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Jegues correm e desfilam em festa que reúne 11 mil pessoas no sertão

Público se aperta na grade para ver qual jegue cruza primeiro a linha de chegada da Jecada, na zona rural de Petrolina (PE) - Adriano Alves/UOL
Público se aperta na grade para ver qual jegue cruza primeiro a linha de chegada da Jecada, na zona rural de Petrolina (PE) Imagem: Adriano Alves/UOL

Adriano Alves

Colaboração para o TAB, de Petrolina (PE)

15/06/2022 04h01

Terra afofada, corredor montado com grades de ferro e estrutura de corrida de cavalos. Esse é o cenário onde se desenrola a Jecana, tradicional corrida de jegues realizada na zona rural de Petrolina (PE), no sertão de Pernambuco. A festa, que homenageia o animal símbolo do Nordeste por ser o mais popular para transporte de cargas na região, voltou a ser realizada após dois anos de interrupção por causa da pandemia.

A pista fica na principal rua da comunidade do Capim, na zona rural de Petrolina (PE), a 712 km do Recife. A comunidade de 3.000 habitantes vê sua população se multiplicar com a chegada de participantes de vários estados nordestinos, como Rio Grande do Norte, Paraíba e Piauí, além de outras cidades de Pernambuco. Foram 9.000 visitantes no sábado (11) e 11 mil no domingo (12), fora os jegues.

Como na maioria dos eventos nordestinos, o regionalismo é essencial. Por aqui, nada de jóquei. O termo para o profissional da montaria é "jegueiro". A grande surpresa é descobrir que são os guris que montam nos animais. Eles têm entre 8 a 13 anos, fase considerada ideal para o esporte, já que o animal ainda consegue suportar o peso do cavaleiro nas corridas rápidas.

No último dia da competição, a animação começou cedo. O calor fez sua parte e levou gente às ruas e aos bares. Ainda antes des 10h, já tinha gente bebendo e dançando ao som que saía das caixas instaladas nos bares. Nos alto-falantes do evento, o que tocava era o forró tradicional de Luiz Gonzaga e Dominguinhos. Nos bares, o brega revezava com piseiro e sertanejo.

Jucélio Pereira da Silva, 32, saiu de Santa Filomena (PE) e percorreu quase 200 km para trazer seu Chulé para competir. O pedreiro conta que foi corredor desde os 8 anos. Aos 32, fez questão de carregar consigo o sobrinho de 9 que vai estrear na mais famosa corrida de jegues do sertão. O menino, questionado se tem medo, não titubeia. "Tenho, não. É bom, tem tempo que eu corro", diz Emerson de Souza Silva.

O tio ao lado sorri orgulhoso. Para ele, a tradição tem que ser mantida. "A gente zela, cuida bem do bichinho. Cada um desse tem investido uns R$ 3 mil só para vir para uma festa dessas. Tem transporte, alimentação, remédio... É alto o custo." Um total de 45 jegues foram inscritos para levantar poeira nos 250 metros da pista que cruza a pequena comunidade.

A fêmea Laura — por lá eles chamam o animal de "jega", mesmo — é estreante. Foi treinada pelo agricultor Denis Ferreira, 30, de Afrânio (PE), que há 8 anos vem para a Jecana. "A gente treinou ela em uma pista lá em casa", explica. Quem vai subir em Laura é o primo do dono, Paulo Henrique de Souza, de 13 anos. "Quero chegar em primeiro, treinei bastante. Botei pra andar lá na roça."

Denis Ferreira (à esq.) veio de Afrânio (PE) com o primo Paulo Henrique (à dir.) para colocar a 'jega' Laura na competição - Adriano Alves/UOL - Adriano Alves/UOL
Denis Ferreira (à esq.) veio de Afrânio (PE) com o primo Paulo Henrique (à dir.) para colocar a 'jega' Laura na competição
Imagem: Adriano Alves/UOL

Na concentração, a poeira já é grande — os animais são muito agitados. "Essa aí é coiceira", alerta um dos jegueiros. Debaixo do sol forte de 35ºC, os pequenos aventureiros sobem nos animais e se seguram nos arreios com uma mão, liberando a outra para levar uma pequena garrafa de plástico que usam para agitar o animal.

