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'Ia virar inferno': vizinhos vetam albergue para a população de rua em SP

Fachada do galpão onde funcionaria o centro de acolhimento da rua Magarinos, na Vila Maria - Mateus Araújo/UOL
Fachada do galpão onde funcionaria o centro de acolhimento da rua Magarinos, na Vila Maria Imagem: Mateus Araújo/UOL

Do TAB, em São Paulo

26/08/2022 04h01

Ivanildo Teixeira, 45, tem vista privilegiada do movimento na esquina das ruas Magarinos Torres e Itaúna, na Vila Maria, bairro da zona norte de São Paulo. Naquele quarteirão residencial, quase sempre calmo, ele vê quem entra e quem sai. Diante de qualquer suspeita, liga para os vizinhos. "Tem uma pessoa estranha na sua porta, sabe quem é?".

A esquina é o trabalho de Teixeira. "Vendo de tudo. Café, cerveja, almoço. É bar e restaurante", explica o dono do bar — o PF ali custa em torno de R$ 20. Dali também o comerciante avista a própria casa, a uns cem metros de distância.

"A Vila Maria é um bairro de família. Nossa rua aqui é toda de moradores. Não tem bagunça, quase todos os moradores são idosos. Tem criança também", diz à reportagem, enquanto entrega um copo de café a um dos clientes. "Todo mundo se conhece. E olha que dono de bar é sempre condenado, viu, mas eu aqui sou muito querido."

Foi para manter o sossego da redondeza que, há dois meses, ele e um grupo de vizinhos se mobilizaram contra a criação de um centro de acolhimento à população de rua. O serviço, que seria instalado num galpão de 500 m², no número 558 da rua Magarinos Torres, atenderia diariamente a 200 adultos.

"Ia ser um inferno", diz ele.

Em julho, o grupo chegou a colocar faixas no bairro que diziam: "Não aceitamos o centro de acolhimento (albergue) neste local". No boca a boca, o pânico da vizinhança resultou num abaixo-assinado contrário à criação do albergue, com 10 mil assinaturas — o documento foi entregue à Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social em 6 de agosto.

Depois da pressão, a Prefeitura de São Paulo desistiu do projeto.

O comerciante Ivanildo Teixeira, 45, dono de um bar na Vila Maria  - Mateus Araújo/UOL - Mateus Araújo/UOL
O comerciante Ivanildo Teixeira, 45
Imagem: Mateus Araújo/UOL

'Onda de insegurança'

O projeto do centro de acolhimento durou cerca de dois meses. No fim de junho, a Prefeitura publicou no Diário Oficial o termo de parceria com a organização social Coordenação Regional das Obras de Promoção Humana, no qual estava previsto repasse mensal de cerca de R$ 203 mil para manter e operar o espaço, totalizando R$ 1,3 milhão.

O acordo vigoraria até 27 de novembro, tempo previsto para a estruturação do centro; depois, a administração municipal abriria outro chamamento público para definir qual instituição assumiria a gestão do albergue.

"Ninguém conversou com a gente", argumenta o motorista de aplicativo Alê Diegues, 50, que nasceu e mora até hoje na Vila Maria. "Não fizeram nenhuma consulta pública. Fizemos uma pesquisa entre os moradores da rua. Em 23 casas do entorno, 90% das pessoas são idosos. Ficaria inviável", diz ele, em conversa por telefone.

Diegues assinou a petição contra o albergue porque, segundo ele, o bairro vive uma "onda de insegurança". "Vindo essas pessoas para cá, provavelmente vai aumentar o índice de assalto."

De acordo com dados da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, na Vila Maria foram registrados 1.358 roubos e furtos entre janeiro e junho. Em 2021, no mesmo período, o bairro teve 1.263 ocorrências desse tipo; em 2020, foram 1.306.

"Na verdade, o que acontece: existem moradores que ficam dentro do albergue, que vão se alimentar e dormir, mas existem aqueles que não aceitam a rotina, querem entrar com drogas e bebidas. Esses aí ficam na rua assaltando, fazendo arruaça, ameaçando pessoas, ficam olhando de outra forma para mulheres", opina. O motorista diz que soube dessas situações com "vídeos, redes sociais e pessoas que conhecem e já contaram".

