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'Barrigueiros' tentam driblar scanner e cães para levar drogas a prisões

Logan, o cão farejador de centros de progressão penitenciária de Bauru (SP) - Rodrigo Ferrari/UOL
Logan, o cão farejador de centros de progressão penitenciária de Bauru (SP) Imagem: Rodrigo Ferrari/UOL

Rodrigo Ferrari

Colaboração para o TAB, de Bauru (SP)

26/07/2022 04h00

Batizado com o "nome civil" do mutante mal encarado Wolverine, dos "X-Men", Logan é um pastor-belga-malinois de 7 anos e 6 meses de idade que está quase em vias de se aposentar, já que, diferentemente de seu homônimo famoso, o cão farejador não conta com os poderes que retardam o envelhecimento.

Nada escapa ao focinho de Logan. Entre janeiro de 2021 e junho deste ano, ele encontrou 1.563 porções de maconha, que estavam devidamente "mocozadas" nas imediações dos CPPs (Centros de Progressão Penitenciária) 1 e 2 de Bauru, no interior de São Paulo. O recorde foi na metade do ano passado, quando o K-9 encontrou nada menos do que 421 invólucros do entorpecente numa só ocorrência.

O treinamento dos farejadores, em geral, é feito com odores sintéticos de maconha e cocaína, comercializados por empresas. Tudo se baseia nas teorias do russo Ivan Pavlov (1849-1936) e do norte-americano Burrhus Frederic Skinner (1904-1990) sobre os comportamentos condicionados dos cães.

"Da mesma forma que nas experiências feitas na Rússia, no século passado, perceberam que os cães salivavam ao ouvirem uma sineta tocada sempre que eram oferecidas porções de carne a eles, hoje nós condicionamos os cães a buscarem celulares e drogas em troca de algo que cause prazer a eles, que pode ser comida ou um brinquedo", diz Carlos Eduardo Morgado, cinotécnico responsável pelo canil da P-1 de Pirajuí.

No caso de Logan, a "fissura" é proporcionada por uma bola de tênis comum. Sempre que ele é bem-sucedido em sua busca, o treinador agracia o Wolverine brincalhão com seu objeto favorito.

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Logan, em apreensão realizada em janeiro em Bauru (SP)
Imagem: Divulgação

'Barrigueiros' e ninjas

Com seus muros altos e controles rígidos de entrada e saída, os CPPs paulistas lembram muito os presídios comuns, embora tenham regras que possam ser interpretadas como mais "brandas", pois são destinados a detentos do regime semiaberto, na reta final de suas penas.

Além de poderem realizar trabalhos externos remunerados, eles costumam ser beneficiados com saídas temporárias em alguns períodos do ano, popularmente conhecidas como "saidinhas".

No retorno da última, no fim de junho, uma estranha "epidemia" alastrou-se nos semiabertos de Bauru: num só dia, 28 detentos foram flagrados tentando levar para o xadrez drogas e celulares dentro de seus estômagos e intestinos. Aí Logan precisa de ajuda.

Na volta dessas saídas temporárias — quando cerca de 2.000 dos 2.550 presos da unidade ganham a chance de retomar de maneira plena o contato com o mundo exterior —, a atividade dos "barrigueiros" torna-se mais intensa. Mas ela acontece também nos dias normais, em menor escala, por obra e graça dos detentos que trabalham fora.

A estratégia dos "barrigueiros" é uma tentativa de driblar medidas de segurança adotadas pela SAP (Secretaria de Administração Penitenciária) de São Paulo que visam conter a ação dos "ninjas". Assim é como os policiais penais se referem a membros do crime organizado que, encapuzados e vestidos de preto, costumavam levar drogas e celulares aos CPPs.

"Os ninjas se aproveitavam do fato de que, no semiaberto, não havia vigilância armada. E assim faziam invasões. Cortavam alambrados, pulavam muros e entravam com mochila e tudo nas celas", afirma Carlos Eduardo Piotto, secretário jurídico do Sindcop (Sindicato dos Policiais Penais do Estado de São Paulo), entidade que representa 7.000 profissionais da categoria.

Atualmente, os CPPs são atendidos por serviços de escolta, com viaturas que fazem a segurança na área externa das unidades. A presença desse reforço nos entornos das prisões serviu para minar a ousadia dos ninjas. "Antes, era complicado. Em Campinas, há alguns anos, atendemos o caso de um servidor que foi espancado e precisou ser hospitalizado, porque tentou barrar a entrada de um grupo que queria levar mochilas para dentro das celas. Isso sem contar inúmeras vezes em que agentes desarmados estiveram sob a mira de armas pesadas", diz Carlos Neves, secretário-geral do Sindcop.

