferro-velho, sem a opção de negociar com quem paga mais.

"Antes da pandemia, eu tirava 35 bags por mês de papelão e pet, o que me dava uns R$ 1.200 por mês. Depois o preço caiu e não pude procurar um comprador melhor. Me pagam R$ 400 pelos mesmos 35 bags", desabafa, tirando o bocal do teto. "Desanimei muito."

Um barracão próprio de triagem permitirá que os catadores participem com mais força do mercado que define todo o sistema de compra e venda. Segundo Cristiane Gomes, se conseguirem juntar várias toneladas por quinzena, a empresa que recicla pode ir até Vila Tiradentes para buscar. Um dos membros da cooperativa, Vinicius Wassmansdorf, afirma que a ideia é que juntos os catadores tenham mais força. "Em vez de vender picadinho para outros donos de barracão, eles conseguiriam eliminar os atravessadores."

A equipe é liderada por José Luciano Vieira, 63, muito conhecedor do universo da reciclagem. A cooperativa que apoia os catadores assessorou o grupo na criação de uma associação, da qual Zé Vieira é presidente. Depois de muito "carrinhar", ele adquiriu uma hérnia umbilical que não o permite mais fazer força. "É muito sofrido o carrinho para puxar, cheio ele pesa 600 quilos. Na minha idade já não dá", acrescenta.

Para não ficar sem renda, Vieira separa o lixo de construção que vem em caminhões para a Vila Tiradentes, a fim de aterrar uma rua. Por mês cada um tira perto de R$ 300.

Para complementar a renda, que sustenta não só o catador, mas os 12 netos que "param" na casa dele, o ofício de eletricista aprendido há alguns anos é essencial. "Cobro R$ 25 para fazer uma tomada lá na vila." Perguntado se com essa renda ele consegue se alimentar bem, conta que é só com o básico. "Arroz, feijão e ovos. A carne está meio pesada [de comprar]."

Beatriz Fabrício e Marlon da Silva, casal de Vila Tiradentes que vive da renda obtida com a coleta de recicláveis, no casarão de Água Verde - Theo Marques/UOL - Theo Marques/UOL
Beatriz Fabrício e Marlon da Silva, casal de Vila Tiradentes que vive da renda obtida com a coleta de recicláveis, no casarão de Água Verde
Imagem: Theo Marques/UOL

Catador em Curitiba

"Olha lá o noia" é o que mais costumava escutar o presidente da associação dos catadores de recicláveis da Tiradentes. Seu Zé não sente saudade da discriminação que sofria puxando o carrinho nas ruas da capital paranaense, inclusive no Água Verde, onde ajudou a carregar dezenas de folhas de telha.

O saldo do trabalho de sexta a domingo (24) foram 22 luminárias, 24 grades de janelas, 34 portas, 15 esquadrias e janelas, 10 vasos sanitários e bidês, além de telhas (todas as que estavam intactas), torneiras, luminárias, persianas e alguns catadores levemente machucados, ao manipular os martelos e pés-de-cabra. Marlon da Silva, 28, cortou a mão. Para o jovem vindo de Ibaiti, no norte do Paraná, ser catador em Curitiba ainda é melhor que nas cidades menores, pois "aqui tem mais oportunidade".

Marlon "carrinhou" metade da sua vida, mas não só isso. "Já mexi com construção civil, pintura. Quando tinha uns sete anos comecei a trabalhar nas colheitas de café e algodão, arrancava feijão." Falando em feijão, ele garante que não é só preconceito o que o catador vivencia. "Nunca voltei pra casa com fome", assegura pela experiência diária, com saída às 8h e volta depois das 16h. "Não levo comida de casa, 'mangueio' [peço]. Sempre tem alguém que vê a gente trabalhando, vê a nossa situação e sente no coração." O resultado é um prato de comida ou uma marmita, todos os dias, sem falhar.

Das ruas, Marlon da Silva também viveu o amor. "Eu 'carrinhava', ela também. Foi assim que a gente se conheceu", conta olhando para Bia, apaixonada por ele e pelo rosa do banheiro. Não é de hoje esse gosto: a casa dos dois na Tiradentes leva a pintura da cor preferida dela.

Bairro de Nova Tiradentes, em Curitiba, para onde foram levados os itens retirados - Theo Marques/UOL - Theo Marques/UOL
Bairro de Nova Tiradentes, em Curitiba, para onde foram levados os itens retirados
Imagem: Theo Marques/UOL

A incorporadora que cedeu as duas casas para os catadores retirarem materiais definiu uma lista de itens "retiráveis". A madeira de uma das casas não estava na lista. O olhar pensativo de Marlon previu o comentário: "Das madeiras dessa casa dava pra fazer umas três ou quatro lá na vila".

O pensamento alto não foi solto, mas alicerçado na própria realidade. Quando Marlon e Bia foram morar juntos com os filhos, os dois conseguiram comprar uma casinha com um material alternativo. Essa história é relatada pelos dois num diálogo rápido, em que um atravessa o outro, numa empolgação de fazer rir quem ouve:

Marlon: "Era tudo de porta de guarda-roupa. A casa inteira".

Bia: "E a felicidade nossa?"

Marlon: "Claro, felizes, a gente estava dentro de um negócio que era nosso".

Bia: "A casa inteira tinha uma janela", gargalha.

Marlon: "A gente continuou 'carrinhando', cada dia conseguia uma coisa, trocava uma porta, uma janela, e devagarzinho, graças a Deus, hoje em dia a gente tem um lugarzinho, que não chove, e é muito aconchegante, entendeu? Com muita luta, onde a gente pode abrigar nossos filhos".