'O homem tá estourado': forrozeiro vira fábrica de jingles e embala Collor
Em 16 de agosto, tão logo o dia raiou, o senador Fernando Collor (PTB) colocou seu bloco nas ruas de Benedito Bentes, em Maceió. A carreata com o ex-presidente, que nesta eleição quer retomar o posto de governador de Alagoas, passou pelas principais ruas do populoso bairro numa cena típica de campanha: acenos efusivos, distribuição de santinhos e som no último volume.
A carreata espalhou pelo ar um leque de jingles no ritmo do piseiro para chamar atenção dos transeuntes. Na caixa de som, uma música conhecida de antigas eleições. Nela, um vozeirão potente canta: "E tamo junto, alô, meu povo / Fernando Collor disparou e vai ganhar de novo / O homem disparou, disparou, disparou".
A mais de 500 km dali, na cidade de Abaiara, no Ceará, o dono do gogó toma café da manhã com a esposa e a filha ao som do cacarejo das galinhas e da máquina de lavar no quintal, antes de gravar mais um jingle político. Para isso, ele precisa se deslocar de carro até Juazeiro do Norte, a 1 hora dali, para usar um estúdio profissional.
Não que Cícero Gomes, 43, não conheça ninguém que tenha um estúdio improvisado em casa — a pequena cidade tem pouco mais de 11 mil habitantes. "É comum por aqui, hoje todo mundo entende de música", ele diz. "Já usei pra gravar CD de piseiro, porque esse piseiro de hoje não exige muito. É só ligar o teclado, mas a música de campanha não pode ser em qualquer lugar."
No início da campanha eleitoral, ele já tinha gravado e vendido vinte jingles políticos para embalar candidaturas nos mais diversos estados - entre eles Tocantins, Manaus, Maranhão, Minas Gerais - ao som de sertanejo, forró e pisadinha. Em alguns casos, junto com a música, o cantor também envia junto vídeos onde aparece cantando a criação no estúdio - uma espécie de clipe que vai alimentar as redes sociais, campanhas de TV e telões de eventos.
"Tenho que aparecer com tudo bonito. Um jingle político do Vaqueiro Karkará vem com documento. Cadê o CNPJ do estúdio? Se não tiver, vai ter um problema", ele explica.
Fora daquela casa, ele é conhecido pela alcunha desde pelo menos 2012, quando começou a cantar em bandas de forró e vaquejadas. Foi nessa época que topou fazer uma paródia de um hit como jingle do candidato Afonso Tavares (PT) à prefeitura de Abaiara. Karkará deixa claro: não se trata de preferência política. "Pessoal do interior é assim: escolhe um lado e entra", ele ri. "Quando a gente se envolve, a gente nem sabe. É igual relacionamento, não pode dar um beijo senão fica apaixonado. A política é assim", diz, pragmático.
A campanha em 2012 não decolou, mas Karkará estava lá quatro anos depois com uma nova versão, embalando finalmente a vitória do candidato. Tavares é o atual prefeito da cidade.
De lá pra cá, ele entrou e saiu de bandas, integrou o time de compositores de artistas nordestinos em franca ascensão, como Wesley Safadão, Xand Avião e Mano Walter. Ao mesmo tempo, na cidade, virou referência de publicidade. São muitos os mercadinhos e lojas que tocam até hoje os jingles feitos pelo cearense.
As músicas nascem mesmo sem pedido prévio. Uma vez, seu empresário na época deu um sermão motivacional para o artista não deixar a peteca cair, frente a agenda capenga de shows. Finalizou com um mantra: "É nós trabalhando, os contra falando e Deus abençoando". No dia seguinte, Karkará chegou com a música "Nunca foi sorte, sempre foi Deus": "A sua inveja nunca vai me derrubar / Eu sou assim, quem quiser pode falar / Tá falando de mim, tá querendo ser eu / Mas deixa eu te dizer / Que a voz do povo é a voz de Deus", diz a letra. Era uma música de carreira, mas o empresário notou que os versos caberiam muito bem num comício daqueles bem lotados. E assim foi.
