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'Vivíssima': politizada, livraria Leonardo Da Vinci faz 70 anos no Rio

Fundada pelo casal europeu Vanna Piraccini e Andrei Duchiade em setembro de 1952, a livraria Leonardo Da Vinci, no centro do Rio de Janeiro, hoje é comandada pelo gaúcho Daniel Louzada (foto) - Fabiana Batista/UOL
Fundada pelo casal europeu Vanna Piraccini e Andrei Duchiade em setembro de 1952, a livraria Leonardo Da Vinci, no centro do Rio de Janeiro, hoje é comandada pelo gaúcho Daniel Louzada (foto)
Imagem: Fabiana Batista/UOL

Fabiana Batista

Colaboração para o TAB, do Rio

15/07/2022 04h01

Uma foto de leitores na livraria com a legenda "clube do tiro", ironizando a recente declaração do presidente Jair Bolsonaro ("clubes de tiro vão virar bibliotecas" se Lula for eleito). Um livro clássico de Franz Kafka cortado e endereçado a Abraham Weintraub (então ministro da Educação, que já se referiu ao autor como "Kafta"), em crítica a cortes orçamentários para universidades federais. Post-its nos livros para ensinar trechos do hit sertanejo de karaokê "Evidências".

Misturando política, ironia e humor, hoje a livraria Leonardo da Vinci, no centro do Rio de Janeiro, atrai um público jovem e diverso. Mas a criatividade é antiga: aberta há 70 anos pelo casal europeu Vanna Piraccini e Andrei Duchiade, a casa sempre buscou se sintonizar com as discussões que marcaram as épocas. Ela, italiana, aluna de colégios de Paris, era superculta; ele, romeno, tinha experiência no mercado de livros; juntos compartilhavam a sede por conhecimento.

A Da Vinci (como é carinhosamente conhecida) foi inaugurada em uma salinha no 14º andar de um prédio da avenida Presidente Vargas, onde certas vezes foi responsável por congestionar o elevador. Apertados, em 1956 os donos decidiram mudar para o subsolo de cerca de 300 m² do edifício Marquês do Herval, na avenida Rio Branco.

Na vitrine, coleções luxuosas, inéditas e de clássicos da editora francesa De la Pléiade. O casal trabalhou junto até a morte de Andrei, em 1965 — Carlos Drummond de Andrade homenageia o livreiro em um poema. Drummond, Álvaro Cotrim, Lygia Fernandes e Raul Lima estavam entre os intelectuais habitués da casa; Castelo Branco e Juscelino Kubitschek, os políticos.

"Na virada de 1950 para 1960, consolidava-se a universidade brasileira. Os livros vendidos na Da Vinci eram, sobretudo, voltados às ciências humanas e políticas", diz o historiador Paulo César Gomes, que está pesquisando a história da livraria para escrever um livro. Com isso, o endereço era visitado não apenas por leitores do Rio, mas de todo o Brasil.

Livraria Da Vinci, no Rio - Fabiana Batista/UOL - Fabiana Batista/UOL
Trecho de funk da Valesca Popozuna em destaque em uma prateleira de livros logo na entrada
Imagem: Fabiana Batista/UOL

De Nietzsche a Kafka

Aos 39 anos, com dois filhos, Vanna assumiu o negócio sozinha. Enfrentou três desastres (um incêndio, em 1973; uma inundação, em 1993; e um vazamento de esgoto, em 2010) e, ao longo das décadas, a italiana se tornou uma das personalidades mais relevantes da cidade, inclusive homenageada com a ordem "Carioca Honorário".

Era, segundo relatos ouvidos pelo TAB, uma Vanna brava, exigente e reservada. Ao mesmo tempo, inteligente, generosa e atenta a tudo. Ficava na mesa de madeira, que até hoje está na entrada do salão, indicava livros e tratava os clientes direto pelo nome. A imigrante italiana morreu neste ano, com 96 anos.

Frequentou a livraria até o fim da vida, embora já não liderasse a loja desde a década de 1990. Em 2016, ela e a filha, Milena Piraccini Duchiade, venderam a Da Vinci a um livreiro de Porto Alegre, Daniel Louzada, 47, que investiu todas as suas economias na empreitada.