Hoje, levar as paradas para dentro da unidade prisional se tornou uma missão muito complexa devido às escoltas e também às telas e alambrados reforçados, câmeras de segurança e detectores de metais que apitam até para botões de calça jeans. Outro reforço são os "funcionários" caninos como Logan.

37 celulares

Detentos do semiaberto que são flagrados com drogas ou celulares na barriga perdem o direito à progressão de pena e retornam ao regime fechado. Segundo o diretor do CPP-2 de Bauru, Fernando Henrique de Melo Santana, presos se arriscam nessa tática para tentar ganhar algum dinheiro, saldar dívidas contraídas dentro da prisão ou para consumo próprio.

Fernando Henrique de Melo Santana, diretor do CPP-II de Bauru, mostra como é o scanner corporal da unidade - Rodrigo Ferrari/UOL - Rodrigo Ferrari/UOL
Diretor do CPP-2 de Bauru mostra como é o scanner corporal da unidade
Imagem: Rodrigo Ferrari/UOL

"Basicamente, a maioria dos presos viviam nas 'cracolândias'. Mesmo aqueles condenados por furto fizeram isso para manter a droga", diz. Na unidade que ele dirige, um detento chegou a engolir 17 celulares de uma vez. Já no CPP-1, houve o caso de um homem que colocou 37 pequenos aparelhos goela abaixo (eles desmontam ao máximo o celular para conseguir engolir as peças). Tudo em vão. As unidades contam com scanner corporal que identifica os menores detalhes no organismo de um indivíduo.

Entre os detentos, há quem apele para técnicas não comprovadas para driblar a vigilância eletrônica, como ingerir suco de uva, forrar o estômago com comida ou embrulhar a carga proibida em materiais isolantes elétricos. Rogério*, 36, que cumpriu seis anos detenção por homicídio relacionado a drogas (matou um traficante na região de Bauru, que vendera cocaína batizada para ele), tem uma explicação mais plausível para o caso dos endividados que compraram fiado na prisão. "Se você tentar levar a droga pra dentro, morre a dívida, mesmo se fracassar", afirma.

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'Se você tentar levar a droga pra dentro, morre a dívida, mesmo se fracassar', diz Rogério*
Imagem: Rodrigo Ferrari/UOL

Em geral, os "barrigueiros" costumam engolir os produtos ilícitos minutos antes de entrarem na prisão, na esperança de poderem vomitar enquanto a carga ainda está no estômago. Além de a saída ser mais fácil pela parte de cima, eles tentam reduzir os riscos de o organismo digerir ou romper os invólucros (preservativos ou fita isolante de alta tensão).

Nem sempre dá certo. Um detento do CPP-2 estava com um celular no intestino desde 20 de junho. No dia 18 de julho, ele precisou ser internado para se submeter a uma cirurgia para remoção do objeto.

Crack não entra

Popular nas quebradas, desde 2004 o crack está proibido nos presídios, segundo as fontes, por determinação do crime organizado. Felipe*, 43, que hoje mora em Bauru e cumpriu 16 anos de pena por um latrocínio cometido em 2002 na região de Ribeirão Preto (SP), explica que os efeitos da droga sobre os detentos tornaram inviável a permanência do produto no sistema prisional paulista. "Usando pedra, os detentos ficavam incontroláveis. Aquilo estava escandalizando o nome da facção. Era como se fosse coisa de noia", conta ele, que comercializava entorpecentes na prisão.

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Felipe*, 43, que cumpriu pena de 16 anos por latrocínio e traficou drogas na prisão
Imagem: Rodrigo Ferrari/UOL

Na época em que esteve no regime fechado, Felipe contava com o apoio da namorada e de outras três colaboradoras "coloridas", como ele diz, que costumavam levar, juntas, 2 kg de maconha para dentro do presídio, nas visitas de fim de semana. Como não havia scanner para atrapalhar o negócio, o transporte ocorria pela via genital.

O pagamento era feito do lado de fora do presídio, com depósitos de familiares dos presos na conta da namorada. No tempo em que ele cumpriu sua pena, uma porção de 5 g de maconha valia cerca de R$ 30 na prisão. "Hoje, o preço passa de R$ 150", afirma. Segundo ele, no semiaberto um telefone pode custar de R$ 1.000 a R$ 2.000.

O dinheiro ganho com drogas e celulares bancava a vida de "luxo" de Felipe no xadrez. "Naquela época, eu só tomava Ovomaltine, comia granola e usava tênis e roupa de marca."

*Nomes trocados para preservar a identidade dos entrevistados