Em 2020, "Nunca foi sorte, sempre foi Deus" foi a trilha escolhida por muitos vereadores do PRB no Rio de Janeiro para embalar suas imagens ao lado do candidato à reeleição à prefeitura do Rio, Marcelo Crivella (que não ganhou). "Desde a última eleição Deus ficou muito forte", analisa o dono da voz.
De olho no duplo filão, Karkará passou a montar um repertório que serviria em duas frentes: embalaria seus shows, mas serviria também como jingles políticos. Na procura, encontrou "O Homem Disparou", versão do hit "Menina Pavorô", da banda brasiliense Forró Perfeito, feita pelo piauense César Araújo para um candidato que queria uma música para tocar antes mesmo de a campanha começar. Por isso, os versos sobre um homem não identificado, mas "querido, atencioso", que "trouxe a liberdade para o nosso povo".
"O Homem Disparou" foi gravada por Karkará (acompanhado na época pelo Vilões do Forró) e projetou a voz do vaqueiro no Brasil inteiro, batendo rapidamente 1 milhão de visualizações no YouTube. Foi a música mais utilizada nas campanhas municipais. De norte a sul, choviam candidatos alegando ser o tal "homem de confiança".
O rendimento foi alto, mas não mudou tanto assim a vida do compositor. Ele continua morando no mesmo lugar, embora pretenda, ainda neste semestre, se mudar de vez para Juazeiro do Norte para ficar mais perto do estúdio. "E é uma cidade com shopping, tem mais aparato", diz.
O homem tá estourado
Muita coisa mudou desde então - tanto na política quanto na carreira de Karkará.
O tal do "jingle pré-fabricado" é usado até hoje por todas as partes envolvidas na composição e produção da faixa. Dependendo do pedido, o cantor volta ao estúdio para gravar versões em que só muda o nome e a legenda do candidato. No final de 2021, fez isso para o então governador de São Paulo, João Doria. Notícias na época diziam que o tucano teria comprado a música para uso exclusivo no que seria a estreia na corrida presidencial de 2022. Karkará nega - e Doria, no fim, não disparou nem dentro do PSDB: desistiu de ser candidato.
Hoje, Karkará voltou a fazer shows como cantor solo e tem um novo empresário. A empolgação de que a carreira vai virar ainda é a mesma. "Acabou que a gente não conseguiu fazer as festas de vitória dos prefeitos em 2020, porque tinha a pandemia, mas eu fiquei com essa fama e, quando voltaram os shows, eu sabia que precisava de novas músicas", diz. "O artista tem que se destacar em alguma coisa e eu consegui nessa parte."
A nova aposta é quase um derivado de seu maior sucesso, chama-se "O Homem tá Estourado". Karkará seguiu o mesmo caminho: gravou um clipe como música de trabalho, enquanto empresta versos - como "quando ele chega todo mundo dá a mão / ele tem ibope, tá na boca do povão / é um amigo show, tem o carinho e o apoio do povo / acabou de sair o resultado, aqui está todo mundo do seu lado" - para quem quer engajar na disputa política.
O clipe ainda está na casa das 100 mil visualizações, mas Karkará já gravou algumas versões exclusivas para candidatos. Segundo ele, desde o início da campanha, a fila chega a 50 pedidos, que devem se estender até a semana anterior às eleições. "De anteontem pra cá meu telefone tá parecendo de pizzaria", diz, sorridente e confiante.
Collor, por enquanto, é seu cliente mais ilustre, embora o senador tenha preferido o sucesso de dois anos atrás. O pedido foi feito há meses, através de um amigo do candidato, que ainda não sabia se disputaria a vaga ao governo de Alagoas. Com letra mais genérica, "O Homem Disparou" cabia perfeitamente, mesmo com a indefinição dos rumos eleitoreiros. "Todo mundo usa, seja no futebol, governo do PT, mercadinho", diz Karkará.