Os jegues ficam organizados em grupos de 6, no máximo (é a capacidade das baias do evento). Ao abrir a trava, os jegues disparam a correr o trajeto. No grand prix jeguístico, se piscar o olho, perde-se a largada. Menos de um minuto separa a saída da linha de chegada que encerra a rodada. A cada uma, três são classificados e a disputa vai afunilando até chegar à grande final.

Como em qualquer esporte, tem torcida animada e algumas pequenas confusões. Ainda nas primeiras baterias — como se dividem as corridas —, uma das travas não abriu e o animal ficou preso. Na indecisão sobre cancelar a rodada ou apenas a partida, teve discussão. No meio, alguém gritou: "eu quebro de pau qualquer um aqui!". A situação foi apaziguada pela comissão. A democracia foi o caminho: perguntados se aceitariam voltar e correr novamente a rodada, todos se mostraram de acordo. A poeira voltou a subir.

Giscar Neves, servidor público que narra a competição da Jecana - Adriano Alves/UOL - Adriano Alves/UOL
Giscar Neves, servidor público que narra a Jecana
Imagem: Adriano Alves/UOL

Segura, peão

"Lá vem jegue!", grita Giscar Neves, 36, ao microfone. O servidor público vem de Coxixola (PB) para narrar a competição e tem escrito na camisa o bordão do evento. "Eu era criador e amante do jegue. Depois, comecei a participar da comissão organizadora, deixei de competir", conta.

Quando a disputa se acirrava, a voz de Giscar acelerava. Às vezes, a vista não conseguia identificar quem cruzava primeiro a linha de chegada, e a tecnologia vinha para ajudar. Uma câmera filmando era o equivalente ao VAR no futebol. "É muito rápido. Por isso que Luiz Gonzaga diz que o jumento é nosso irmão, porque corajoso e disposto, só o jegue do sertão", cita Giscar.

Corrida de jegues é tradição no sertão pernambucano, atraindo competidores de vários estados nordestinos - Adriano Alves/UOL - Adriano Alves/UOL
Imagem: Adriano Alves/UOL

Depois de muitas baterias, a linha de chegada feita com pó de cal na areia seca foi cruzada pelos campeões. O primeiro e o segundo lugares ficaram com o mesmo haras. Tira-teima e Raio da Filipina levaram os troféus das primeiras colocações para Zabelê (PB). "É uma emoção incrível ganhar uma das maiores competições do Nordeste", diz Felipe Sales, 25, estudante que atua como treinador da equipe. No total, a organização distribui R$ 25 mil em prêmios — o campeão leva R$ 7.000.

Logo após o anúncio do título, enquanto o treinador dava entrevista, Enzo Gabriel da Silva, 10, ainda estava em lágrimas pela conquista. O pequeno atleta tem apenas quatro meses de experiência e garantiu o lugar mais alto do pódio. Entre um soluço e outro, ele diz poucas palavras. "A vitória é boa. Eu montava todo dia para treinar pra vim pra cá. Ganhar foi demais."

Equipe do haras que levou o 1º e o 2º lugares na Jecana - Adriano Alves/UOL - Adriano Alves/UOL
Equipe do haras que levou o 1º e o 2º lugares na Jecana
Imagem: Adriano Alves/UOL

Luz na passarela

Nesse pedaço do sertão, jegue que não corre vira modelo de passarela. Depois das disputas de velocidade, é realizado o Jegue Fashion, um desfile em que os moradores enfeitam seus animais para exibi-los no evento. A passarela é o mesmo trajeto da corrida, mas, agora a passos lentos, eles recebem a euforia do público. Coloridos e cheios de enfeites, festivos como a música de Luiz Gonzaga ou engajados, eles representavam diversos temas.

Desde pequeno, Maycon Wendes Ferreira, 37, assistia empolgado ao desfile de jegues enfeitados. Guarda com orgulho vários títulos como participante. Durante a pandemia, o cabeleireiro reformou um carro e o transformou na "Casa de Bonecas" que leva a sua querida Axéfona, nome de seu animal. "Essa kombi foi toda trabalhada manualmente por mim. Cortei ela todinha."