Diferentemente de Vanna, Daniel tem riso frouxo e humor refinado. Com 23 anos de experiência no mundo dos livros, também é ele quem faz o papel de social media da livraria, com ações como o livro de Kafka expedido ao então ministro. Trabalhou em unidades da Saraiva de Porto Alegre e de São Paulo e, demitido em 2015, escolheu o Rio para viver.

Historiador sem diploma, o gaúcho conta que teve uma infância carente e na juventude se interessou pelas letras. "Minha mãe levava jornais para casa e, depois, já na faculdade, comecei a ler livros emprestados", diz. Aos 18 anos, comprou seu primeiro livro, "Nietzsche", da coleção "Os pensadores", que está guardado até hoje na sua biblioteca.

Ao pegar as chaves, Daniel fez mudanças: deixou de vender livros importados, melhorou os acervos de autores brasileiros, principalmente da área de ciências sociais, e trocou o mobiliário. Por um tempo, a loja funcionou num espaço pequeno em frente, mas "não, não fechou", destaca, desmentindo rumores.

Livraria Leonardo Da Vinci, no Rio - Fabiana Batista/UOL - Fabiana Batista/UOL
'A Da Vinci sempre foi uma espécie de refúgio da desumanização promovida pelo mundo que vivemos', diz Íbis
Imagem: Fabiana Batista/UOL

'Refúgio' no Rio

Uma rampa em caracol dá acesso ao salão da Da Vinci, que foi transformada em uma livraria mais moderna. Foram-se os livros empilhados até o teto, agora eles estão organizados em estantes espalhadas por todo o canto, inclusive no novo café.

Ali, com quatro livros e duas taças de vinho, o ex-coronel da PM Íbis Souza Pereira, militante do Psol, sentou para conversar com o amigo livreiro nos primeiros dias de julho. "A Da Vinci sempre foi uma espécie de refúgio da desumanização promovida pelo mundo que vivemos. Faço questão de dar uma passadinha", conta ele, frequentador do subsolo desde 1990.

Daniel diz que recebe clientes antigos até hoje, inclusive os que pensavam que, com a morte de Vanna, a livraria também morreria. A casa resiste, com títulos de ficção e não ficção, infantil, artes etc., que o livreiro garimpa nos e-mails de editoras; nas feiras literárias, fica de olho nos lançamentos. Vende de tudo. "Não é minha biblioteca pessoal", diz. Acrescenta, entretanto: "Escolhemos o acervo a partir do nosso perfil e, mesmo que eu venda o livro do Sergio Moro, por exemplo, ele não estará na prateleira de destaque."

Livraria Leonardo Da Vinci, no Rio - Fabiana Batista/UOL - Fabiana Batista/UOL
Livraria Leonardo Da Vinci, no Rio
Imagem: Fabiana Batista/UOL

Segundo Daniel, o papel da Da Vinci é contribuir com as discussões políticas num país onde as livrarias fecham o tempo todo — e as cidades perdem espaços públicos de encontro cultural e social. "Nem aqui quebramos todas as barreiras", pondera, ao assinalar que, infelizmente, a livraria também é um símbolo de desigualdade no Brasil. Com atividades gratuitas, todavia, tenta diminuir a distância entre o brasileiro e os livros.

Um dos 150 eventos de 2019, por exemplo, foi um ato em memória de Ágatha Felix, menina de 8 anos morta pela polícia do Rio. "Lembro que uma mulher disse: 'agora vão ter que nos suportar, porque a gente tá na livraria'. Essa frase ainda me impacta, porque buscamos colher esse sentimento de pertencimento."

Daniel também gostaria de consolidar a editora Da Vinci Livros, fundada em 2021, e que lançou "Crime: crença e realidade", de Juarez Tavares, e "Colonização punitiva e totalitarismo financeiro", de Eugenio Raúl Zaffaroni. Pretende publicar outros cinco títulos neste ano. Se nos tempos de Vanna e Andrei, a livraria formou pensadores da época, Daniel quer formar uma nova geração agora. "Onde uma livraria completa 70 anos vivíssima?", finaliza.