Meses depois, com a campanha já direcionada, a equipe de Collor entrou em contato para mais um jingle. Desta vez, queriam algo inédito. O briefing veio bem resumido: uma música impactante, animada, com balanço. Na letra, uma informação era essencial: "Tem que colocar que ele está junto do Bolsonaro", dizia a mensagem. Collor é apoiador irrestrito do presidente, candidato à reeleição.
"O ritmo estava ao meu critério e eu escolhi um merengue, um batidão sertanejo. Peguei tudo que ele falou e fui para meu quarto, meu cantinho de composição." Rascunhou os primeiros versos e gravou uma guia com o violão: "O povo pediu, Collor aceitou, tá combinado / Collor vem aí junto com Bolsonaro pra governar nosso Estado".
Na mesma semana, estava em Juazeiro do Norte, junto com um baixista e um sanfoneiro para gravar ao vivo. "Não gosto de samples", diz o cantor. "Na maioria das vezes, a gente não consegue gravar de primeira. É por partes. No final, o rapaz do estúdio junta tudo, mas a gente compara com outras músicas do momento para saber se está na mesma qualidade."
Collor lhe agradeceu com uma mensagem de áudio via Instagram. Aproveitou para convidá-lo para ir a Brasília. "Tenho convite para ir na casa dele. Quando meu pai morreu de covid, ele me mandou uma mensagem, solidário. Somos amigos nas redes sociais, mas faço tudo na hora que ele pedir. Ele é um cara bacana comigo, ficou esse gostar, sabe?", diz Karkará. TAB entrou em contato com a campanha de Collor, mas não obteve resposta.
Jingle de presente
Durante muitas eleições as paródias foram o carro chefe de qualquer campanha. São inúmeros os casos de jingles que reciclam letras e músicas já conhecidas das rádios. Em 2014, o uso foi questionado com a polêmica campanha do deputado federal Tiririca (PL), que usou "O Portão", clássico de Roberto Carlos, para pedir: "Eu votei, de novo vou votar, Tiririca, Brasília é seu lugar".
O vídeo do jingle trazia o humorista imitando os trejeitos do cantor. Roberto Carlos não gostou e processou o deputado pelo uso indevido da canção. O STJ, porém, considerou o uso alterado da música como "paródia", o que, pela lei brasileira, é isenta de autorização e de pagamento de direitos autorais.
O entendimento ainda espera confirmação em plenário, mas a confusão afastou os candidatos mais conhecidos da prática, ainda que a oferta de jingles "reciclados" dos sucessos do momento esteja em todo canto - do YouTube a anúncios no Mercado Livre. Músicas que viralizaram no TikTok, como "Acorda Pedrinho", da banda Jovem Dionísio, e "Pipoco", da novata Ana Castela, são oferecidas a preços módicos. Vão de R$ 300 a R$ 1 mil.
Ele diz que os jingles originais, como a música feita para Collor, podem chegar a R$ 8 mil, mas revela que muitas vezes dá a música "de presente", mediante autorização e o pagamento do custo de aluguel e estúdio e gravação, na faixa de R$ 1 mil. Foi este o caso do ex-presidente, ele diz.
Para Karkará, a conta é a seguinte: "O candidato fica usando aquela energia, tocando três meses a música. Quando ganha, ele vai chamar quem para fazer a festa de vitória? O vaqueiro Karkará. Fica uma troca de favor. Abre portas pra mim", diz, esperançoso que esta eleição renda frutos ainda maiores que 2020.
Hoje, diz se considerar "uma figura política nacional". Por que então não ser candidato? "Rapaz, pensar eu já pensei, já tentaram me filiar num partido aqui, nem lembro qual era. Só não tive coragem ainda. Meu negócio é a música, é a vaquejada."
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