De acordo com o Censo da População de Rua, em 2021 havia 1.238 pessoas vivendo em situação de rua entre os bairros de Vila Maria e Vila Guilherme. Em 2019, este número era 329.

Idosos, crianças e 'bandidos'

No lugar de um albergue, o grupo de vizinhos gostaria que a Prefeitura transformasse o imóvel em um CDI (Centro Dia para Idosos), onde são oferecidas atividades diurnas para pessoas com mais de 60 anos. "Estamos chamando carinhosamente de 'creche do idoso'", diz o pastor Samuel Montino Farias, 51, vice-presidente do Conseg (Conselho Comunitário de Segurança) da Vila Maria, responsável pela mobilização.

"Nosso objetivo não é ser contra moradores de rua nem de casas de acolhimento. Nossa reivindicação é sobre o local, que é totalmente inadequado", diz o pastor da igreja Resgate e Vida, a menos de dois quilômetros de onde ficaria o albergue.

Perto desse local, diz o representante, há três escolas infantis. "Você sabe que uma casa de acolhimento junta moradores de rua, mas também pessoas ruins, mau caráter, bandidos".

Rua Magarinos, na Vila Maria - Mateus Araújo/UOL - Mateus Araújo/UOL
Rua Magarinos Torres, na Vila Maria, é predominantemente residencial
Imagem: Mateus Araújo/UOL

'Cultura preconceituosa'

A decisão de criar um centro de acolhimento como o da rua Magarinos Torres não caberia à vizinhança, na análise da advogada popular Kelseny Medeiros Pinho, pesquisadora do Laboratório de Justiça Territorial da UFABC (Universidade Federal do ABC) — uma vez que se trata de uma política pública prevista e amplamente regulamentada pela legislação no município. "Uma das diretrizes da política de acolhimento da população em situação de rua é o vínculo comunitário. Centros de acolhimento não podem ficar isolados, têm que estar inseridos na comunidade."

Não é incomum que vizinhanças reajam contra a presença de albergues e centros de acolhimento desse tipo, acrescenta o coordenador do Movimento Nacional de Luta em Defesa da População em Situação de Rua, Darcy Costa. "Até para fazer um evento comemorativo, uma festa de Natal em determinado ambiente, ginásio local, ainda que seja público, tem que se fazer um diálogo com a comunidade", lembra. "[Mas] eles sempre se colocam em oposição."

Para Darcy, isso seria um exemplo de "desconhecimento das causas" e de "ignorância". "Também a própria cultura preconceituosa, racista, que está impregnada no subconsciente do sujeito", critica. "Ele sente repulsa por aquele que está no estado de miséria, sofrimento e dor. Ele culpa a pessoa por estar nessas condições."

Na manhã de última quarta-feira (24), quando o TAB esteve no local, não havia pessoas em situação de rua pelo entorno. A proposta do Conseg, pondera o pastor Farias, é encontrar "um local adequado" na região para se criar o albergue, "que não atrapalhe os moradores". Até agora, no entanto, isso não aconteceu.

Procurada pela reportagem, a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social confirmou a desistência de criar o Centro de Acolhida na Vila Maria na rua Magarinos Torres e disse que está "avaliando a possibilidade de implementar um Centro Dia para o Idoso no imóvel". Entretanto, acrescentou, "os trâmites para a instalação do serviço estão em curso e ainda não há um parecer técnico". São necessárias análises de equipes de engenharia e de assistência social sobre estrutura física do galpão e seu uso apropriado.

Enquanto não encontra outro imóvel para receber o serviço, a organização social responsável por administrar o albergue "está realizando atendimento à população em situação de rua no Centro de Acolhida Zaki Narchi, localizado na Av. Zaki Narchi, 600, Vila Guilherme". E afirma que divulgará o novo local assim que ele for definido.