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São Gonçalo (RJ) volta a celebrar Corpus Christi com tapete de sal grosso

Com 50 toneladas de sal grosso, tapetes são feitos por 6.000 fiéis de 27 paróquias, 600 funcionários da cidade e sete escolas em São Gonçalo, região metropolitana do Rio - Zô Guimarães/UOL
Com 50 toneladas de sal grosso, tapetes são feitos por 6.000 fiéis de 27 paróquias, 600 funcionários da cidade e sete escolas em São Gonçalo, região metropolitana do Rio
Imagem: Zô Guimarães/UOL

Audryn Karolyne e Vanessa Rocha

Colaboração para o TAB, de São Gonçalo (RJ)

17/06/2022 04h01

"É meu último ano, minha filha!", diz Ana Matos, 65, paroquiana da Igreja São José, no município de São Gonçalo, região metropolitana do Rio. Há mais de 20 anos ela participa da confecção de tapetes de sal grosso no dia de Corpus Christi na cidade, considerada a maior montagem da América Latina.

"Todo ano ela diz isso, mas sempre acaba aqui com a gente", conta Vilma da Conceição, rindo da amiga, que não teve alternativa a não ser concordar. "Só não desisti por conta d'Ele."

Tapetes de sal são um símbolo importante do Corpus Christi, uma prática trazida de Portugal e popularizada no Brasil, especialmente no Sudeste. Este ano a celebração presencial voltou à cidade, com 241 painéis e quase 2 km de extensão.

A arte é composta majoritariamente por 50 toneladas de sal grosso, fornecidos pela Prefeitura, e envolve a colaboração de 6.000 fiéis de 27 paróquias, 600 funcionários da cidade e sete escolas municipais.

Vilma e Ana chegaram cedo, por volta das 5h de quinta (16). Eram as mais experientes no grupo que montava a pomba branca, símbolo do Espírito Santo.

O trabalho de pegar o sal e misturá-lo com corantes, transformando a cor gelo em diferentes tons, ficou para os mais jovens. Enquanto isso, as amigas começavam a construir os sais em cima de desenhos pré-prontos em uma grande cartolina, convocando amigos e familiares que estivessem por perto para ajudá-las.

Bastou olhar para uns sacos de sal que estavam sendo abertos que Vilma começou a se emocionar. "É lindo demais. É tudo muito difícil, mas Deus conforta a gente sempre."

Corpus Christi de São Gonçalo (RJ) - Zô Guimarães/UOL - Zô Guimarães/UOL
Beatriz participou da montagem junto com a turma da catequese da Igreja de São José
Imagem: Zô Guimarães/UOL

De geração em geração

Não são só Ana e Vilma que começam a passar o bastão para os mais jovens. Feriado celebrado desde 1995 na cidade, já é tradição passar a montagem dos tapetes para quem nasceu depois.

É o caso da técnica de segurança do trabalho Juliana Marinelli, 33, que contribui para a confecção desde os 14. 2022 é o primeiro ano que suas duas filhas, Estela, de um ano e dois meses, e Beatriz, de nove anos, veem o evento ao vivo e em cores.

É a primeira vez que Beatriz participa da montagem junto com a turma da catequese da Igreja de São José, que frequenta com a família. O processo a surpreendeu, pois é "maior e mais divertido" do que esperava. "Quero voltar todos os anos", diz.

Corpus Christi de São Gonçalo (RJ) - Zô Guimarães/UOL - Zô Guimarães/UOL
'Papai do céu que me trouxe hoje', diz Raimundo
Imagem: Zô Guimarães/UOL

Pré-pandemia, a confecção dos tapetes era realizada na madrugada da quarta-feira anterior ao Corpus Christi; este ano, começou pouco depois das 7h da manhã. Ao longo do dia, entre a missa e uma procissão à noite iluminada à luz de velas carregadas pelos fiéis, eram esperados 50 mil visitantes, segundo a Prefeitura.

O dia de Raimundo Nonato, 70, começou de forma inesperada, já que seu corpo despertou às 4h50 da manhã, o que considerou um chamado de Deus. Ele frequenta a paróquia gonçalense Nossa Senhora do Pilar há anos, mas nunca se interessou em montar os tapetes, apenas em participar da celebração posterior à confecção, passando por cima deles. Dessa vez, diz, num estalar de dedos decidiu ir para a rua. "Papai do céu que me trouxe hoje", conta.

Também é a primeira vez que o artista plástico Geleia da Rocinha, 65, vê os tapetes. Ao contrário de Raimundo, não veio movido pela fé católica, mas pela curiosidade. Umbandista, José Jaime Costa — seu nome de batismo — se diz impressionado com a alegria da festa. "A melhor palavra para definir isso aqui é amor. Aqui não tem a ver com arte, é amor."

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Além de sal grosso, os colaboradores usam serragem, ramos, purpurina, lantejoulas e café nos tapetes
Imagem: Zô Guimarães/UOL

Sal, purpurina e café

Quem vê de longe a estudante de educação física Giovanna Cardoso manuseando cerca de 20 kg de café pode achar estranho, ainda mais se levar em conta que o grão foi um dos mais atingidos pela alta da inflação nos últimos meses.

De fato, uma das principais mudanças junto com o horário foi a proibição de outros alimentos além do sal como matéria-prima, diferente dos outros anos em que eram utilizados açúcar, arroz, feijão etc.

Mas os fiéis se viram como dá: o café que Giovanna usa, na verdade é a borra recolhida nas três semanas anteriores na paróquia Nossa Senhora de Fátima. Os colaboradores também utilizam sal fino, tingido artificialmente, serragem, ramos, purpurina e lantejoulas.

Corpus Christi vem do latim e significa literalmente "corpo de Cristo". Sua origem data de 1243 quando, na Bélgica, a freira Juliana de Mont Cornillon teve visões de Cristo pedindo que o mistério da Eucaristia fosse celebrado. Em 1264, o papa Urbano 4° estendeu a data para toda a Igreja Católica e, em 1274, teve início o ritual da procissão. Desde 2005, a festa é Patrimônio Cultural e Religioso de São Gonçalo.

Há 15 anos, a primeira comunhão do filho da aposentada Isabel Cristina, 62, um dos principais ritos do catolicismo, foi o que lhe deu vontade de se tornar catequista. Hoje coordenadora da catequese infantil da paróquia São Judas Tadeu, notou que, talvez devido à mudança de horário da madrugada para a manhã, mais crianças estavam presentes. Muitas delas, devido à pandemia, pela primeira vez.

"As crianças que trazem os pais", brinca Isabel, vendo que boa parte dos responsáveis acabaram contribuindo para o tapete da igreja de 50 m já que, diferentemente de outras paróquias, a São Judas Tadeu resolveu fazer um painel gigante com todas as pastorais, em vez de uma peça por grupo. "As crianças não têm noção de tempo, então eles logo vão perguntar quando tem de novo", acrescenta.

Cerca de 2h depois, Vilma e Ana terminaram o tapete delas, acrescentando toques de fogo em volta da pomba branca. "Isso é um trabalho de glória", diz Ana. "Enquanto Deus me permitir, vou estar aqui."

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Vilma (à esq.) e a amiga Ana eram as mais experientes no grupo que montava o símbolo do Espírito Santo
Imagem: Zô Guimarães/UOL