O jegue Rei do Capim, que já foi destaque em várias edições da festa, voltou com tudo e teve direito até a tapete vermelho. As responsáveis pela coroação foram quatro amigas, todas professoras, que há 10 anos participam e seguem encantadas pela tradição.

O 'rei do capim' desfilou no Jegue Fashion e teve até tapete vermelho - Adriano Alves/UOL - Adriano Alves/UOL
O 'rei do capim' desfilou no Jegue Fashion e teve até tapete vermelho
Imagem: Adriano Alves/UOL

"Tem um significado importante pra gente. É um momento de trazer toda a cidade para cá e outras pessoas de fora, para valorizar o jegue e nossa cultura. Ele é um animal muito importante pro sertão, resistente", afirma Clemilde Damasceno, 48, integrante do grupo.

Tá no sangue

Escorada na grade, Vera Lúcia Pereira, 46, levantava orgulhosa um livro. Abordada pela reportagem do TAB, antes mesmo da primeira pergunta, ela solta "sou filha de Joaquim de Mané". A costureira, que quando menina saía de Santa Filomena para ver o pai competir na Jecana, escreveu as memórias do jegueiro vencedor das primeiras edições da competição, quando ainda era realizada na área urbana da cidade.

"Essa é uma das melhores festas que existem. Todos os anos a gente vem para cá. Estou aqui com um livro sobre um agricultor que lutou com dignidade e amor por essa tradição", fala, emocionada.

A costureira Vera Lúcia Pereira exibe orgulhosa o livro que escreveu sobre seu pai, o jegueiro Joaquim de Mané - Adriano Alves/UOL - Adriano Alves/UOL
A costureira Vera Lúcia Pereira exibe orgulhosa o livro que escreveu sobre seu pai, o jegueiro Joaquim de Mané
Imagem: Adriano Alves/UOL

A Jecana foi iniciada em 1971, idealizada por um radialista da cidade, Carlos Augusto Amariz, preocupado com a situação do animal que estava sendo dizimado na região. Em entrevistas, ele explicava que a ideia era uma gincana de jegues. Hoje o evento movimenta a economia do Capim, que fica a 35 km do centro da cidade. Durante a festa, o cenário de caatinga se transforma, reunindo 150 pessoas para trabalhar na montagem do espaço, além de cozinha e organização das corridas, que ocorrem simultaneamente ao São João do vilarejo, que termina com o Forró do Poeirão.

"Essa festa é muito aguardada porque movimenta a região economicamente, culturalmente e com alegria. Nada mais importante do que isso nesse momento, após tanta dor da pandemia — mesmo que ela ainda não tenha acabado", afirma Carlos Benevides, presidente da Associação de Moradores do Capim, que passou a coordenar a realização da festa após o falecimento de seu idealizador.

Luana Souza e a amiga Keila Galvão estavam empolgadas com o Forró do Poeirão de dali a pouco - Adriano Alves/UOL - Adriano Alves/UOL
Luana Souza e a amiga Keila Galvão estavam empolgadas com o Forró do Poeirão de dali a pouco
Imagem: Adriano Alves/UOL

Amigo do sertanejo

Fuscão Preto, Cadáver, Bolsa Família e até Madona, com um "n" só mesmo, vieram ao evento. Estrelas do dia, os jegues são batizados com nomes divertidos que caem na boca do povo. Os frequentadores explicam que esse é o real sentido do evento: valorizar o animal tido como "amigo do sertanejo". Os jegues corredores ganham valor de mercado, chegando a custar R$ 35 mil.

Tradicional da região, o Nordeste tinha 900 mil jegues até 2013, segundo o IBGE. Atualmente, são apenas 400 mil, de acordo com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. A espécie tem sido ameaçada pelo abate, pois sua carne é exportada e a pele é usada na produção de cosméticos chineses.

A homenagem ao jegue é também pretexto para a diversão da comunidade. A estudante Luana Souza, 18, frequenta a Jecana desde criança e, esse ano, se arrumou logo cedo com a amiga Keila Galvão, 22, para matar a saudade. "Estava sentindo falta. A gente acompanha um pouquinho da corrida e depois vai para a festa", confessa, aos risos.